sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

É preciso ler racionalmente as tragédias

Venho acompanhando pela televisão e pela internete a terrível situação das cidades serranas do Rio de Janeiro, de vários bairros da minha cidade, e de várias localidades pelo Brasil afora que sofreram com as chuvas de janeiro. O que tenho visto e ouvido é sempre muito triste, porque as perdas humanas e materiais foram muito grandes.
Nesses momentos em que vemos pessoas perderem seus entes queridos, suas casas, seus pertences, ficamos com um sentimento de injustiça, de comiseração, pensando que as coisas poderiam e deveriam ser diferentes. Isso é natural do ser humano de bom coração, que desenvolve uma das emoções mais fundamentais para a sobrevivência social de nossa espécie, que é a compaixão.
Mas este momento é muito delicado, e a compaixão precisa se transformar em ação efetiva. E quando as emoções precisam se transformar em ações efetivas, entra o elemento racional, para organizar e tornar produtivos os investimentos de energia que estamos dispostos a empregar para minimizar esse tipo de tragédia.
Nesse momento de racionalidade, de tentativa de entendimento, de utilização da inteligência do homem para o bem do próximo, não podemos deixar que as emoções travem a lucidez, porque isso só pioraria a situação. É preciso que a compreensão dos fenômenos que causaram essas tragédias seja lúcida, transparente, minimamente desapaixonada. E o que me preocupa é que não tem havido discussão lúcida na mídia, que é a principal fonte de informação e orientação sobre os acontecimentos que se sucederam.
O que tenho visto na mídia é a substituição da lucidez por uma indignação seletiva, quando não pela simples histeria de procurar culpados pelas desgraças. Qualquer pessoa de bom senso entende que apontar culpados não contribui. Apontar culpados pode funcionar como um fator de alívio para as pessoas indignadas e chateadas com o que aconteceu; os bodes expiatórios sempre têm uma função de catalisadores da raiva e agressividade coletivas. Entretanto, obviamente acaba se tornando uma forma de compreender menos, de entender mal. Canalisar agressividade nada tem a ver com analisar racionalmente um problema e procurar paliativos, soluções e medidas eficientes.
Uma tragédia não começa no dia em que cai sobre tudo a sua volta. Ela é resultado de anos e anos de erros, de imperfeições, de problemas, que criam uma situação perigosa. Essa iminência do perigo alia-se a circunstâncias desfavoráveis em determinados momentos, e aí é que explodem os problemas graves. Mas é preciso que fique claro que uma destruição de tal extensão NÃO PODE SER OBRA DE UM ÚNICO FATOR ISOLADO. Ou são considerados os diversos fatores que levaram ao problema, ou o problema nunca será sanado nem minimizado. Quando as pessoas insistem em apontar para um fator isolado, por questões morais, políticas, ideológicas, elas estão, na verdade, atrapalhando a busca de soluções.
Vejo e ouço pessoas falarem das responsabilidades dos governos federal, estadual, municipal. Ok. É um fator a se observar. MAS NÃO É O ÚNICO. Não se resolvem problemas de infraestrutura das cidades apenas com investimentos em prevenção de tragédias, e isso por vários motivos. Em primeiro lugar, porque não é uma questão de quantidade de dinheiro investido em um período específico, mas de projeto a longo prazo, focando exatamente o problema a ser solucionado. Em segundo lugar, porque não é possível prever com toda essa exatidão qual seria exatamente o problema a ser solucionado; há certa imprevisibilidade nas tragédias naturais, que podemos minimizar com a tecnologia, mas ainda não conseguimos, nem nos países mais avançados do mundo, eliminar por completo. Em terceiro lugar, porque mesmo os investimentos em prevenção de tragédias são paliativos num contexto mundial de mudança climática constante e grandes alterações regionais. Em quarto lugar, porque há problemas estruturais que são mais profundos. São Paulo, minha cidade, é um exemplo disso. As enchentes continuarão infelizmente acontecendo por muito tempo, seja qual for o investimento do Estado ou da Prefeitura, porque a cidade foi construída de forma desordenada, sem um plano que previsse situações como as que temos vivido. Não se pode dizer que uma ou outra administração específica, ou mesmo que o Estado apenas, sejam culpados de um fenômeno cultural complexo, a saber, a ocupação anárquica da área e o crescimento sem planejamento da metrópole. Por fim, algo que é óbvio, embora o óbvio pareça às vezes uma ofensa a certas inteligências: soa completamente absurdo pensar que qualquer governante queira que essas tragédias aconteçam, ou que não queira evitá-las. Há erros, há opções discutíveis, mas não dá para imaginar uma insensibilidade tão monstruosa por parte dos nossos representantes de, intencionalmente, deixarem acontecer as perdas que vêm acontecendo.
Vejo e ouço pessoas falarem sobre a responsabilidade dos próprios habitantes que moram nas áreas alagadas. Ok. É outro fator a se observar. Ressalva-se, apenas, que é preciso verificar se foram somente residências em áreas consideradas de risco que foram atingidas, ou se os problemas foram tão graves que atingiram locais impensáveis. Mas, voltando às áreas perigosas, é certo que construir uma casa numa região de risco é, de certa forma, assumir esse risco para si e para a própria família. Mas a questão não se resolve assim, apontando as pessoas como algozes de si mesmas. Ao que me conste, ninguém quer morrer, nem perder suas pessoas amadas. É preciso saber por que as pessoas estavam nessa condição de risco. Será que todos têm alternativas? Será que todos têm informação, orientação? Será que as desocupações necessárias para salvar a vida de muitos foram barradas por serem inconvenientes politicamente? Será que os técnicos encarregados de liberar as autorizações para as construções foram profissionalmente corretos? Será que os projetos de tirar as famílias das áreas perigosas não feririam interesses econômicos de empresas, especuladores imobiliários, e até das próprias famílias? Todos esses são fatores a se considerar, antes que se aponte para a vítima como ÚNICO CULPADO de sua queda. E mesmo que se constate que houve imprudência por parte da vítima, isso nos impede, enquanto seres de mesma condição humana, de querer ajúdá-la, orientá-la, zelar por seu bem-estar? Isso nos desobriga de repensarmos as condições em que tudo aconteceu? Isso nos oferece justificativa para não nos comovermos com a situação em que as pessoas ficaram? (Sempre lembrando que é preciso saber se só pessoas em áreas consideradas de risco foram atingidas, ou se a extensão das perdas atingiu também quem estava em locais até então considerados seguros).
E há muitas outras coisas a se considerar. Há que se considerar até que ponto as mudanças climáticas que vivenciamos não são responsabilidade da humanidade como um todo, por suas opções antiecológicas. Há que se considerar a ação individual ética de cada um, ou seja, até que ponto o lixo que o indivíduo joga no bueiro achando que nada vai acontecer não se transforma em uma parte do problema mais amplo, ainda que seja uma pequena parte. Há que se considerar se o estilo de vida das pessoas, que é suicida em vários aspectos, como no trato da própria saúde, não precisa se tornar mais respeitoso em relação aos riscos em que são colocadas as próprias pessoas e as que as rodeiam: até que ponto vale a pena economizar para ter celular, roupa bonita, carro, e colocar em risco a própria integridade física - seja por tragédias naturais, ou tiroteios, ou mesmo por desatenção em relação a outros aspectos práticos da vida?
Sem considerar com muito cuidado, com muita lucidez, com muito carinho, todos esses fatores, e sem avaliar como cada um deles poderia ser minimizado para que novas tragédias não venham a acontecer, não chegaremos a nenhuma conclusão produtiva. O que teremos é demagogia, histeria, sensacionalismo.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

As subcelebridades e o nada

Numa entrevista com o professor Maurício Tavares, da UFBA, vi cunhada a expressão subcelebridade.
Adorei.
Há tempos venho me perguntando qual o interesse que certas figuras despertam na mídia, e o porquê desse interesse. Lança-se um cantor ou uma cantora qualquer, e ele rapidamente é alçado ao estrelato, ganha manchetes, factóides, destaque, enfim, um enorme espaço nos veículos de comunicação. Um espaço que é caro, que é importante, que influencia cabeças e que tem um significado coletivo muito arraigado na população.
Pois é, aí você vê o trabalho desse cantor ou cantora, e não consegue identificar nada de aproveitável. Você pesquisa sobre a vida desse cantor ou cantora, e não encontra nada: ou ele ainda nem viveu direito, ou sua experiência em nada difere dos milhares de outros na mesma profissão. Você lê entrevistas ou testemunha aparições televisivas desse cantor ou cantora e continua na mesma: nada acrescenta, nada traz de novo, nada traz de interessante, positivo, edificante ou mesmo contestador. Por fim, você fica como eu, se perguntando o que é que as pessoas viram nessa figura.
E assim acontece com cantores, cantoras, atores, atrizes, apresentadores, apresentadoras, modelos, artistas de todo o tipo.
E o que é pior é que isso começa a acontecer com pessoas que não têm nenhum trabalho, nada a apresentar, nenhum talento. Não cantam, não atuam, não sabem nada em profundidade, não apresentam ideias novas nem trabalhos artísticos consistentes. E ganham uma parcela do espaço midiático.
E o que é pior ainda é que essas pessoas sem nenhum talento se metem a cantar, atuar, apresentar-se. E por quê? Porque a mídia apostou durante anos em cantores, atores, apresentadores sem talento nenhum. Então é possível nivelar-se a essas celebridades midiáticas atuais partindo do zero, porque elas praticamente nunca saíram do zero. É óbvio que ninguém aqui está falando de cantoras de verdade, como Maria Rita, por exemplo. Mas a Maria Rita não é o que é por ser celebridade, porque NÃO PRECISA SÊ-LO SE NÃO QUISER, porque não depende disso.
Mas há uma situação ainda pior, ainda mais tosca e vergonhosa para nossa sociedade, que é quando algumas pessoas que não têm nenhum talento ganham espaço na mídia, esse espaço tão importante na formação dos jovens, para exibir exatamente seu vazio, sua falta de talento, seu "nada" pessoal. Ou seja, quando a pessoa vira celebridade porque é burra, porque é incapaz, porque é bizarra. Chegamos ao cúmulo de vibrar com a falta de talento, a estupidez e a incapacidade.
Mas talvez haja algo ainda pior, que não merece muito comentário, que é quando uma pessoa que não representa nem acrescenta nada ganha esse espaço da mídia fazendo... nada. Os fotógrafos esmeram-se em tirar fotos da pessoa fazendo... nada. As revistas trazem manchetes sobre a pessoa fazendo... nada. Você lê uma chamada na internet, ou um anúncio numa coluna de revista de jornal sobre a pessoa fazendo... nada.
É claro que surgem milhões de pessoas que decidem, de uma hora para outra, que, se não é preciso fazer nada para ganhar dinheiro e ser reconhecido, elas também podem. E essas pessoas aceitam qualquer coisa que se lhes dê, aceitam fazer qualquer papel, aceitam qualquer enrascada ou armadilha para conseguirem atingir esse nível ideal de inutilidade premiada. Isso só pode ter um nome, que o Maurício Tavares usa muito bem: subcelebridade.
É claro, também, que figuras como essas dependem muito mais do investimento midiático, da compra de espaços de aparição pública, das mentiras criadas em torno de sua vida, que da produção de algo com qualquer valor social ou estético.
Mas, voltando ao segundo parágrafo, eu me pergunto: esse espaço da mídia, que é caro, importante, influencia cabeças, tem um significado coletivo; esse espaço que guia, manipula e pauta a opinião pública; esse espaço que tem função educativa, política, ética; esse espaço pode ser ocupado pelo nada?