quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A "certeza" do bem e do mal e o medo que tenho do que vem por aí


Vez por outra, apareço por aqui para tentar elucidar, por meio da escrita, sentimentos que me incomodam. Não é sempre que consigo, e acredito que desta vez não conseguirei. Hoje, gostaria de escrever sobre o radicalismo e a desumanidade.
Convido a você, leitor, que traga à sua mente as pessoas de seu dia a dia de que você consegue agora se lembrar. Com certeza, são muitas, por muitas razões. Se você fizer um esforço de cinco minutos anotando em uma folha de papel, entre as pessoas de seu convívio, poderia listar mais de uma centena. 
Pois bem, imaginemos que você tivesse agora a tarefa de pegar uma outra folha e fazer da forma mais simples possível um risco no meio, dividindo-a em duas partes. Imaginemos que você escrevesse no alto de uma das partes a expressão "pessoas totalmente boas" e no alto de outra das partes a expressão "pessoas realmente más". Agora, imaginemos que você tivesse a incumbência de passar os nomes listados para a parte correspondente.
Nem é preciso tentar fazer isso para perceber, imediatamente, que você não conseguiria enquadrar a grande maioria das pessoas em algum dos lados. Você teria dúvidas, você teria questionamentos, você compararia a ação dessas pessoas às suas ações. Mesmo que as etiquetas da divisão fossem apenas "pessoas boas" e "pessoas más", você não conseguiria, por mais rígidos que fossem seus princípios e mais convictos que fossem seus julgamentos, empreender essa separação.
Ora, se isso acontece com pessoas, isso também acontece com valores, com ideias, com instituições, com grupos, com partidos, com ideologias, com obras de arte, com gostos, com personalidades, com referências. Você jamais conseguirá traçar, de maneira imediata e convicta e sem reparos ou injustiças uma lista perfeitamente fidedigna do que você considera bom ou mau em nenhum setor da civilização, em nenhum âmbito da vida. 
Óbvio? 
Parece que não.
Os tempos são estranhos nesse sentido. A facilidade com que as pessoas determinam o bem e o mal é assustadora. A facilidade com que encontram justificativas para suas questionáveis valorações é assustadora. A facilidade com que simplesmente ignoram os questionamentos ao seu simplismo primário tanto de raciocínio quanto de postura diante do mundo é assustadora.
O mundo parece a certas pessoas tão claramente dividido entre bem e mal que se torna impossível a compreensão de que há outros valores envolvidos nas relações entre os homens, como o certo e o errado, o justo e o injusto, o belo e o feio, o necessário e o desnecessário, o relevante e o irrelevante.
Exemplo: eu praticamente calei meu Face com a prática de retirar da lista de atualizações os perfis que reproduzissem memes degradantes, desumanos, insensíveis em relação ao próximo. Sobrou muito pouca gente. Mas minha saúde mental melhorou muito. É insuportável receber mensagens agressivas contra políticos, celebridades, indivíduos que por alguma razão foram parar na mídia, todo dia, toda hora, sem nada a acrescentar nem uma palavra que remeta à reflexão ou que mobilize para alguma coisa mais dignificante. É horrível gente brincando com a possibilidade de morte de uma pessoa. É horrível gente apontando para defeitos físicos de seus desafetos. É horrível gente alarmando gente com informações não verificadas. É assustador o grau de irresponsabilidade que as pessoas demonstram com os seres humanos com os quais travam contato.
Mas o Face é só um reflexo da face real das pessoas. Isso é mais assustador.
As pessoas realmente acreditam que Deus é evidente e o Diabo também é evidente. 
É incrível como o fundamentalismo encontrou terreno na nossa cultura, sempre tão reconhecida pela diversidade, pela miscigenação, pela mescla. Sim, eu sei, ele sempre esteve lá, no preconceito, na segregação, na violência. Mas como ele conseguiu essa complacência coletiva, esse estatuto de normalidade, depois de tantos anos, e num contexto de ampliação do acesso à informação?
As pessoas podem gostar, por exemplo, de um clube de coração. Isso não lhes dá o direito de agredir, humilhar, ou denegrir indivíduos ligados a um clube adversário. As pessoas podem ter convicção de uma ideologia. Isso não lhes dá o direito de demonizar a ideologia adversária ou distorcer suas propostas. As pessoas podem não gostar dos tucanos ou dos petistas. Isso passa muito longe de frases de efeito cretinas e estúpidas como "todo petista é vagabundo" ou "todo tucano é canalha", ou qualquer predefinição medíocre da grandeza de um ser humano. Às vezes, as pessoas agem como se os outros tivessem obrigação de pensar o que elas pensam ou de agir como elas agem. Pior: agem como se os outros, os diferentes, fossem um obstáculo a ser superado, um erro na marcha do progresso, ou algo parecido. 
Não se pode conceber que um indivíduo seja desumanizado, reduzido em sua condição de dignidade, porque tenho diferenças legítimas de valores com ele. 
Nós, professores, sabemos que vamos ministrar aulas a pessoas com todo o tipo de formação, e zelamos pelos conteúdos que ministraremos. Assim, se a ciência histórica se desenvolveu a partir de uma visão que envolve pensadores de esquerda, temos a obrigação de considerar esses desenvolvimentos. Se a Biologia, em seus desenvolvimentos, apontou para a seleção natural como solução para explicar nossa ancestralidade, temos o dever de apresentar essa teoria. Se Freud percebeu que grande parte de nossas ações conscientes está pautada em informações mentais a que muitas vezes não temos acesso imediato, temos o dever de trazer isso à baila. Esse zelo é respeito pelo aluno. Que nos ofenderá, talvez, por acreditar que Marx é um monstro, que Darwin era ateu ou que Freud era tarado. Mas que, nem por isso, deixará de receber, de nossa parte, tratamento digno de quem merece o que a ciência pôde produzir de melhor.
Eu não aceitaria que um professor fosse humilhado por falar da teoria da evolução, em nenhuma circunstância, nem mesmo por convicções de grupos contrários.
Assim como seria inaceitável que um policial fosse agredido por proteger um criminoso de ser linchado em praça pública. Ou, inversamente, se um policial fosse aplaudido por abusos praticados contra um indivíduo já preso, já apto a ser submetido a um julgamento legal;
Assim como seria inaceitável e desumanizante que uma pessoa fosse ofendida, agredida ou abusada pelas roupas que usa ou deixa de usar.
Assim como seria inaceitável e desumanizante e monstruoso que um ser humano fosse espancado por sua aparente orientação sexual (que, sendo um fenômeno íntimo e particular dos seres humanos, não precisa estar necessariamente atrelada a quaisquer estereótipos sociais consolidados).
Assim como é inaceitável que um profissional, na honrada atitude de deslocar-se geograficamente para exercer sua profissão, seja hostilizado por sua origem geográfica ou suposta vinculação ideológica. Seja ele um nordestino querendo construir um comércio em São Paulo, um turco procurando serviço na Alemanha, um trabalhador juntando dinheiro em condições subumanas na metrópole para sustentar sua paupérrima família na Bolívia, um eletricista brasileiro tentando a vida em Londres a despeito das desconfianças de uma polícia truculenta, ou um médico cubano que tenha vindo prestar seus serviços no Brasil.
Todos esses são seres humanos.
Nossas convicções de bem e mal não estão acima da humanidade dessas pessoas.

É isso.

Não, não é só isso.

Estou com um medo danado do que vejo por aí, e do que virá. Se essa loucura toda for uma tendência, e recebo sinais de que talvez seja, as consequências devem ser tenebrosas. Até diria inimagináveis.



sábado, 11 de maio de 2013

Como perder minha consideração

Este texto não é aviso nem alerta para ninguém, e nem pedido, e nem afirmação positiva das minhas idiossincrasias. O sentido deste texto é lamentoso. Infelizmente, não tenho desenvolvida ao nível mais justo a capacidade de perdoar as pessoas, e muitas delas, em função disso, acabam enfrentando minha ira, o que é menos mal, e posteriormente o meu desinteresse, o que é lamentável, mas factual. 

Há coisas em mim relacionadas a complexos, carências e medos que pude perceber conforme aprendi que tenho de escolher o que melhorar, visto que não se pode ser bom em tudo, e às vezes convém lutar para ser bom em pelo menos alguma coisa. Assim, há situações com as quais simplesmente não sei lidar, provavelmente não aprenderei a fazê-lo e, sinceramente, não serão minhas prioridades para as próximas etapas da vida. Dou-as ao conhecimento dos que nutrem alguma simpatia ou carinho por mim. 

1 - Não suporto futilidade como opção de vida. 

Será muito difícil que eu mantenha uma amizade de longo tempo com alguém que não tenha, nem que seja em dose mínima, profundidade e interesse em temas reflexivos. Não adianta, não sei lidar com quem não tem problemas. Na verdade, talvez isso derive da minha crença de que todos temos problemas, só que temos a opção de mascará-los ou procurar crescer por meio deles. Se sinto que uma pessoa não tem nenhuma outra preocupação em sua vida a não ser obter mais prazer e alienação para ter de se sentir menos responsável pelo que é e pelo mundo em que vive, eu posso respeitá-la, mas dificilmente conseguirei conviver com ela. E isso, bem sei, é enorme fator de isolamento para mim. 

2 - Não aguento maldade. 

Todos temos nossos momentos de pequenez, mesquinhez, vileza, e isso não é de todo mau, porque nos faz ficar alerta para os perigos gerados por esses comportamentos. Há, entretanto, pessoas que têm enorme prazer na maldade, a ponto de protegê-la com mil justificativas toscas, ou mesmo camuflando-a. Não sei lidar com isso. Na verdade, morro de medo dessas pessoas, pois enfrentá-las exigiria de mim certa dose de agressividade que não é fácil liberar. Assim, não sou a criatura mais indicada para o trato político, ou para o enfrentamento de pessoas claramente mal intencionadas. Isso me torna em grande medida covarde diante de injustiças, mas não menos indignado. 

3 - Não gosto de ser menosprezado ou ridicularizado ostensivamente. 

Parece uma coisa óbvia, mas para mim é mais complicado que para as outras pessoas. Dizem que quem tem alma de artista é carente por natureza e demanda ser querido por todos. Tenho um pouco disso, mas tenho também uma forte aversão a quem tira sarro da minha cara ou me despreza ostensivamente. E essa última palavra é importante. Porque uma brincadeira irônica ou uma crítica bem colocada e utilizada para expressar uma preocupação são normalmente bem-vindas (nem sempre, confesso). Mas um discurso agressivo com a finalidade de diminuir o que sou, é intragável, por mais sutil que queira soar. E tanto mais intragável quanto mais demandar o contexto de um público igualmente venenoso. Quer me criticar? Fale comigo primeiro, e com jeito. Não me humilhe diante dos outros, porque isso não me ajuda em nada.
Dentro deste tópico, deve incluir também as situações em que pessoas humilham outras pessoas com a simples preocupação de parecerem melhores ou mais inteligentes ou qualquer porcaria do tipo. Mesmo que essas situações não aconteçam comigo, eu as tomo como pessoais, e fico decepcionado com quem agiu dessa forma. Lembro bem de uma pessoa que me contou, há muito tempo, que escrevia livros de autoajuda, e ganhava dinheiro com isso, mas considerava os que liam seus livros como "idiotas". Lembro claramente do riso de superioridade que sucedeu essa afirmação, o último de qualquer conversa que com ela tive.

4 - Não gosto de que me acusem de algo que não fiz 

Na verdade, não gosto que me acusem de nada, mesmo do que eu tenha feito realmente. Mas em relação ao que não fiz, é ainda pior. Se a pessoa age assim por ignorância, tendo a me afastar dela até que outras atitudes revelem que ela se arrependeu ou reconheceu o erro. Se ela me acusa de forma falaciosa intencionalmente, nesse caso afasto-me em definitivo dela, e não há volta: ela perde tudo o que construiu comigo. Sim, sei, preciso ser menos radical, mas é como acontece comigo, infelizmente. 

5 - Não gosto de que critiquem meu corpo 

Tive grandes dificuldades na vida para me aceitar do jeito que sou, e houve fases em que não tive condições físicas, financeiras e materiais de zelar por minha aparência tanto quanto deveria. Numa sociedade baseada em imagem, isso acaba sendo pior do que bater na própria mãe. Tenho por princípio falar apenas do que vejo de belo nas pessoas, porque sei que o mundo as cobra demais nesse sentido. E porque sei que há muitos tipos de beleza que não são valorizados, e são justamente os que singularizam as pessoas no que elas têm de melhor. Acabou se transformando, para mim, em índice do nível de idiotice de uma pessoa a tendência que ela apresenta por medir as outras em padrões que são os dela (e que, diga-se de passagem, ela mesma via de regra não sustenta). Quer perder pontos comigo? Fale da minha barriga, da cor da minha pele, do bagunçado dos meus cabelos, das imperfeições do meu rosto, das minhas olheiras. Não gosto disso, nem de brincadeira, e não faço com ninguém. Constrangi muitas pessoas por causa dessa postura, mas ainda sou inseguro, e creio que isso não mudará tão rápido. 


Enfim, são esses meus limites de tolerância para pessoas à minha volta. Quero finalizar dizendo que muitas vezes eu mesmo faço com os outros o que não suporto que seja feito comigo, e fico muito desgostoso quando percebo isso. Mas fico feliz de saber que as pessoas são mais fortes e seguras do que eu, porque elas me perdoam em situações nas quais eu não consigo, ainda, perdoar quem me magoou. É parte do meu aprendizado na vida observar como elas conseguem fazer isso, e tentar fazer da mesma forma, tanto quanto possível.

sábado, 27 de abril de 2013

Outro tempo

Cá estou, escrevendo sobre sentimentos e experiências, como faço desde a adolescência. E fazendo isso, como sempre fiz, dentro do meu tempo, que teimo em tentar controlar.
Meu computador foi o mesmo durante pelo menos seis anos, e só recentemente comprei um modelo um pouco mais atual. Mas a minha impressora tem pelo menos oito anos. Na estante da sala, há livros de quando comecei a faculdade, outros que comprei para meus estudos e muitos referentes a assuntos com os quais já não trabalho. Foi também bem recentemente que resolvi trocar o aparelho de televisão por um digital, sem tubo; ainda não me acostumei com todas as vantagens da imagem mais nítida e perfeita. Meu celular é o melhor modelo que eu poderia conseguir gratuitamente com a minha operadora e, portanto, é uma porcaria tecnológica: não faz quase nada além de atender as chamadas (quando não falha nisso também). Eu só o troquei, há alguns anos, porque meu celular anterior pifou, e descobri que era possível pegar outro sem pagar, ou pagando uma taxa simbólica.  Meu aparelho de telefone fixo, por sua vez, é primitivo e não tem integração com nenhum dos meus outros aparelhos em casa. 
Eu poderia ter lançado meu livro, ano passado, em versão digital, para download. Preferi a forma tradicional impressa, encapada, com orelhas e possibilidade de entregar com dedicatória. Ainda não consumo muitos livros digitais, pois não gosto de ler nada na tela do computador. Durante muito tempo tive enormes desconfianças das compras pela internet, mas sinto-me mais seguro atualmente. Quanto a transações bancárias, ainda tomo cuidados paranoicos de vez em quando. Eu não sigo ninguém no Twitter de verdade, porque não gosto do Twitter, e não consigo acompanhar a vida real de ninguém sem ficar entendiado. Mesmo depois de dez anos de exibição, continuo detestando o Big Brother e os programas do gênero. Abandonei o orkut porque as pessoas migraram para o Facebook, mas penso que o Facebook é menos aberto ao debate de temas relevantes que o orkut. Não assino nenhuma petição online de nada e não acredito em nada que me mandam sem examinar por pelo menos uns dez dias. 
Tudo isso poderia ser resumido em uma constatação maldosa: estou envelhecendo e não consigo me adaptar às mudanças cotidianas da sociedade e da tecnologia. Repare que usei a palavra poderia. Condicional. E usei porque penso, sinceramente, que não é essa a questão. 
Pois, com todas essas resistências que citei acima, ainda consigo gerenciar cursos online, produzi-los, trabalhar dentro de sua plataforma. Consigo trabalhar com programas relativamente complicados para o usuário leigo não programador. Consigo entender a lógica de várias novidades em tecnologia, e visualizo sua utilidade. Não sou inimigo das mudanças.
O que ocorre é que vivo em outro tempo em relação às pessoas. Sempre vivi, desde quando os meninos iam aos bailinhos pegar menininhas e eu preferia ficar em casa com meus livros e meus discos. Desde quando senti o deslumbramento de entender uma aula bem ministrada e a diferença que isso fazia na minha vida, e que isso praticamente destruía o sentido de todos os outros microprazeres. Desde quando descobri que não tinha a menor vocação de acompanhar as modas e os padrões de comportamento vigentes e que não me sentia pior por isso (talvez solitário e desconfortável, mas nunca pior que ninguém). Essa insistência de falar do que ninguém está falando e não falar do que todo mundo está falando deixa as pessoas de fora do tempo presente, sancionado coletivamente, e sei disso desde o primeiro sorriso de deboche que enfrentei em rodinhas de garotos.
Como não acredito em progresso como linha contínua, não faz sentido dizer que estive e estou deliberadamente atrasado, ou arrogantemente adiantado em relação à média dos meus contemporâneos. Não é assim. Quando digo que vivo em outro tempo, não creio que seja em relação à noção de "atualidade" como sendo o tempo absoluto de tudo, que todos devem assimilar. Entendo que o ritmo com que experimento o mundo não é o ritmo com que o mundo me oferece experiências. E gosto disso, e não quero mudar.
Não li, por exemplo, os "Cinquenta tons de cinza". Não li, vi muita gente lendo e comentando, mas continuei desinteressado. Se lesse, teria assunto com mais pessoas. Postaria comentários sobre o livro e teria mais acessos em meus blogues. Pareceria atualizado com o mercado editorial. Mas nenhuma dessas possibilidades condiz com meus valores mais profundos.
Em lugar de ler esse livro que todos estão lendo, resolvi retornar a algumas releituras: os primeiros livros da Bíblia, os Analectos de Confúcio, Alice. Talvez você argumente que tenho algum tipo de fechamento em relação ao novo. Na verdade, o que tenho é uma reverência fiel às obras de arte que considero profundas e aos produtos da cultura e da história que me fascinam. É mais fácil para mim rever Psicose pela enésima vez que arriscar um Brinquedo Assassino 5 ou 6 só para ver do que se trata. Esse é meu tempo: Alice nunca se esgotou para mim, é sempre um prazer retornar a esse livro. Relê-lo é mais produtivo e satisfatório que ler uma obra mais recente e mais superficial.
Minha relação com as coisas funciona dessa forma que exemplifiquei. Eu não quero o novo pela embalagem de novo, eu quero o novo pela força de sua relevância. Fui um dos primeiros a baixar, ouvir e comentar o In rainbows, do Radiohead. Porque era novidade? Não. Se fosse desinteressante, fraco, sem graça, seria uma audição e nada mais. Mas ouço esse álbum até hoje, e percebo nele sempre uma coisinha a mais que não havia percebido antes. É esse tipo de novidade que me satisfaz: a que se dá a partir do aprofundamento das experiências.
Em relação às maravilhas da internet, das redes sociais, e da informática em geral, só faço questão daquilo que considero útil. O resto, sei que existe, e está bom. Twitter não serve pra mim? Prefiro o Face para divulgar minhas coisas? Sem problemas, ficamos no Face. Celulares de última geração acessam milhões de coisas extraordinárias. Preciso delas no momento? Sim? Não? Isso define minha necessidade do aparelho. 
Ser desatualizado tecnologicamente não significa, de forma alguma, ser alienado. Você pode passar o dia inteiro conectado aos conteúdos veiculados por seu celular e continuar sem saber nada de política, de ética, de economia, de ciência. Eu não sei nada de um monte de disciplinas. Mas minha opção, parte consciente, parte espontânea, é pelo aprofundamento, pela seleção, pela triagem. Então, demoro mais em tudo: sei das coisas depois, aprendo a manusear depois, incorporo no meu cotidiano depois. No entanto, via de regra, sei das coisas que valem saber, aprendo a manusear melhor, e deixo minhas energias para experenciar o que posso consumir, e não o que me consome. Prefiro adaptar a tecnologia a meu modo de vida que adaptar meu modo de vida à tecnologia.
Há muitos mais como eu. Que preferem filmes antigos. Que reveem os mesmos filmes várias vezes. Que curtem bandas que não existem mais. Que persistem e propagam ideias consideradas ultrapassadas. Que mergulham em obras até o limite da compreensão possível. Que retornam ao mesmo, enquanto o trem da história segue seu rumo em ritmo inadiável. 
Como eles, eu desci na estação que me convém. O mundo é redondo, o trem vai ter de voltar um dia. Quero estar preparado.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Telhado de vidro

Vamos supor que eu fosse capaz de dizer para mim mesmo quais foram as dez piores coisas que já fiz na minha vida. 
Obviamente, eu precisaria dizer, primeiro, o que entendo como "pior" em matéria de ações humanas. Isso, é claro, varia de pessoa para pessoa, a depender do conjunto de valores que cada indivíduo tem. Para não entrar nesse relativismo, limito esse exercício de suposição às dez atitudes mais desumanas e destrutivas que pude ter em relação aos meus semelhantes. Vamos supor que eu fosse capaz de listá-las.
(Também é preciso admitir, aqui, que essa é a suposição de algo impossível para mim. Lembrar de ações terríveis que cometi, uma em sequência da outra, seria muito amargo para meu coração, porque há coisas que são difíceis de admitir mesmo de si para si, e também porque essa rememoração implicaria na não menos difícil responsabilidade de apontar para meu próprio nariz, sem atenuantes, o dedo que muitas vezes tenho vontade de apontar para o nariz dos outros. E também porque há coisas que não convém enfrentar sem o preparo necessário para o momento de crise, seja esse preparo de crescimento interior, seja de apoio psicológico, seja de vitória sobre os próprios fantasmas e traumas.)
Retomando. Vamos supor que eu fosse capaz de listar minhas dez maiores vilezas e mediocridades de caráter nesses trinta e nove anos de vida. O que isso diria de mim? Eu me definiria por essas atitudes? Eu me veria como "um homem que fez tudo isso", ou como "um homem que não faria tudo isso, mas por alguma razão, fez"? Eu me condenaria em absoluto como alguém baixo, vil e não merecedor do perdão alheio?
Como não sou capaz de fazer esse exercício da forma que foi proposto, passo a passo, mentalmente, não tenho as respostas para as perguntas acima.
Mas quero fazer outra suposição.
Vamos supor que você, que está lendo estas linhas, não me conheça, não saiba quem sou, nunca tenha conversado comigo.
Vamos supor, agora, que um espaço da internet ou da televisão publicasse ou divulgasse uma, apenas uma. dessas dez piores coisas que já fiz na vida, qualquer uma delas.
Você me julgaria por essa informação? Você me definiria por essa atitude? Você colocaria um rótulo em alguém que não conhece como "homem que fez isso"? Você em algum momento pensaria que posso ser um "homem que não faria isso, mas, por alguma razão, fez"?
Você duvidaria de meu caráter, de minha decência, de minha capacidade de fazer coisas boas?
Pois é. Não sei as respostas que você daria para essas perguntas.
Mas sei a resposta da maioria das pessoas que se manifestam comentando fatos da televisão ou postagens da internet. 
A resposta é "sim". 
As pessoas sentem-se livres e capacitadas para julgar outros seres humanos que não conhecem, de quem não sabem nada, por uma atitude, um fato, uma notícia, uma informação qualquer. 
É impressionante quantas vezes vejo comentários agressivos que envolvem já, de cara, uma definição de caráter ou do valor do envolvido nas situações comentadas. 
Como é fácil julgar!
Alguém faz um comentário em um espaço virtual da internet. Não raramente, o comentário posterior já aponta essa pessoa como burro, incapaz, mal-intencionado, e daí para baixo. Basta enxergar uma discordância que certas pessoas já se julgam no direito de diminuir, ofender e rotular o dono da opinião discordante.
É provável que todos já conheçam a experiência de assistir TV coletivamente, e relembrem situações em que uma determinada personagem da mídia, ou de fora da mídia, aparece em cena como tendo feito algo de não tão bom. Protegidas pelo anonimato e pela desnecessidade do debate, as pessoas xingam essa figura, ofendem, julgam seu caráter, sua carreira, seu trabalho. Quantas vezes eu já vi isso! Como isso ficou natural para as pessoas! Mesmo com o desconhecimento completo da vida e das posições e opiniões da pessoa julgada. Mesmo com a clareza de que veículos de comunicação distorcem informações de acordo com seus interesses.
É fácil julgar. Nunca foi tão fácil. 
O que talvez não seja tão óbvio é que sempre será possível condenar alguém por alguma coisa. Por uma razão muito simples: ninguém é perfeito. Ninguém acerta sempre. Ninguém está sempre com a verdade. Ninguém é imune a maus momentos.
Assim como eu, assim como você, qualquer pessoa neste mundo pode ser injustiçada por um julgamento parcial e fundado em má fé.
Basta selecionar as piores coisas que a pessoa fez. Nem precisam ser piores, podem ser apenas as mais polêmicas. Pronto, já se torna fácil apedrejar quem quer que seja!
Eu acho que no fundo nós sabemos disso. E por isso gostamos, por exemplo, do Facebook. Porque o Facebook é estruturado para mostrar o que você tem de bom, bonito e desejável. E um julgamento baseado apenas no que queremos mostrar é igualmente parcial e mentiroso, mas pelo menos ele nos protege do julgamento que nossa consciência faz todos os dias do que não queremos mostrar. E, na balança, podemos pesar a favor de nós mesmos.
Eu acho que posso dizer que nós sabemos disso e isso talvez ajude a entender porque nós gostamos de nos enganar em relação a nossos ídolos, a pessoas que representam nossas projeções e fantasias de grandeza. Muitas vezes, defendemos cegamente essas pessoas (artistas, políticos, atletas), perdoando infinitamente seus erros, pensando só nas dez melhores coisas que fizeram; e quando pensamos nos adversários e opositores dessas figuras, achamos que não devem ser perdoados por qualquer das dez piores coisas que fizeram.
Eu acho que no fundo nós sabemos o quanto são artificiais e incompetentes nossos julgamentos sobre as pessoas e as figuras públicas que conhecemos, mas acabamos admitindo essa superficialidade por causa de uma sociabilidade de concordâncias imediatas e repetição de frases fáceis e negação de qualquer polêmica que possa comprometer nossa popularidade.
Em nome disso tudo, faço um apelo a você, que aguentou esse texto até aqui: não tenha pressa de julgar. Calma. Seja ponderado. Procure conhecer melhor as pessoas antes de defini-las. Procure olhar em você e perceber se as inquietações do outro não são também suas inquietações. Procure entender as motivações de um ser humano dentro de sua história de vida.
Antes de chamar um político de corrupto, será que você consegue examinar a fundo seu coração e se descobrir incapaz de agir como ele? Antes de falar mal de alguém em função de um comportamento, será que você consegue enxergar a situação em sua dimensão exata e indicar que comportamento seria mais apropriado? Antes de rir da mediocridade e incapacidade alheia, será que você consegue compreender que também nasceu incompleto e teve de superar suas próprias limitações?
Ídolos e celebridades são criaturas fictícias, e valem, em termos de dignidade humana, tanto quanto quaisquer outras pessoas, inclusive nós mesmos. Da mesma forma, pessoas que rotulamos ou julgamos com a velocidade de um raio provavelmente sejam da mesma matéria falível e corruptível de que somos feitos. Ninguém é tão lindo e bom, ninguém é tão feio e mau.
E todo mundo tem telhado de vidro. 
Por que, então, tanta gente com pedras na mão?