quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Treze vozes

Cantar é algo que se aprende. Se eu não acreditasse nisso, não estaria estudando canto até hoje. Mas há algo de estritamente individual e particular no canto, que é corporal, genético, característico, que é a voz do cantor ou da cantora. Uma pessoa que tem um timbre de voz bonito já conta com um recurso a mais para encantar cantando. É claro que isso não basta, mas quando o artista tem consciência de que possui esse diferencial e se dispõe a explorá-lo, temos momentos únicos de magia musical.
Nesta postagem, prestarei uma homenagem a pessoas cuja voz me fascina e delicia. A maioria é de grandes intérpretes, mas não é exatamente isso que avalio aqui. Não listarei pessoas que me deixam boquiaberto pela emoção ou pela apurada técnica da interpretação, mas aquelas que me levam a pensar "como é bom ouvir essa voz" ou "poderia ouvir esse pássaro por mais cem anos". Mesmo que cantem canções pouco marcantes ou errem nas escolhas de intensidade e dinâmica, essas pessoas que homenageio contam o perdão incondicional dos meus sentidos, porque têm uma magia física no canto capaz de me capturar na primeira audição.

São elas:
Jon Anderson - Acho que ele tem o timbre de voz mais gostoso de ouvir que conheço. Canta agudo sem fazer esforço, com docilidade, com leveza. O Yes é um com ele, e nenhum sem ele, e os fãs sabem que é verdade.
Mercedes Sosa - Voz poderosa, encorpada, impactante. Difícil igualá-la porque sua interpretação sabe explorar as características de voz tão únicas que ela tem. Aliás, nunca vi ninguém imitando-a, nem para copiá-la, nem para caricaturá-la. Pena que se foi sem eu ter podido vê-la ao vivo.
Marina - Timbre mais sexy que conheço. Como ela canta mais grave e com menos intensidade, meio que insinuando as frases, a voz cai como uma luva em canções com mensagens sensuais. Atualmente, decaiu muito, por complicações nas cordas vocais, mas ainda guarda certo charme.
Karen Carpenter - Voz feminina impressionante, com belo grave e alcance notável. Excelente para as canções de amor, mas creio que talhada para qualquer tipo de música, se assim o desejasse.
Milton Nascimento - Extraordinária manutenção do timbre aveludado do grave ao falsete. Ninguém no planeta tem voz assim. Algumas canções parece que não poderiam ser cantadas por outra pessoa. Pense em alguém para fazer o que ele faz em "San Vicente". Vai pensando...
Cássia Eller - Li uma vez em algum lugar que ela tinha voz de soprano. Pelo que entendo, usava mais a região de contralto, o que mostra que sabia tirar o melhor de sua tessitura. Sem contar que manjava demais da arte, e assim fica fácil com qualquer voz.
Annie Haslam - Voz belíssima, cantou no Renaissance na década de 70 e depois não sei para onde foi. Timbre quase de cantora erudita, mas carregado de uma emoção genuína e cativante.
Grace Slick - Como cantava essa mulher! Fez a linha de frente do Jefferson Airplane. Se só tivesse cantado "White Rabbit" e mais nenhuma outra música o resto de sua vida, já estaria na minha lista.
Joan Baez - Valoriza qualquer canção com sua interpretação sempre forte. Deus lhe brindou com uma voz marcante, imponente, e ao mesmo tempo agradabilíssima.
Johnny Cash - A voz grave mais notável que conheço. Coitado do Joaquim Phoenix, que teve de interpretá-lo no cinema. Devia ter dublado. A primeira coisa que comentei quando estava vendo as cenas de ensaio das músicas foi: "Credo". Quando der, ouça como Cash canta "Hurt". Arrepia.
Jon Thor Birginson - Esse canta! Caiu meu queixo a primeira vez que ouvi esse cara. Timbre em falsete, meio infantil, meio agônico, mas muito doce. Nos últimos tempos, tem explorado mais o registro normal da voz, e não faz feio. Seu canto combina perfeitamente com o estilo viajante de sua banda e de seu trabalho solo. Queria cantar como ele.
Greg Lake - Voz perfeita do progressivo. Não aquela de agudões, berros, malabarismo, mas de colocação, respeito pelos limites de extensão, e qualidade de empostação. Muito bom no King Crimson, muito bom no Emerson, Lake and Palmer.
Carla Bruni - Nem sabia que ela era modelo quando a ouvi cantando pela primeira vez, quanto mais que viria a ser primeira-dama. Então, não é porque ela está famosa agora que a coloquei nesta lista. A verdade é que ela não tem uma grande voz, nem interpreta tão bem assim, mas escolheu um estilo sussurrado, que cai muito bem para seu timbre doce. Conheci quando fazia Francês na USP, e adorei, mas não tenho mais ouvido tanto, porque o repertório é, de fato, um pouco enjoativo.

Bom, taí. Há muitas outras que ficaram de fora, porque não quis fazer AS treze melhores, mas sim treze DAS melhores. Aceito e avalio sugestões e discordâncias.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Eu quero meu Camões de volta

Houve uma limpa na parte de cima dos armários da faculdade, na qual muitos professores, eu incluso, deixavam materiais que não cabiam nos espaços a que tinham direito. Nessa brincadeira, dei conta de que não estava achando o livro Obras completas de Camões. Procurei como um doido. Olhei tudo, no trabalho, em casa, na escola da Prefeitura. Perguntei aos inspetores, perguntei aos colegas, aos alunos, aos vendedores dos estabelecimentos por que passei. Nada de achar o livro.
Aquele exemplar pode ser comprado novamente com facilidade. Mas duvido que o encontre nas mesmas circunstâncias em que o adquiri, novo, por um terço do preço, numa dessas promoções espetaculares que a gente tem de aproveitar imediatamente para não se arrepender depois. O que mais me agoniava, entretanto, era perder uma edição tão bonita do meu poeta preferido. Puxa, justo Camões! Justo o cara que venho redescobrindo com os alunos, canto a canto nos Lusíadas, verso a verso na lírica, passo a passo na biografia! Justo um dos livros de que mais gostava!
Nos dias que antecederam o Natal, sonhei que tinha encontrado o livro. Geralmente, não lembro as coisas que sonho, mas essa cena ficou gravada com espantosa nitidez na mente. Senti de novo a textura do papel em minhas mãos, olhei de novo as letras miudinhas, a beleza das ilustrações, sondei de novo as possibilidades listadas nos índices. Só faltava sonhar com Papai Noel me entregando o livro em pessoa. Acho que só não rolou porque nunca fui muito ligado nessa coisa de Papai Noel.
Ainda não comprei o livro de novo. Vou esperar uma promoção como aquela (este esperar é de esperança, além de espera). Tenho fé nisso. Basta vir a oportunidade. Esse é, literalmente, meu sonho de consumo. É o que inconscientemente pedi a um simbólico "meu Papai Noel".

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Alguém pode estranhar a postagem sobre um sonho alegre e recompensador relacionado a livros, não a pessoas de meu convívio. Sustento que isso é coerente, se pensarmos a relação que mantenho com objetos de desejo.
Para mim, livros se tornam pessoas quando me acostumo com eles e quero-os do meu lado. Tenho ciúme deles, tenho uma relação que não pode ser maculada com a interferência de postits ou grifos alheios, por exemplo. Por outro lado, quanto mais conheço uma pessoa, mais entendo que ela é mais que só uma pessoa. Quanto mais me acostumo com ela, mais entendo suas necessidades, e menos faço exigências de exclusividade.
Quero que as pessoas apareçam de vez em quando porque querem, porque gostam de mim. Por outro lado, quero que os livros não desapareçam nunca, porque os quero, porque gosto deles. Livros, eu os quero só meus. Pessoas, eu as quero bem, e só.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Deixem Tiger Woods em paz

Nas últimas semanas, vingou uma onda de recriminações a Tiger Woods, por conta de seus casos extraconjugais. Tenho uma postura radical a respeito desse tipo de polêmica, postura que é baseada, inclusive, em minha experiência marital. Em poucas palavras: não recrimino Tiger em nada a esse respeito. Nem a ele, nem a ninguém.
O que penso é o seguinte: houve agressividade, rispidez, mágoa, adultério, deslealdade, decepção, incompatibilidade de gênios ou descompasso sexual? Problema do casal. Ponto final. A pessoa resolve com seu parceiro. Acabou. Não interessa e não diz respeito a mais ninguém. Isso não é notícia, não é do interesse público, não tem nada a ver com o direito à informação. Uma coisa é olhar para uma relação como parte interessada (amigo, família, padrinho) e tentar entender que realmente está acontecendo. Outra coisa é massacrar as pessoas com bisbilhotices, procurando sinais que servem tão somente a especulações e julgamentos descabidos.
A verdade é que ninguém sabe o que uma pessoa vive ou viveu em seu relacionamento amoroso, e isso não pode ser simplesmente deduzido a partir dos sinais exteriores. Houve adultério? Como posso saber se isso é um acordo a dois, uma vingança, uma escapada, ou uma profunda insatisfação interior? Como posso saber se isso não é doença, vício em sexo, incapacidade de lidar com a estabilidade? Como posso julgar o indivíduo se desconheço sua psicologia (e não se engane: o que as pessoas falam ou fazem em público NÃO É o que elas são em seu íntimo, por mais que queiramos nos iludir)? Que afirmações posso fazer acerca da intimidade de um casal com o qual não partilhei nada a não ser fotos e fofocas? Que direito tenho de avaliar um comportamento de um indivíduo quando desconheço os jogos de poder, sedução, chantagem, assédio e pressão psicológica a que ele possa ter sido submetido? Indo até mais longe: por que é necessário justificar, ou absolver, ou condenar, uma atitude da vida pessoal de alguém que não tem nenhuma relação com minha vida pessoal? Tenho certeza de que, se as pessoas soubessem um décimo do que acontece nos relacionamentos, renegariam no mínimo metade das afirmações que fizeram sobre eles.
Mas a questão é outra: as pessoas não têm de saber dessas coisas. Deixem Tiger em paz! Ele tem de jogar golfe, e nisso ele é fantástico. O resto não interessa. Não diz respeito a ninguém além dele e da mulher. Não somos nós que temos de achar certo ou errado o que ele fez; é ele, só ele. Nós, que gritamos, mentimos, traímos, forjamos cenas, omitimos verdades, inventamos, que fazemos de tudo isso um pouco, nós não gostaríamos de nos ver resumidos a esses aspectos que podemos, sem muito esforço, apontar em nosso comportamento. As coisas que fiz de errado na minha vida, ou mesmo no meu casamento, não me definem, de maneira alguma. Fui capaz de superar muitas delas, sou capaz de conviver com outras tantas, e qualquer um que procurasse projetar meu caráter a partir das falhas que apresenta erraria feio. Da mesma forma, penso que é uma hipocrisia tirar patrocínios do cara, cortar publicidades, cancelar entrevistas. Quer dizer que o homem que teve outras mulheres não tem coração nenhum? Por que as entidades assistenciais não devolvem o dinheiro que ele deu? Por que os fãs não devolvem os autógrafos e renegam todo o carinho que o golfista teve com eles no decorrer desses anos todos?
É totalmente ridículo, na era pós-revolução sexual em que vivemos, reduzir um sujeito àquilo que instâncias hipócritas definiram como sendo sua imagem pública. Acho que deve doer demais reconhecer que os indivíduos não cabem nos rótulos em que se quer colocá-los. Quando se trata de relacionamentos e seus problemas, na imensa maioria das vezes, quem fala a respeito não faz a mínima ideia do que está acontecendo, e poderia perfeitamente abster-se de emitir julgamentos. Até porque, para o universo das experiências amorosas, desregradas e anticonvencionais por excelência, esses julgamentos não fazem a menor diferença.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Feliz Natal 2009 e Feliz Ano Novo 2010

Agradeço a todos os que frequentaram este blog e colaboraram com apoio e comentários construtivos. Estou feliz com o crescimento que conseguimos. Espero poder alcançar mais pessoas em 2010,e aumentar a frequência de postagens neste e em meus outros blogs.

Grande abraço, até breve.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Memória seletiva

Hoje, enquanto esperava minha mulher finalizar as compras de Natal, fiquei fazendo nada na Saraiva do Shopping. Enquanto não fazia nada, deu tempo de ler "Relato de um certo oriente", do Milton Hatoum (ótimo), algo sobre figuras de linguagem, e as orelhas de uns livros de poesia. Como estava com sono, me rendi à publicidade do café Starbuck, grandão e chamativo, que se vende lá dentro. Pedi um Frapuccino Mocha do maior, porque o sono era bravo.
Assim que comecei a sorver o líquido, constatei duas coisas. Primeiro, que aquilo era um horror, não tinha gosto nem de café, nem de shake, nem de nada que me comovesse, e ainda por cima era caro pra dedéu. Mas a segunda constatação foi a mais interessante.
Tão logo o gosto terrível da bebida da moda arrepiou meus cabelos, lembrei-me de que já havia experimentado uma vez a mesma bebida, e já tinha achado horrível. Simplesmente me esqueci disso quando comprei: que o produto já havia me decepcionado. Não sei se não achei tão ruim a ponto de gravar um gigantesco "não compre" no meu cérebro, ou se justamente achei tão ruim que apaguei a sensação relacionada àquela experiência. O fato é que só fui lembrar que não gostava daquilo quando experimentei de novo.
Sou um consumidor preguiçoso e tenho dificuldade de guardar marcas, ou associá-las a características que as singularizam. Mas nunca pensei que pudesse ser tão distraído a ponto de fazer a mesma besteira duas vezes. A verdade é que nem pensei em nada, minha preguiça me disse "vai no primeiro café que você vir na frente" e fui com tanta fé que me esqueci justamente do mais importante, que não gostava daquele. O pior é que tomei quase tudo, porque sou daqueles que, depois de pagar, não aceitam jogar nada fora. E o meu nem veio com chantilly, porque estava em falta...
Li numa página da net coisas interessantes sobre inibição latente, um processo psicológico que faz com que percebamos as coisas a nosso redor de acordo com as nossas necessidades e interesses. Seria assim: um cozinheiro, por dever de profissão, prova um determinado prato e diz, pelo paladar, quais ingredientes foram utilizados e em que proporção. Eu, que não cozinho, só como, provo um prato e não presto atenção nisso, apenas registro mentalmente se ele é gostoso ou não. Os psicólogos dizem que precisamos ter essa tal inibição latente para não pirarmos, pois é impossível lidarmos com todos os estímulos que recebemos. Por outro lado, eles também dizem que a baixa inibição latente é característica dos indivíduos criativos, tal como dos indivíduos loucos. Perfeitamente compreensível: quem vê o mundo de maneira diferente é porque recebe e responde estímulos diferentes, em função de uma experiência interior que não é a da maioria das pessoas.
Minha memória é um primor de inibição latente. Não fotografo mentalmente as coisas, não sou bom para seus detalhes, não lembro de nomes, esqueço rostos e situações com facilidade, esqueço de coisas que acabaram de me falar. Lembro somente do que os fatos e as coisas representaram para mim no momento em que os experienciei, e quase sempre fico só com essa impressão geral (bom, ruim, legal, chato...) e olhe lá. Quando se trata de consumo, então, a inibição atinge o nível máximo, porque algumas coisas simplesmente não representaram nada, ou foram tão insignificantes que nem consegui desgostar delas, ou foram tão desgostosas que eliminei da lista de relevância. O problema é que a força do marketing, aproveitando-se da preguiça mental, é capaz de driblar essa desimportância das coisas com muita desenvoltura. E lá vai o bobão aqui ser enganado de novo, com todas as armas para não ser. E o pior é que nem tenho coragem de dizer que não acontecerá uma terceira vez. Se bobear, até escrevo sobre isso de novo no blog. Às vezes, desacredito do que sou capaz...

domingo, 20 de dezembro de 2009

Frases e remontagens

Passei por uma perua e estava escrito assim, na traseira: "Lutar, sempre; vencer, talvez; desistir, jamais". Frase bonita, bem construída, simétrica. Três verbos e três advérbios. Bom gosto de quem a escolheu. Entretanto, quando vejo esse tipo de lema para uso externo, fico pensando menos em seu significado imediato e mais nas razões que o indivíduo teve para adotá-lo e, sobretudo, exibi-lo.
Pode ser que ele acredite realmente nisso. Nesse caso, supõe-se que valorize o trabalho, o labor, a persistência. Que acredite que pode vencer, mas que isso não depende somente de suas forças. Que considere que a determinação individual e a fé são seus maiores valores, e que vale a pena ser conhecido e reconhecido como batalhador e convicto. Teríamos, então, um cidadão querendo mostrar ao mundo a forma como se consegue o sucesso, sintetizada num dito que toca as pessoas pelos princípios cristãos de humildade e trabalho que apregoa.
Pode ser, no entanto, que o indivíduo que escolheu esse lema não seja nada disso. Pode ser que seja uma pessoa consumida pela culpa de tomar atitudes erradas e comprometer financeiramente e estruturalmente sua família. Pode ser que seja alguém que tenha entregado os pontos já muitas vezes, e que procure constantemente, dentro e fora de si, motivações para continuar fazendo aquilo que precisa - mas não quer - fazer. Nesse caso, a frase estaria mais para consolo ou promessa. Não seria entendida como "eu luto", mas como "tenho de lutar, fazer o quê?"; não serviria para mostrar algo como "eu acredito no trabalho", mas sim "eu preciso acreditar e continuar no caminho, não tenho outra saída", ou "eu preciso lembrar constantemente que não posso esmorecer, mesmo que as soluções estejam obnubiladas".
Até aqui, supusemos que pessoas com diferentes experiências e motivações poderiam adotar, sem problemas de coerência ou sentido, um mesmo lema de vida. Consideremos agora uma criatura de configuração moral distinta da que atribuímos às gentes imaginárias já descritas. Consideremos alguém que não acredita no sucesso pela via do trabalho; alguém que procura tirar vantagem de todas as maneiras das situações; alguém que prefere o lucro advindo do menor esforço ao pagamento justo por seu mérito e empenho; alguém que, nas piores adversidades, pensa unicamente em salvar o próprio pescoço; alguém que não liga de fazer falcatruas e passar a perna nas pessoas se não houver o perigo de isso vir a público.
Se uma pessoa com essas características colasse no seu veículo um adesivo com a frase em questão, poderíamos pensar que se trata de uma contradição ou uma impropriedade. Mas, por absurdo que possa parecer, o lema teria exatamente a mesma função: mostrar aos outros indivíduos qual a concepção ideologicamente válida e aceita de sucesso. O que haveria de diferente, nesse caso, é que estaríamos diante do tipo mais comum de ser humano que encontramos em nossa vida social, aquele que separa com muita habilidade sua aparência para o mundo de sua conduta interior. Esse tipo de cidadão não acha que está mentindo, pois realmente crê que o trabalho duro deveria ser norma de conduta da sociedade, contanto que ele não fosse obrigado a adotá-la. E ambas as coisas convivem pacificamente em seu universo lógico, pois suas crenças e seus valores não têm necessariamente de ser coerentes com sua práticas cotidianas, podendo muitas vezes contradizê-las, quando convier. Porém, ele não pode assumir explicitamente que se julga exceção à necessidade de cumprir o que diz. Nossa sociedade aceita a hipocrisia, não o cinismo, e, ademais, faltariam argumentos éticos válidos para se justificar. Mas é bom que fique claro: um indivíduo com essas características poderia colocar desavergonhadamente a frase no vidro de seu carro, e por certo ganharia elogios e atenções dos que estão ao seu redor, sem nunca enfrentar qualquer mínimo questionamento sobre a coerência entre sua conduta ética e o lema que adota. Agiria, assim, tal como as inumeráveis pessoas que vestem camisetas com dizeres cujo sentido desconhecem porque as estampas ou cores estão na moda ou parecem simpáticas. As outras diriam apenas: "caiu bem em você".
O curioso é que, se remontássemos a frase, adequando-a à falta de caráter dessas figuras que citamos, poderíamos obter algo mais expressivo e veraz, "Vencer, sempre; desistir, talvez; lutar jamais", lema extremamente pertinente para o que presenciamos todos os dias nas nossas relações com o mundo. Essa reorganização semântica deixaria claro que o negócio é o sucesso, o dinheiro, a vantagem pessoal, e que, quanto menor o esforço para obtê-los, mais eles nos convêm. Isso diz muito sobre o que vemos na política, nas relações de trabalho, nas festas, no trânsito, nas escolas, nas conversas de bar, em vários setores de nossa civilização. Mas um lema como esse carrega o problema do escancaramento, do desmacaramento, da autoculpabilização. Uma pessoa pode pensar assim e até usar essa ideia como um gracejo no contexto de confissões infames a amigos próximos. O que ela não pode é admitir isso abertamente, declaradamente, exibidamente, porque a consciência coletiva lida muito mal com seus desejos reprimidos.
Sintetizando: se tudo fosse somente uma questão de escolha e bom gosto, a frase original seria, para quem acredita no trabalho, para quem precisa acreditar, e até para quem não acredita mas não pode dizer, a opção mais conveniente e correta, sempre; se a questão for a de interpretação, para qualquer cidadão que tivesse lido "Raízes do Brasil", "A ética protestante e o espírito do capitalismo" e um básico resumido de Freud, a frase original tenderia a soar mais como uma curiosidade cotidiana que como uma prescrição, e a frase remontada, mais como uma provocação válida que como um gracejo. Prefiro o segundo ponto de vista. Desacredito da seriedade desse tipo de lugar-comum. Para mim, os homens se revelam no que dizem justamente pelo que silenciam. Feridas expostas precisam ser curadas, e as pessoas preferem, por incrível que pareça, não mostrá-las, ou não reconhecê-las como feridas, a ter de tratá-las adequadamente. As pessoas aceitam sofrer sempre e mentir talvez, desde que não tenham de mostrar jamais.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

No show de Glenn Hughes. Valeu por ele.

Admiro de coração as pessoas que guardam um montante considerável de energia vital para os anos da maturidade. Acabo de voltar do show de Glenn Hughes, ex-baixista de Deep Purple e ex-vocalista do Trapeze. Não sei a idade dele, 50, 60, algo assim. O que me impressiona é a excelente forma física que ele demonstra ter, que se reflete no vocal afiadíssimo (talvez o mais espetacular que já vi ao vivo), na pulação praticamente constante no palco e na vivacidade com que empunha seu baixo e faz malabarismos musicais.
Aos 35 anos, eu confesso que não consigo mais entrar nesse clima. Fui para ouvir a voz de Hughes e conferir sua técnica apurada. Isso fiz, e valeu o ingresso. Mas não pulei, não chacoalhei a cabeça, não achei graça nas pessoas caindo de bêbadas e chapadas, não tive estômago para as latinhas de cerveja nojentamente abandonadas no chão e o banheiro já mais do que asqueroso a partir da segunda metade do show. Não tenho mais esse espírito de aventura, de tolerância com o incômodo, de desencanação e mergulho na onda rock'n'roll. Para mim, foi bom poder ficar encostado na parede, mãos dadas com minha namorada, vendo o que rolava no palco e ouvindo a boa música que acontecia. Tudo o mais atrapalhava: as pessoas gritando (aliás, acho incrível alguém pagar para ver um dos maiores vocalistas de todos os tempos e ficar gritando enquanto ele canta), a fumaça assassina de narizes, o cheiro de bebida que começa a impregnar no decorrer da noite, os indivíduos que vão perdendo a noção de que você também quer ver o palco. Não sirvo mais para esse tipo de programa. Tive essa impressão no show do Radiohead e confirmo-a agora.
O que foi divertido, além de andarmos meia Faria Lima para não chegarmos atrasados, foi ter tido excelente companhia para a empresa e ter podido usufruir da beleza das músicas de cuca limpa, sorvendo cada acorde, cada agudo, cada falsete, cada solo. Saldo positivo, no fim das contas.

Só para pontuar e não ser injusto: grande show de abertura do Casa das Máquinas. Mas deviam ter tocado mais da fase progressiva deles. Seria melhor ainda.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Microcontos, Sérgio Sant'Anna e as "grandes novidades"

Ontem meu irmão me falou que a nova onda nos meios literários é um tal de microconto, nada mais que uma pequena história contada em menos de 240 toques, se não me engano. É interessante, mas isso não tem nada de novo.
Quem, como eu, teve a curiosidade e oportunidade de apreciar a força da escrita de Sérgio Sant'Anna em Notas de Manfredo Rangel, repórter, (a respeito de Kramer), de 1974, deve ter se impressionado com a maestria com que são contadas as pequenas histórias de amor presentes no conto "Romeu e Julieta", um dos 21 que compõem o livro. Se não me engano, dando uma fuçada no Google, dá para achar algumas delas.
Eu não sei bem o que é essa onda de microcontos, mas se a questão é apenas o tamanho e o poder de concisão, Sérgio é, sem dúvida alguma, o precursor mais ilustre disso. Minha dissertação de mestrado foi a respeito do Notas, e lembro bem que, ao analisar o conto que sugeri acima, cheguei a grafar essa classificação (microcontos) e mostrar ao meu orientador. Lembro de ele ter me dito para não usá-la, porque não era consagrada pela tradição, nem muito precisa do ponto de vista da terminologia. Risquei, e acabei nem aproveitando na redação final o que tinha escrito. Ficou lá, nas minhas anotações, nesses arquivos não publicados perdidos nos back-ups da vida. Como não publiquei, não posso dizer oficialmente que antecipei a configuração do gênero. Posso apenas brincar interiormente com aquela história do "tá vendo,eu já sabia!", e ficar elocubrando sobre minha dissertação ter sido mais lida se eu tivesse achado um jeito de incluir a análise do "Romeu e Julieta".
Mas não quero chamar a atenção para minhas sortudas intuições de análise, e sim para as competentes intuições de escrita de Sérgio. Que pelo menos reconheçam a primazia dele, a capacidade de buscar e enformar a concisão máxima de enredo num tempo em que nem se sonhava com internet, tuíter, e essas coisas.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Intolerância e estupidez na agressão a Vagner Love

Um grande amigo meu, que há tempos não vejo, dizia que todas as pessoas têm defeitos, e que o meu era gostar de futebol. Confesso, adoro futebol. Gosto de assistir a jogos de todos os times, de todas as divisões. Gosto do balé, da disputa de bola, da imprevisibilidade do espetáculo, da plasticidade das jogadas. Torço para o Cruzeiro, mas posso torcer para qualquer outro time, pois aprendi a acompanhar os jogos querendo que alguém vença. Fui poucas vezes a estádios, e sempre considerei que, neles, a proximidade com a experiência da disputa em campo nos torna coparticipantes.
Mas é só. Para mim, futebol é torcer, acompanhar, admirar, aplaudir, vaiar. E creio que, para qualquer ser civilizado, a experiência de torcedor não deva passar disso. Futebol não é mais importante que política, que assuntos amorosos, que educação, que questões de direito e cidadania. Futebol não é minha profissão, e não é uma paixão que sobrepuje minhas responsabilidades, ou mesmo minhas outras paixões (música, literatura).
O caso da agressão ao jogador Vagner Love, do Palmeiras, é, para mim, um claro exemplo do que acontece quando os limites da paixão pelo esporte são ultrapassados, e as frustrações cotidianas são projetadas naquilo que deveria ser apenas uma forma de entretenimento. Vagner é um ótimo jogador - e ótimos jogadores têm fases boas e ruins. Foi responsável por muitos dos gols que tiraram o Palmeiras da segunda divisão. Deve ter jogado mal, sei lá, não acompanho tanto assim o desempenho dos atletas. Mas mesmo que tivesse feito as piores partidas de sua vida, nada, absolutamente nada poderia justificar a estupidez e intolerência do comportamento dos torcedores no caso em questão. E o pior de tudo é que comentei esse caso com três pessoas diferentes, em momentos diferentes, e três vezes ouvi algo como "apanhou pouco, estava fazendo corpo mole".
Eu não sei até que ponto pode ir o ódio ou a frustração de ver meu time perder um campeonato, ou um jogador em quem eu depositava confiança perder um gol incrível ou jogar abaixo do que sabe. O que eu sei é que faz parte da minha cidadania entender que isso é só diversão, teatro, espetáculo. Nenhum jogador que atua pelo meu time tem qualquer obrigação contratual ou moral comigo; jogadores são profissionais, atuam por seus clubes e a eles devem satisfações. Não é porque eu compro camisa, vou ao estádio e sustento o mercado da bola que tenho o direito de administrar o meu clube de coração, de escalá-lo, de interferir no seu gerenciamento. Se assim fosse, não precisaríamos de técnicos, de preparadores físicos, de especialistas em futebol. Como torcedor, tenho várias formas de manifestar minha aprovação ou reprovação em relação ao que acontece em campo, ou à forma como meu clube é administrado. Posso votar nas eleições do clube. Posso escrever faixas, fazer protestos, cantar músicas. Posso reclamar de uma substituição ou da presença de algum jogador. Tudo isso está dentro daquilo que qualquer indivíduo pode fazer sem ferir as liberdades individuais dos outros, sem atrapalhar a vida de outras pessoas.
Entretanto, como torcedor, não tenho o direito de fiscalizar a vida pessoal de jogadores do meu clube. Se o jogador corresponde ou não às expectativas de atuação em campo, é uma coisa. Se ele tem uma vida noturna intensa, é outra, e ninguém tem nada a ver com isso. Se isso atrapalha o rendimento do atleta, cabe ao clube e ao técnico avaliarem e tomarem as medidas cabíveis. Ponto final. É mais do que óbvio que aquilo que acontece fora do espetáculo, fora do âmbito da partida, dos treinos, das concentrações, não é problema do torcedor. Não aceito bronca nem do meu chefe imediato quando estou em casa com minha família.
Se não tenho nada a ver com o que acontece com um cidadão em sua vida pessoal, tanto menos posso tentar agredi-lo, por qualquer que seja o motivo. Não há justificativa para uso da violência contra um indivíduo que não me agrediu. Minhas insatisfações pessoais não podem ser resolvidas por meio da violência física, e esse é um princípio básico da vida em sociedade. Não interessa se o cidadão fez ou não corpo mole, se honrou ou não a camisa, se ama ou não o clube como eu amo, se ganha exorbitâncias ou salário de fome: não tenho o direito de ofendê-lo, de agredi-lo, de ameaçá-lo. Isso é crime, isso está fora do comportamento social saudável. Ainda mais: não é inteligente, por parte do torcedor, criar esse clima de cobrança ostensiva e intranquilidade. Nem todas as pessoas reagem da mesma forma quando estão acuadas, e muitas delas, inclusive, perdem toda a motivação quando são atacadas em sua dignidade. Assim aconteceu com Edilson, que abandonou o Corinthians depois de ser agredido pela torcida, numa atitude que considero exemplar. A conivência com a violência, às vezes, é pior que a própria violência, e foi isso que me assustou ao ouvir as pessoas defendendo a imbecilidade dos torcedores que foram presos.
Por fim, quero deixar registrado que a paixão pelo futebol, que rende muito dinheiro a não muitas pessoas, tem sido usada como desculpa esfarrapada para atos covardes, injustificáveis e até monstruosos de torcedores - se é que se pode chamá-los assim - ao longo dos anos. Basta fazer uma pesquisa simples na rede: ônibus do Coritiba destruído por torcedores do Vasco, mortes que acontecem em brigas de torcida agendadas pelo orkut(!), destruição da avenida Paulista pelo vandalismo na comemoração do título da Libertadores pelo São Paulo(!), troca de pauladas e morte em final de campeonato juvenil(!). Para cada um esses casos citados, seria interessante e plenamente adequado que todos os atletas e pessoas que vivem de futebol fizessem uma greve ou paralisação de uma semana em protesto. Nem toda a alegria e tristeza que o futebol nos proporcionou nos últimos 80 anos pode justificar a morte brutal de uma pessoa, por exemplo. Infelizmente, a imprensa e as autoridades não levam esses casos tão a sério, talvez por medo de desagradar os torcedores, que são poder de consumo e possibilidade de votos. O espetáculo não pode parar; mas se ele envolve insanidade, estupidez, vandalismo, covardia, violência, ele para. Porque senão deixa de ser espetáculo e vira barbárie.
(Alguns dirão, com razão, que a sociedade do espetáculo acaba sempre sendo a sociedade da barbárie. Quero acreditar que seja possível um equilíbrio, um consenso, embora no fundo saiba que isso é uma manifestação de esperança, não uma análise racional).