domingo, 11 de setembro de 2011

O entregador

Dia desses fui com a patroa fazer compras em mercado próximo de casa, mas não tão próximo que possibilitasse trazermos os produtos no braço. Perguntamos, então, a um dos caixas, se havia serviço de entrega; isso definiria o tamanho de nossa compra. O rapaz nos mandou falar com outro empregado, que estava ali perto. Esse era o entregador. Ele garantiu que conseguiria levar os produtos se fizéssemos a compra até as 19h00.
Como bom capricorniano, disciplinado e chatíssimo, fiquei calculando o tempo até que, perto de 15 minutos antes do prazo, encostávamos nosso carrinho em um dos caixas do mercado, para passar as mercadorias. Esse processo demorou um pouco, e, enquanto esperávamos, notei que o entregador me olhava com certa constância, tentando ler algum comportamento ou sacar algum traço que lhe seria importante. Pagos todos os itens, o rapaz sinalizou o funcionário do caixa alguma coisa e me chamou. Disse-me que a entrega implicava acréscimo de 6 reais na compra (disso eu já sabia) e pediu para que eu não pagasse esse dinheiro com a conta no caixa, e sim para ele, depois. Como para mim era exatamente a mesma coisa, aceitei, e na verdade nem estava ligando muito para isso. Estava preocupado com o fato de que iríamos a pé para casa, e as compras, indo de carro, chegariam primeiro.
Foi então que descobri algo que até então não supunha: as compras não iriam de carro. O rapaz colocaria as caixas em um carrinho de entregas, desses que se usam para carregar mercadorias que abastecem o estoque. Ele carregaria as três caixas de coisas que compramos naquele carrinho até chegar em nossa casa. Portanto, caminharíamos juntos até lá.
Confesso que fiquei mais tranquilo de saber que as compras não chegariam primeiro, mas pareceu-me esforço demais para alguém andar sete a oito quarteirões movimentados e de calçadas acidentadas empurrando um carrinho rústico como aquele com tanto peso em cima. Fiquei pensando que, se eu trabalhasse nisso e fizesse vinte entregas por dia, ficaria tão cansado que dormiria umas dez horas seguidas.
No caminho, vim conversando com o rapaz. Descobri muitas coisas. Ele era paraibano, com pouco tempo de São Paulo. Ele ganhava 550 reais por mês para fazer entregas para o mercado, sem direito a vale-transporte nem vale-alimentação. Os seis reais que eu pagaria no caixa ficariam todos para a empresa, pois não importava o número de entregas realizadas para o cômputo do salário final. Ele explicou que, pagando a ele, poderia ter um troco a mais para o transporte e outras necessidades. Disse que era torcedor do Treze, na Paraíba, do Flamengo, no Brasil, e do Corinthians, em São Paulo. Disse-me também muitas outras coisas de que não lembro, pois estava andando mais rápido que o meu normal para acompanhá-lo, e estava um pouco cansado.
Chegamos em casa, e ele levou as caixas até a porta do meu apartamento, enquanto fiquei no térreo, para vigiar o carrinho, que não cabia no elevador. Quando desceu, perguntei se tudo estava entregue, e ele me disse, um tanto desconfiado, que sim, e que minha mulher lhe havia dito que eu pagaria os seis reais na saída. Não fiquei ofendido; sei quanto esse dinheiro era importante para ele.
Dei uma nota dez e não quis troco. Ele saiu contente e agradeceu, desejando-me um bom fim de semana. Mas eu não me senti nada bem. Fiquei pensando no valor das coisas, para mim e para ele. O valor econômico do serviço realizado. O valor moral de pagá-lo "por fora". O valor social de colaborar com alguém que trabalha em condições tão aviltantes. O valor político de conhecer as condições em que um trabalho é realizado, e não apenas o resultado que ele produz em meu benefício. Fiquei pensando em tudo isso, e não cheguei a nenhuma conclusão, mas solidifiquei a certeza de que ainda há muito a se fazer para que se possa promover justiça social de fato no Brasil.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Meu país

Dia 7 de setembro é data em que pessoas de todo o Brasil comemoram ou protestam, projetando e desejando um país melhor. Um anseio dessa ordem é sempre justo e benéfico. Mas não fico contente quando pessoas se utilizam desse anseio como guarda-chuva ideológico para falar mal do Brasil, como se não vivessem aqui ou não tivessem nenhuma relação com a nação e sua cultura.
Li recentemente alguma coisa sobre a Jante Law, conjunto de princípios que regem as relações humanas em países nórdicos europeus - aqueles que são considerados os mais felizes e tranquilos do mundo. Entre as muitas ideias interessantes que considero válidas para qualquer sociedade, tomei como aforismo uma em especial: "Não pense que você é melhor do que nós". Um pouco de bom senso e de atenção a essa constatação quase elementar sobre a natureza humana seria o suficiente para que muitos brasileiros nos poupassem das coisas estúpidas que dizem sobre meu país.
Eu não consigo mais levar a sério quando as pessoas dizem: no Brasil, nada funciona; os americanos é que são isso; os japoneses ou alemães ou italianos é que são aquilo; e coisas do gênero. Eu não consigo conceber que as pessoas ainda acreditem que corrupção, violência, tráfico ou incivilidade sejam problemas inexistentes nas sociedades que consideram melhores que a nossa. Eu não engulo quem sai do Brasil, fica lá fora um tempão, ganha dinheiro, e fica dizendo que o país não vai pra frente, que não tem vínculo com sua pátria, e coisas do tipo.
Eu nasci neste país, eu cresci nesta cultura, eu falo esta língua, eu aprendi a ser o que sou com estas pessoas. Sou louco pela música brasileira, pela culinária brasileira, pela natureza brasileira. As mulheres do Brasil são lindas, as pessoas do Brasil são acolhedoras, o ritmo do Brasil é cativante. Desejo um dia visitar Nova York, Paris, Cairo, sei lá, tantos lugares!, mas eu ainda serei filho desta experiência aqui, destes valores, desta forma de ver e viver o mundo, com muito orgulho.
Eu não tenho vergonha do meu país. Tem gente que considera o máximo tornar-se europeu ou americano ou construir a vida em outro lugar. Respeito as decisões de cada um, mas tenho convicção de que viver aqui ou em outras bandas implica as mesmas etapas de toda a experiência humana: trabalhar, criar relações, cuidar da família etc. E essas coisas podem dar certo ou não no Brasil ou em qualquer outro canto do planeta. Mas muitas pessoas não entendem assim, e acham que quem conseguiu sair do Brasil tem maior valor ou competência que quem ficou.
Por favor, se você não gosta do Brasil, não fale mal dele. É ridículo. Bem ou mal, foram estas águas e estes ares, e estes pratos de arroz com feijão e farinha, que puseram você em pé antes que sequer sonhasse em alçar outros voos. O Brasil não é o que passa no jornal de televisão, e nem o que a elite pensa do povo que trabalha para ela. Meu país é Minas, Rio, Bahia, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Pará, Ceará, Pernambuco. É gente demais para generalizar de forma tão redutora e mal-intencionada. É mediocridade demais achar que toda essa gente é má, ou inferior, ou ingênua.
O Brasil não deveria ser, para as pessoas, essa concepção vazia, fabricada pela superficialidade e pelo descompromisso ético de parte da sua elite, que dá margem a todo tipo de preenchimento ideológico pejorativo. Conhecer o Brasil deveria significar, para quem insiste em falar mal de nós e de si mesmo, uma forma de conhecer o sangue que corre nas próprias veias e a sustância que orienta o próprio estar no mundo.
Eu não fui a nenhum desfile no 7 de setembro. Mas, ao pensar com carinho e profundidade no Brasil, eu fui fundo no que sou, e o orgulho que senti de me saber parte desta nação vale a empunhadura de uma bandeira, em qualquer parte do mundo, em qualquer momento da vida.