quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Deus

Se você colocasse uma câmera em um lugar qualquer do mundo não imediatamente acessível ao ser humano, provavelmente conseguiria filmar algum tipo de vida formando-se e protegendo-se em grupos e sistemas. Que tipo de vida seria esse? Poderiam ser criaturas como pequenos insetos, peixes circulando em cardumes, plantas parasitando outras plantas, mamíferos em semivigília para antecipar o ataque dos predadores. Seja qual for o formato desse ser, seja qual for a enformação dessa vida, o fato é que ela estará, sempre, fragilmente, equilibrando-se sobre uma corda bamba. Para esses notáveis batalhadores, conviver com a iminência do desaparecimento, da morte, da destruição, é parte de uma experiência evolutiva instintiva da qual, mesmo não tendo consciência, eles são os legítimos atualizadores e mantenedores em sua singularidade individual.
Quando um bando de roedores atravessa desavisadamente um caminho cheio de sinuosidades e esconderijos, onde uma serpente silenciosa posiciona-se para obter sua presa do dia, não há garantias, nem seguros, nem leis, nem justiça, nem nada. Daqueles vinte ou trinta que passarão, um ficará, e não é possível dizer qual seja. Aos outros, restará a fuga, a reorganização do grupo, a triste percepção da perda de um membro, e a continuidade da jornada. E a inteligência do instinto, a avisar: deve-se estar atento, pois é preciso que continuemos no mundo.
Por que aquele, e não outro? Por que x e y sobrevivem a uma inundação, e não a ou b? Por que, das tantas moscas que sobrevoam os restos nos matagais, justamente aquelas tinham de enredar numa teia de aranha, e outras prosseguiriam com sua rotina de alimentação e reprodução? Não sei se é possível responder a essas especulações, e talvez elas nem façam realmente sentido, uma vez que procuram encontrar padrões numa realidade ainda não suficientemente desvendada. O que considero, na verdade, mais intrigante nisso tudo é que, embora tenhamos muitas vezes a convicção de que, pelo menos no espaço de tempo em que realizamos nossas atividades cotidianas, nosso lugar no universo está garantido, estamos, provavelmente, na mesma situação dos roedores do parágrafo anterior. Vivemos num mundo em que, caminhando por dentre multidões, ou fechados em fantasias de segurança, somos absolutamente vulneráveis. Menos que as moscas, que os coelhos, que a plantas? Talvez. Mas quando um atirador anônimo invade um espaço em que você está, num momento de delírio psicótico, caberá uma mesma indagação aplicável ao reino animal: por que fiquei, e outro se foi? Por que alguns são pegos de surpresa por coisas tão absurdas quanto uma bala perdida ou uma queda aparentemente trivial, enquanto outros escapam de guerras sanguinárias e condições completamente desfavoráveis?
Creio que somos animais, antes de tudo, e que tenhamos essa bela e sábia condição de seguir em frente, sobrevivendo, dando continuidade à espécie. Mas nossa relativa segurança física para o prosseguimento da experiência da vida, construída pelo engenho de inúmeras gerações de nossos antepassados, talvez tenha nos dado uma percepção arrogante do mundo, camuflando a irmandade que temos com todos os seres subsistentes que nos rodeiam, que é baseada, justamente, na quase insignificância perante o todo, aliada à extrema singularidade de permanecer uno e respirando apesar de todas as possibilidades em contrário. É um milagre estar aqui blogando e dividindo a sensação da própria finitude com outros da mesma espécie, num planeta tão rico de vidas e experiências do existir. Se somos animais antes de tudo, somos homens, acima de tudo, e espíritos, em meio a tudo, e expressões de uma inteligência superior, a despeito de tudo.
Nisso se fundamenta meu amor por Deus.

sábado, 5 de novembro de 2011

Pontos a esclarecer

Esses dias, indignado com a confusão e a loucura que se estabeleceram no prédio da faculdade responsável pela minha formação, desabafei em forma de piada no Facebook. Escrevi que a PM da USP tinha achado o assassino de Salomão Hayala (o vilão da novela das 11), com a intenção de dizer que tinha cometido exagero na atuação contra os estudantes pegos com maconha. Não sei se houve ou não exagero na abordagem, mas tenho certeza de que houve na condução.
Enfim, isso pouco importa. O que importa é que alguns leram a piada que fiz, que evidentemente implicava a incorporação de uma voz social conservadora atacando os uspianos, sem compreender a ironia das palavras, ou seja, o fato de que eu me solidarizava com os estudantes. Esse mal entendido gerou desconforto para mim, e tive de tirar a piada do ar, porque os comentários levavam a crer que eu tinha dito uma outra coisa.
Em função disso, quero esclarecer alguns pontos do meu pensamento, para que nada fique por interpretar, e as pessoas tenham clareza de algumas posições.
Primeiro, não sou a favor nem contra a PM no campus da USP. Não tenho nada, a princípio, contra a PM (talvez contra alguns PMs, mas que não creio representarem a insituição como um todo). Só que ainda não me convenci da efetiva necessidade dela, se por tantos anos tivemos uma guarda universitária que, bem ou mal, dava conta do recado. Não era mais simples equipar, preparar e reorganizar a guarda universitária? Mas, enfim, não é, no meu caso, nem questão de rancor, nem de medo, nem de nada. Apenas de entendimento.
Segundo, sou a favor da descriminalização do uso da maconha. Se o policial, na USP ou em qualquer outro lugar, ficar preocupado em prender quem está fumando um baseado, não tem polícia para tanta gente. E acredito que um sujeito enchendo a cara num barzinho e depois saindo com seu carro na madrugada é muito mais pernicioso que alguém que fuma maconha. A polícia precisa se focar em coisas mais importantes e perigosas para a sociedade.
Terceiro, não julgo o caráter das pessoas pelo uso ou não uso de nenhum tipo de droga, ou remédio, ou estimulante. Há canalhas abstêmios e pessoas indescritivelmente lindas que fumam, ou bebem, ou cheiram, ou injetam anabolizantes, ou abusam de remédios. O verdadeiro problema é o tráfico de drogas, não o usuário.
Quarto, acredito que as pessoas acabam criando, pelos padrões de comportamento socialmente observáveis dos estudantes, um estereótipo geral de quem frequenta cada faculdade. O perfil da FFLCH, para a maioria das pessoas, é de um frequentador mais desencanado, questionador, e zeloso da liberdade individual. O do Mackenzie, será outro, o da PUC, outro; e, mesmo dentro da USP, o da Medicina ou do Direito, outro e outro. Quando aconteceram as confusões dentro do campus, vi, li e ouvi pessoas querendo preconceituosamente desqualificar, com base em interpretações pobres e distorcidas derivadas desses estereótipos, tanto o aluno da FFLCH quanto o da USP como um todo. Não acho que podemos coadunar com esse tipo de pensamento. Não somos "vagabundos maconheiros", como algumas pessoas deixaram entender. Somos estudantes. Trabalhamos, lutamos por ideais, produzimos conhecimento, atuamos em vários setores da sociedade. E se alguns ou muitos de nós fumam maconha, não creio que a porcentagem seria diferente se pegássemos festas de elite nos bairros chiques de São Paulo ou pancadões na periferia, ou escolas de luxo e caríssimas e escolas públicas, como parâmetros de comparação. Fuma-se tanto na USP quanto em qualquer outra instituição de ensino, ou de qualquer outra coisa, no Brasil. Se a droga é um problema, é um problema da sociedade como um todo e não de uma suposta impertinência de um grupo social específico.
Quinta e última coisa, só para que fique claro o lugar de onde falo, e não porque eu sinta necessidade de me defender da hipocrisia alheia: eu nunca fumei maconha, eu não bebo, eu nunca utilizei drogas ilícitas. E não acho que seja melhor que ninguém por causa disso.