quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Pastinha temática 1 - Dominação cultural

Vou começar hoje uma série diferente de postagens. Vou colocar aqui seleções temáticas de músicas. Adoro fazer isso, e faço desde que me conheço por gente. Tenho zilhões de fitinhas, cedezinhos, pastinhas com determinado artista, determinada banda, determinado conceito. Vivo separando as n melhores músicas que já ouvi, e a cada semana incluo, retiro, reincluo e defenestro umas três ou quatro.
Resolvi fazer seleções por tema porque considero mais adequado para um professor, já que assim posso vislumbrar algum projeto ou produção a respeito, e menos repetitivo para o leitor, pois dificilmente uma música se encaixa em várias temáticas. Neste meu joguinho, entretanto, a música não precisa necessariamente tratar do tema escolhido. Ela pode servir para ilustrá-lo, comentá-lo, iluminá-lo de alguma forma ou tangenciá-lo de alguma maneira. O importante é que o conjunto das músicas possa ter alguma identidade, alguma substância formada da química de todas elas.

Pois bem, vamos tentar. Hoje pensei em DOMINAÇÃO CULTURAL.
Selecionei as seguintes músicas:
9 - Andei pro seu happy day (Luiz Orquestra)

Explicando sucintamente a escolha. As canções 2 e 7 ridicularizam estrangeirismos em voga na cultura brasileira, respectivamente os anglicismos e os galicismos. São canções divertidas, para rir das brincadeiras linguísticas boladas. Nesse mesmo caminho segue a canção 6, embora a praia do Zeca seja mais a graça pelo engenho da canção que pela disposição avacalhada das outras duas. As canções 1 e 5 têm, em suas letras, reflexões abertas sobre a influência da cultura estrangeira no país, e parecem ser as mais críticas da lista. Já as obras-primas 3 e 4 são cantos de exaltação da cultura brasileira em relação à cultura que vem de fora, propondo uma integração construtiva, mas respeitando as peculiaridades de cada uma delas. A canção 9 venceu um festival da Record de MPB, tem uma letra muito bacana, mas infelizmente nunca a consegui encontrar para comprar ou baixar, por isso não posso fazer grandes avaliações. O máximo que consegui foi um link para a página do autor no MySpace, onde dá para ouvir a dita cuja. Creio que se pareça com as do grupo anterior, na essência. Quanto às canções 8 e 10, penso que seguem outra senda: apropriam-se de elementos culturais de outros povos para adequá-los ao espírito do brasileiro, para reconstruí-los com as cores de nossa cultura, criando algo novo, inusitado e bacana.
Acho que, com estas 10 canções, é possível discutir numerosos aspectos, sob vários pontos de vista, da dominação cultural e suas consequências. Quem tiver mais alguma, pode sugerir que eu incluo. Mas eu tenho de ouvir primeiro, ou pelo menos conhecer a letra. Senão, não deixo entrar na brincadeira!

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Roberto Freire no Roda Viva de hoje

Acompanhei a entrevista do deputado Roberto Freire hoje no Roda Viva, da TV Cultura, e fiquei estupefato. O homem simplesmente se recusou a fazer qualquer elogio, mínimo que fosse, ao governo Lula. Até aí, tudo bem, ele faz o papel dele de oposição. O problema é ter de sustentar afirmações como "A economia vai mal", ou "A situação de vida no Nordeste não mudou". Não vi nem sombra da ponderação e análise arguta do político que eu tanto admirava, linha de frente ideológica do finado PCB. Nada disso. Foi um show de críticas não fundamentadas, que os próprios jornalistas contestavam com facilidade (e olha que boa parte do jornalismo de São Paulo já fechou com Serra). Freire parecia reduzido a um desses muitos serristas convictos que encontramos por aí, ácido com o lulismo e incapaz de enunciar cinco ou seis paradigmas que pudessem ser apontados como uma alternativa programática.
Depois escreverei uma postagem sobre essa inquietação, que hoje reapareceu: não consigo enxergar o programa da oposição. Até agora, só vi alternativa consciente na Marina Silva, mas ainda não tenho clareza sobre o programa que o PV apresentará e que ela, queira ou não, subscreverá. Insisto em que não tem havido debate político, mas apenas propaganda marqueteira da pior espécie. E falta menos de um ano.

sábado, 17 de outubro de 2009

A trilha sonora da madrugada em claro

Estou acordado de madrugada, como de costume. Mas hoje rola a trilha sonora perfeita: baladas pop dos anos 1980. Nenhum gênero musical é mais adequado à insônia solitária. Talvez porque a cama de teclados na maioria das músicas funcione como um abraço da solidão e do tédio, e as letras insistam em valorizar amores irrecuperáveis e momentos mal resolvidos. E há algo de sombrio nessa produção, mesmo quando se esmera em ser romântica. Eletrônica demais, artificial demais, patética demais e saturada nos arranjos, a canção dos 1980 cai como uma luva para momentos em que me pego revirando as cinzas da minha adolescência tímida, insegura e complexada.
Interessante que não lembro de ninguém em especial, nenhuma garota, nenhuma primeira namorada. Só do clima. E, por incrível que pareça, posso recuperar esse clima controladamente quando ouço essas músicas. Posso, inclusive, projetar as mesmas fantasias adolescentes de outrora ao dançar com alguém ouvindo clássicos dos 80, de rostinho colado. Gosto quando consigo fazer isso, deixa o namoro mais romântico, meu coração mais mole. Sem uma dosezinha de pieguice, é difícil dar asas à paixão.
Hoje ouvi "I want to know what love is", do Foreigner, música que jamais deveria ter sido regravada, em respeito à emoção da versão original. Fico todo empolgado quando toca "Against all odds", do Phill Collins. Parece que não dá para ouvir essa música sem ter alguém para se declarar. Revendo o clipe de "Self Control", da Laura Branigan, reparo o quanto meu gosto por vocais doces e melodias em tom menor foi influenciado pelas FMs da minha infância. E penso que o homem de máscara do vídeo tem tudo a ver com certas pirações eróticas e com meu medo da exposição pública. E penso ainda que a historinha do clipe dialoga, em certa medida, com a letra de "Menina Veneno", do Ritchie, uma das obras-primas do pop oitentista brasileiro (ainda vou fazer uma postagem só sobre essa música). Mas tem também "I just called to say I love you", de Stevie Wonder, umas das raras canções em que a voz digitalizada tem charme, ou "Arthur's Theme", do Christopher Cross, composta com uma inspiração que não aparece todo dia, ou a voz poderosa de Joe Cocker arrepiando em "Up where we belong", ou até mesmo a pérola da interpretação rasgada e melodramática, "Total Eclipse of the Heart", da singular Bonnie Tyler, canção que sonho um dia poder entoar com todas as nuances vocais.
Para encerrar a noite, a postagem, e a lista de sugestões, "True", do Spandau Ballet. Essa é irretocável: chorosa, suingada, bem cantada, com excelente dinâmica de arranjo e uma levada forte e doce, como se o impulso de amar encontrasse vazão perfeita para seu fluxo indômito.

sábado, 10 de outubro de 2009

ENEMigos da própria intenção crítica

Rolou uma manifestação na Paulista esses dias, em que estudantes protestaram contra o adiamento do ENEM. Eles aproveitaram para protestar também contra o Sarney no Senado e a corrupção, e colocaram como lema da grita que fizeram a frase "Somos ENEMigos da corrupção". O jogo de palavras foi infeliz, na minha opinião. A palavra inventada "ENEMigo", que indica oposição a "corrupção", contém a sigla "ENEM". Mas na pauta de reclamações da garotada, "ENEM" está no mesmo grupo de ideias de "corrupção", ou seja, algo a ser questionado. O "inimigo" está no campo positivo, mas o "ENEM" (ou seu adiamento) está no campo negativo, e há uma fusão de ambos numa única palavra. Essa ambiguidade enfraquece o efeito contestador da brincadeira.
Do ponto de vista político, também achei a manifestação infeliz, não pela pertinência das reclamações em si, mas porque deu a impressão de não ter foco, nem objetivo definido, nem sequer uma reivindicação central. Protestar contra Sarney é legítimo, assim como reclamar do adiamento do ENEM. Tentar sintetizar as duas coisas num protesto único, entretanto, é inadequado. O vazamento do ENEM não é um problema de corrupção, nem de nepotismo, nem de picaretagem governamental. Também não se trata de um problema relacionado à linha ideológica de atuação, pois, se é certo que o governo apoiou Sarney no Congresso, não seria lúcido dizer que apoiou o roubo da prova do ENEM. Com um pouco de esforço, poderíamos achar que ambas as críticas visam mostrar a incompetência do governo atual, que não consegue acabar com a corrupção nem fazer o ENEM na data certa. Ainda assim haveria dois problemas: o de mostrar que as duas questões têm importância equivalente e grau, no mínimo, semelhante de responsabilidade por parte da administração federal, e o de dispor de um discurso em que se costurassem essas críticas isoladas a um quadro de erros e trapalhadas grande o suficiente para um veredito negativo justificável. A meu ver, não é possível, porque o caso do Sarney é muito mais grave e complicado que o vazamento do ENEM, e porque a responsabilidade do governo no roubo das provas não é a de conivência ou de aceitação. E ainda mais: como é duvidoso acenar para uma incompetência generalizada do governo federal, visto que a economia caminha bem e há no mínimo tantos acertos quanto erros na atuação da equipe de gestão, a manifestação acaba ficando vazia, uma espécie de "Cansei 2", em que o discurso não fere ninguém porque não sabe quem quer atingir, e em que não há noção de algo palpável a ser reivindicado ou negociado, mas apenas um sentimento difuso de indisposição contra tudo que vem do Planalto.
Mas não foi isso o que mais me impressionou.
O que me deixou boquiaberto foi o fato de que essa manifestação mereceu um link de destaque no Yahoo e no Terra no dia em que aconteceu. (O Yahoo e o Terra alimentam-se de notícias do Estadão, é bom salientar). E essa manifestação, que mereceu destaque no Yahoo e no Terra e uma reportagem no Estadão, reuniu... 100 estudantes. Menos pessoas que em uma reunião de pais na escola em que trabalho. Menos estudantes que os que assistem minhas aulas na faculdade semanalmente. O equivalente a oito ou dez grupos de RPGistas, ou a um festival de música alternativa sem público. Um décimo do meu perfil no Orkut.
Eu não entendo o critério editorial do jornal e dos portais. Quando, afinal, se deve considerar uma manifestação como noticiável? Tenho certeza de que qualquer ato de bancários ou trabalhadores dos correios tem muito mais importância política e impacto na vida das pessoas do que esse dos estudantes, sem contar o fato óbvio de que junta muito mais gente. A escolha da mídia, nesse caso, me passa a mesma sensação de vazio que citei acima: atribui-se importância e oferece-se repercussão a tudo o que questiona o governo atual, independente da consistência ideológica ou da representatividade política quantitativamente verificável da manifestação. E isso não funciona.

Não achei mais o link do Yahoo. O do Terra é este aqui.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Nei

Meu tio Nei (cujo verdadeiro nome é Francisco), entre outros talentos que possui, é capaz de emitir o som mais agudo, incômodo e desesperadamente horroroso que uma voz humana já pôde emitir: a sua imitação de galo. Em momentos em que quer chamar a atenção, ele solta um cacarejar que assusta, dói nos ouvidos de tão alto e deixa a gente fora de si de raiva. E ele atinge seu objetivo plenamente, pois, depois de tomar uma bronca daquelas, sai rindo, satisfeito.
Meu tio Nei também é conhecido por ser fã inveterado de café, chegando a fazer pequenos serviços em bares e restaurantes - geralmente a varredura do chão - para ganhar uma xicarazinha da bebida. Em casa, sempre bebeu café de forma frenética, chegando a secar garrafas inteiras, se permitíssemos ou ficássemos de bobeira. Talvez isso ajude a explicar um pouco de seu comportamento insone: durante alguns anos, ele se distraía na madrugada, na varanda da casa de meus tios, tocando gaita por horas a fio (na verdade, assoprando e puxando a mesma nota durante boa parte desse tempo).
O Nei também é conhecido por sua atração por mulheres bonitas. Quando alguma delas aparece para visitar minha família, ele não a deixa em paz, e quer constantemente cumprimentá-la com apertos de mão e beijos no rosto. É sabido por nós que, de vez em quando, mas não na nossa frente, nem com nossas amigas, ele oferece dinheiro a alguma mulher para, digamos, ter uma liberdade maior de aproximação. Falta-lhe, evidentemente, noção do risco, e às vezes ele se dá muito mal, outras muito bem. Às vezes, também, excede o comportamento cavaleiresco que geralmente tem, e é devidamente repreendido por seus familiares. Mas, no geral, consegue ser, a despeito de algumas inconveniências, muito mais agradável que a maioria dos homens que conhecemos.
Caminhando pelo bairro em busca de novidades, o Nei é uma das figurinhas carimbadas do Jardim Triana. Não há quem não o conheça, quem não brinque com ele, quem ele não cumprimente. Ele vai de padaria a padaria, de casa a casa, de praça a praça, gesticulando e articulando sons às vezes inteligíveis, às vezes só decodificados por quem já o conhece bem. Nesse sentido, cabe dizer que meu tio é, sem dúvida, o ser mais comunicativo da família inteira, a despeito de suas limitações.
Nós, da terceira geração a partir de seu Otávio, crescemos aprendenddo a respeitar o Nei e a gostar dele com todas as suas peculiaridades. Quando crianças, frequentemente perguntávamos aos adultos porque ele era daquele jeito, diferente. E precisamos nos tornar adultos também para compreender que o Nei teve, desde a infância, problemas físicos, como uma quase surdez dos dois ouvidos, e mentais, com atrasos evidentes, que se tornaram mais problemáticos depois de estadia de anos no Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha, no qual era tratado com grande desprezo, chegando a desaprender as regras mínimas de convivência civilizada. Foi minha mãe que resolveu trazê-lo de volta e bancou seu retorno ao convívio com a família, que não foi fácil e trouxe, sem dúvida, uma série de complicações e responsabilidades adicionais para todos nós.
Entretanto, de nada podemos reclamar. O tempo nos ensinou a amá-lo e a tolerar, respeitar e até admitir algumas das esquisitices que nos incomodavam.
Um dia, quando eu era criança, eu lia uma revista da Superinteressante, que fazia parte de uma coleção que vinha fazendo. Saí da sala por alguns instantes para comer algo na cozinha. Voltando, vi o Nei folheando a revista. Entrei num estado de grande agitação e agonia, pois sabia que o interesse dele nos materiais impressos passava muitas vezes por rasgar páginas para guardar figuras que lhe interessassem. Argumentei e tentei mostrar de várias formas que a revista era minha e que ele tinha de devolvê-la, mas foi em vão. Sem saber o que fazer, voltei para a cozinha, sentei, coloquei o rosto por entre as mãos e comecei a chorar, menos pela revista em si e mais pela sensação de fracasso em conseguir me comunicar com ele, o que se configurava para mim, naquele momento, um problema permanente. Dali a alguns minutos, ele tocou no meu ombro. Devolveu a revista, deu um beijo no meu cucuruto e sinalizou, com os braços, que aquilo tinha acabado e que eu não chorasse, porque ele não ia fazer nada com as folhas. Fiquei muito agradecido. E fiquei impressionado com a compaixão que ele tivera por meu choro, porque, muitas vezes, eu não tivera sentimento semelhante para com meus irmãos, primos e amiguinhos. Creio que fiquei positivamente impressionado com a compreensão que ele teve da linguagem das emoções. Foi uma lição de vida.
Tio Nei foi definido uma vez por um amigo do meu pai como "um excepcional feliz". Creio que sua convivência com a família trouxe-lhe a condição de se humanizar, tanto nas virtudes quanto nos defeitos. A verdade é que gostamos dele como um irmão mais velho de todos, que precisa de ajuda, conselho, carinho, apoio e, principalmente, compreensão. Penso que ele contou, de nossa parte, e na medida do possível, com um esforço sincero de oferecer essas condições mínimas para uma vida digna no decorrer dos anos. E ofereceu-nos a oportunidade de amar um bom ser humano e aprender a conhecer seu mundo diferente, tornando-nos mais inteligentes e acolhedores.

sábado, 3 de outubro de 2009

A intervenção cirúrgica no HU - parte 2

Quando comecei a escrever esta história, o companheiro de equipe do Massa para 2010 ainda era o Kimi, para vocês terem uma ideia... Mas vamos nessa. Antes tarde do que nunca.
Aconteceu que, na data prevista, fui encaminhado ao hospital no dia da cirurgia, despido, medido, analisado, rapado na axila (porque nenhum pelo podia ficar lá de bobeira). Doutor Dino acompanhou todo o procedimento até alguns minutos antes da anestesia. O fato é que, para me tranquilizar, ele garantiu que daria tudo certo, que era uma operação com poucos riscos. Mas alertou, sem alterar o semblante:
- O máximo que pode acontecer de errado é voce perder os movimentos do braço esquerdo, e ter de fazer uma fisioterapia.
Jesus Cristo, eu tremi na base! Nossa, saber desse risco alguns minutos antes de operar me fez suar frio. Como eu ia tocar violão? Eu ia ficar torto? Eu não conseguiria mais me mexer direito? Deu vontade de chorar. Mas eu corria risco de vida, não podia voltar atrás. Hoje entendo muito bem porque isso foi dito só naquele momento. Doutor Dino fez bem: se havia risco, era melhor só me preocupar com isso quando não houvesse nenhuma possibilidade de desistir. Eu teria de conviver com a dúvida por alguns minutos apenas; depois, fecharia os olhos para apenas abri-los quando já não houvesse dúvida.
A descrição acima parece referir-se à vida depois da morte. Intencional. Aquelas horas de cirurgia, aqueles momentos na mesa de operação, foram para mim um apagão total. Não lembro de ter visto, nem ouvido, nem sequer sonhado nada. O sentimento mais próximo da morte que já vivenciei.
Abri os olhos dentro de uma sala escura, com um aparelho ligado ao meu peito e um bipe constante na tela. No outro leito, um sujeito urrava de dor desesperadamente. Eu fui recobrando a consciência aos poucos. Estava todo costurado, cheio de agulhas enfiadas pelo corpo, e com uma máscara no meu rosto. "Penso, logo existo", passou pela minha cabeça, "acho que deu certo". E foi então que recordei das palavras do Doutor Altmann antes da cirurgia, sobre os movimentos do braço. Subiu uma agonia na minha garganta, e sem pensar se podia ou devia fazer aquilo, tentei mover o ombro esquerdo cheio de costuras e curativos e quase que imobilizado de tanta parafernália sobre ele. Ergui só um pouquinho. O suficiente para me considerar o sujeito mais feliz da face da terra. Tinha dado realmente tudo certo. Em breve, eu estaria pronto para a próxima, sem perder nenhum movimento do corpo. A sensação de pensar isso, naquele momento, era a de descobrir que se não morreu, ou o mais perto disso que já cheguei.
Tive de ficar ainda uns dias de recuperação. Manhoso, mimado e exagerado, sei que dei trabalho às enfermeiras, às quais peço desculpas publicamente agora, mesmo que nem lembrem de mim nem nunca leiam este blog. A cena mais terrível que protagonizei foi minha enjoada e contínua reclamação de dor de barriga no primeiro dia pós-operação. Toquei tantas vezes a campainha em cima da cabeceira que devo ter deixado a moça de mau humor. Quando ela veio, disse que minha barriga doía. Ela se prontificou a resolver meu problema. Dali a pouco, voltou com uma injeção de Voltarem, que lascou no meu bumbum. A aplicação da injeção doeu três vezes mais que a dor na minha barriga. Em verdade, devo dizer que até esqueci a dor de barriga, porque a dor no meu traseiro ficou incomodando por algumas horas. Tanto que, um pouco mais tarde, quando a enfermeira voltou com a segunda dose de Voltarem, eu fiz um esforço de sorriso para dizer:
- Não precisa, minha barriga não está doendo mais.
Graças a Deus ela acreditou em mim. E, por incrível que pareça, durante todo esse processo que aqui descrevi, foram essas as duas únicas dores que senti. O ombro, mesmo, nunca doeu, nem quando estava inchado, nem durante, nem depois da operação.
Por desleixo meu e falta de orientação adequada, acabei tendo problemas com o dreno e a cicatrização, o que acarretou o desenvolvimento de uma marca bem maior do que a prevista. Revi o Doutor Dino para refazer os pontos da cirurgia, tomei a bronca devida, voltei para casa, retirei o dreno depois de um tempo e nunca mais tive qualquer problema que fosse com o ombro.
Doutor Dino, a partir de então, ficou na minha memória como um benfeitor longínquo, e eu tinha até perdido alguns detalhes da fisionomia dele, quando, afortunadamente, vi que ele falava na televisão, a respeito do jogador Serginho, do São Caetano. O caso da morte do rapaz era bem triste, mas o ser humano pode sentir várias coisas ao mesmo tempo, e percebi certa alegria no meu coração em poder vê-lo atuando com a competência habitual. E, algum tempo depois, quando posso revê-lo cuidando de Felipe Massa, cedendo entrevistas à TV sobre o quadro de saúde do piloto, fico mais contente ainda, por perceber que o tempo coroou sua capacidade médica e seus méritos foram reconhecidos. Massa está em boas mãos. Agradeça esse homem por nós dois, Felipe, com suas vitórias e sua saúde exuberante nas pistas. Eu agradecerei com este texto e uma oração esta noite, com a mão direita sobre meu ombro esquerdo.