domingo, 20 de fevereiro de 2011

Tempestades

Na minha religião, as tempestades são respeitadas. Quando os primeiros estrondos surgem depois do céu escurecido, preparo-me para um recolhimento espiritual. Desligo todos os aparelhos eletrônicos, todas as lâmpadas, todas as invenções humanas que utilizam eletricidade. Bem sei que a ousadia de mantê-las ligadas pode ser punida com a raiva divina, capaz de ceifar suas vidas úteis de forma definitiva. Dentro de mim, desligo também uma série de coisas. O choque constante e violento da água contra as janelas fechadas deve ser ouvido com atenção, em tudo o que tem a dizer. Os raios e os trovões merecem ser observados e ouvidos, mas sem que percebam. O medo de ser atingido deve levar a uma imobilidade física catártica. Só é possível sentir os arrepios de susto depois dos relâmpagos se nos mantivermos silenciosamente atentos, deitados ou sentados, desprovidos de qualquer intenção posterior (seja sair, lavar louça, ler, ver televisão) ou incômodo anterior (seja culpa, ansiedade, raiva, tédio). É preciso abandonar a mente ao temor primitivo de nossos ancentrais nas cavernas. É preciso pensar que nossos escudos de proteção (o teto, as paredes, os para-raios) poderiam, como todas as criações da espécie humana, falhar diante da perene demonstração de força dos elementos. Só quem compreende misticamente o sentido da tempestade é capaz de beber desse estranho e belo medo entranhado no inconsciente coletivo, poderoso como o que sentimos ao imaginar os piores vilões, os maiores heróis, e os deuses em fúria.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Trote

Quando era criança e meus amigos me chamavam para jogar bola, bolinha de gude ou taco na rua, não foram raras as vezes em que preferi ficar em casa, isolado de todos, lendo. Para algumas coisas, acho que sempre fui uma alma velha; a idade madura, na verdade, não foi mais que o reconhecimento de uma identidade que, por vezes, neguei.
Talvez seja essa falta de espírito de adolescente a grande razão de meus fracassos na juventude e minhas conquistas na maturidade. Mas isso é questão para uma postagem mais longa. O que me importa, aqui, é revelar como essa tendência`prematura à seriedade e ao comedimento sempre me impediu de dar aval a um dos ritos de passagem de nossa sociedade.
Critiquem-me, discordem, vituperem, riam de mim, pouco importa. Serei sincero: sempre achei o trote uma babaquice. Nunca entendi, nunca vi graça, nunca quis fazer com os outros. Para mim, a única coisa que ele representava era a possibilidade de exercitar preponderância física e psicológica sobre um grupo de novatos, e, não raro, de descarregar instintos mais violentos. Talvez eu tenha me divertido com uma ou outra situação, mas aquilo nunca foi importante para mim.
Fui "trotado" três vezes: quando entrei na escola técnica, quando entrei na Filosofia da USP e quando retornei à USP para fazer Letras. A terceira não conta, porque os veteranos praticamente nada fizeram comigo, visto que eu tinha mais tempo de Universidade que a maioria deles e aquilo não era exatamente um ingresso para mim. Mas eles pintaram meu braço, numa estúpida concessão que fiz, apenas para parecer menos antipático. A segunda foi estimulada por uma ex-namorada, que me levou aos veteranos de Filosofia e Sociais. Fui para casa todo pintado, para não ter de contrariá-la e parecer menos ranzinza do que sou; outra vez, fui bobo. O primeiro trote era bem mais violento e invasivo. Além de me pintarem, jogaram um creme(?) metálico no meu rosto, que causou irritação na pele por alguns dias. Dessas experiências, que vivi de forma submissa e passiva, não tirei nada, nem em termos de integração com os veteranos, nem em termos de satisfação pessoal por participar da brincadeira.
Sou muito chato, admito. Não bebo, sou tímido e abomino atitudes invasivas e ameaças. Para mim, trote não serve para nada, só para encher o saco, e me deixar com raiva por não ter enfrentado com coragem a intimidação que sofri. Mas esta não é uma posição apenas em relação à minha vivência de trotes. Eu não vejo graça neles em absoluto. Hoje, vi trotes sendo aplicados na USP, no Mackenzie (em frente à minha casa) e no caminho do ônibus que tomei à tarde. A mesma coisa de sempre. Calouros intimidados, alguns poucos se divertindo, voltando para casa cobertos de tinta e sem descobrir nada de novo, produtivo ou interessante sobre a graduação em que acabavam de ingressar. Veteranos usando os mais novos como marionetes de espetáculos cretinos e constrangedores. Honestamente, fiquei chateado com aquilo. Vinte anos de universidade e as pessoas ainda não conseguiram criar uma recepção que não passe por essas brincadeiras surradas.
Respeito as pessoas que gostam do trote e entendem que ele representa uma perspectiva de integração e uma forma de tornar marcante o primeiro contato de um estudante com sua nova casa. Sinceramente, acho que há muitas experiências que são positivas em relação a isso, e conheço gente que gostou de levar trote e gosta de aplicá-lo. Mas isso depende de uma certa disposição de espírito para a novidade e uma certa tolerância com a brincadeira que, definitivamente, não possuo e nunca possuí. E respeitar a posição alheia não significa concordar com ela.
Eu passei pelos meninos hoje com vontade de ter em mãos um pano ou guardanapo qualquer e uma garrafa com água, para ajudá-los a limpar a sujeira que ficou sobre seus corpos. Pensei que, se fosse uma pessoa corajosa, sabotaria o trote da FFLCH oferecendo condições para os calouros se limparem e voltarem para casa com a aparência que quisessem voltar. Como não tenho essa coragem toda, limito-me a manifestar minhas discordâncias neste espaço protegido da internete. Mas, pelo menos, tenho coragem de admitir que sou um careta conservador em relação a recepções de calouros. E que, se nunca consegui relativizar essa opinião, foi simplesmente porque nunca quis, e nunca ninguém me convenceu a querer.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Torcer, acompanhar, apreciar

Dividi algumas opiniões no Facebook com um amigo meu sobre o Australian Open. O mais bacana desse nosso diálogo internético foi que ninguém ficou agitado, defendendo um ou outro atleta, fazendo bravata ou exagerando observações. Parece-me que ambos queríamos ver bom tênis, esporte bem praticado, jogadas disputadas, enfim, algo que valesse a pena curtir na madrugada.
Eu fiquei pensando comigo mesmo, depois, se não seria esse o jeito certo de torcer. Então concluí que não se trata de certo e de errado, não se pode predeterminar como as pessoas devem "sentir" um espetáculo esportivo. Trata-se, na verdade, de entender as formas de envolvimento do espectador.
Acho que a própria palavra "espectador" no lugar de "torcedor" já antecipa um pouco meu raciocínio. É que eu acredito que algumas pessoas, quando estão vendo futebol, vôlei, F1, basquete, hóquei, etc., torcem, ou seja, escolhem um lado e vibram com jogadas que beneficiam o lado escolhido e com jogadas que prejudicam o adversário. Esse comportamento é característico do torcedor fanático, das torcidas organizadas, do sujeito que "veste a camisa", simbolicamente ou literalmente. Há gradações, evidentemente, que vão do cara que não usa uma camiseta verde por ser corintiano até o sujeito que nem torce tanto assim e quando vê que seu time está perdendo, já se desinteressa. Mas acho que é possível identificar o comportamento geral do torcedor como de um espectador que tem alterações emocionais mais fortes conforme seu time/atleta de coração aproxime-se ou distancie-se da vitória.
Nem todo mundo é assim. Existem também pessoas que gostam de um clube, de um atleta, de uma equipe ou seleção, mas não consideram importante nem prazeroso ter reações emocionais fortes. Torcem para o Corinthians, o São Paulo, o Flamengo, o Santos, o Cruzeiro, mas não vestem camisetas do clube, não compram chaveirinhos, não sabem quais são as chances de título, não se inscrevem no tuíter, nem nada. Essas pessoas não se enquadram no comportamento anterior. Elas acompanham um jogo de futebol ou vôlei ou basquete até onde têm paciência e consideram produtivo, mas podem perfeitamente ser interrompidas por telefonemas e chamados, ou simplesmente ir fazer outra coisa.
No mesmo balaio desses "torcedores mornos", eu incluiria aquelas pessoas que não têm uma equipe de coração específica, ou um atleta que admirem em especial. Comportam-se como o gremista assistindo a um jogo da terceira divisão de Pernambuco: apenas observam o que está acontecendo, gostam de uma ou outra jogada, pegam no sono quando a coisa está muito feia. Não assistem ao espetáculo esportivo para torcer para um lado, mas sim para acompanhar alguma narrativa que faz algum sentido no meio do vazio do não-fazer-nada (mais ou menos como os que veem os capítulos intermediários e sem peripécias de novelas e seriados). Esse comportamento geral eu classificaria como o do "acompanhador": ele segue a narrativa do jogo, do desempenho da equipe, das conquistas/derrotas de um atleta, mas isso não o mobiliza emocionalmente a ponto de colocá-lo em estado de tensão, ou de fazê-lo vibrar emocionalmente fora do que lhe é comum.
Por fim, acho que há um terceiro comportamento geral em relação a espetáculos esportivos. Esse comportamento pode aparecer tanto no torcedor como no "acompanhador", mas precisa de uma brecha: no caso do primeiro, precisa de menos fanatismo e envolvimento emocional; no caso do segundo, precisa de mais investimento de atenção e maior atribuição de importância ao espetáculo. Trata-se da apreciação (apreciar é, etimologicamente, "colocar preço em", ou seja, atribuir valor a), forma de se relacionar com o acontecimento esportivo que implica reconhecimento de aspectos estéticos e poéticos no desenvolvimento do mesmo.
Apreciar um jogo de futebol é diferente de torcer. Quando simplesmente torcemos, podemos odiar Zidane, porque seus gols nos derrubaram numa final de Copa do Mundo. Quando apreciamos um jogo de futebol, somos obrigados a reconhecer a beleza e o talento de Zidane, mesmo que ele vista a camisa adversária. Assim também ocorre em outros esportes. Podemos torcer para a Rússia, mas temos de aplaudir o Dream Team. Podemos torcer para Ben Johnson, mas não é possível aplaudi-lo por vencer dopado. Quando apreciamos um espetáculo esportivo (e é por isso que gosto de usar a noção de "espetáculo"), é porque valorizamos a história daquele esporte, a competição dentro das regras, a inteligência de procurar estratégias, o empenho de se dedicar até o último momento, a decência de proporcionar a quem pagou ingresso ou faz parte da plateia eletrônica civilidade e respeito em relação ao adversário.
Apreciar também é diferente de meramente acompanhar. Quem meramente acompanha, cria uma certa distância do espetáculo, perde determinadas concentração e capacidade de observação que são próprias de quem está envolvido com o que vê. Podemos acompanhar o Brasil na Copa do Mundo por n razões, mas, se realmente apreciamos o futebol como espetáculo, não nos desinteressamos imediatamente após a eliminação. Ainda persistimos como espectadores para ver gols bonitos, jogadas empolgantes, nós táticos. E principalmente para ver talento, venha de onde vier (Messi, Cristiano Ronaldo, Zidane, Maradona..).
Creio que a apreciação, como é menos irracional que a torcida, não seja tão conveniente à forma como o esporte, em geral, é vendido na sociedade do espetáculo. A apreciação não fideliza o cliente em relação à marca. O cliente torna-se questionador: "sou corintiano, mas o futebol que meu time joga não vale pagar 500 reais num ingresso"; "gosto do tênis do Murray, mas Djoko mereceu vencer"; "o nado de Ian Thorpe é mais bonito que o de Phelps, mesmo que este último seja realmente invencível"; "ganhamos a Copa do Mundo em 94, mas o futebol da seleção de 82 era mais vistoso". E o cliente questionador quer qualidade, não preenchimento de suas angústias emocionais. Talvez seja por isso que nunca me dei bem com o estilo Galvão Bueno de narrar, nem com a obrigação de entregar-se de corpo e alma a um time só (comprei, por achar bonitas e coloridas, camisas de vários times diferentes de futebol), nem com a falta de educação de algumas hordas estúpidas que agridem verbalmente ou fisicamente os atletas, e muito menos com a transformação do esporte em palco alegórico de disputas políticas e babaquices nacionalistas. Talvez seja por isso que eu e meu amigo pudemos comentar, com equilíbrio e bom humor, tantos jogos bonitos, que vimos por serem bonitos, acima de tudo.