sábado, 2 de fevereiro de 2013

Telhado de vidro

Vamos supor que eu fosse capaz de dizer para mim mesmo quais foram as dez piores coisas que já fiz na minha vida. 
Obviamente, eu precisaria dizer, primeiro, o que entendo como "pior" em matéria de ações humanas. Isso, é claro, varia de pessoa para pessoa, a depender do conjunto de valores que cada indivíduo tem. Para não entrar nesse relativismo, limito esse exercício de suposição às dez atitudes mais desumanas e destrutivas que pude ter em relação aos meus semelhantes. Vamos supor que eu fosse capaz de listá-las.
(Também é preciso admitir, aqui, que essa é a suposição de algo impossível para mim. Lembrar de ações terríveis que cometi, uma em sequência da outra, seria muito amargo para meu coração, porque há coisas que são difíceis de admitir mesmo de si para si, e também porque essa rememoração implicaria na não menos difícil responsabilidade de apontar para meu próprio nariz, sem atenuantes, o dedo que muitas vezes tenho vontade de apontar para o nariz dos outros. E também porque há coisas que não convém enfrentar sem o preparo necessário para o momento de crise, seja esse preparo de crescimento interior, seja de apoio psicológico, seja de vitória sobre os próprios fantasmas e traumas.)
Retomando. Vamos supor que eu fosse capaz de listar minhas dez maiores vilezas e mediocridades de caráter nesses trinta e nove anos de vida. O que isso diria de mim? Eu me definiria por essas atitudes? Eu me veria como "um homem que fez tudo isso", ou como "um homem que não faria tudo isso, mas por alguma razão, fez"? Eu me condenaria em absoluto como alguém baixo, vil e não merecedor do perdão alheio?
Como não sou capaz de fazer esse exercício da forma que foi proposto, passo a passo, mentalmente, não tenho as respostas para as perguntas acima.
Mas quero fazer outra suposição.
Vamos supor que você, que está lendo estas linhas, não me conheça, não saiba quem sou, nunca tenha conversado comigo.
Vamos supor, agora, que um espaço da internet ou da televisão publicasse ou divulgasse uma, apenas uma. dessas dez piores coisas que já fiz na vida, qualquer uma delas.
Você me julgaria por essa informação? Você me definiria por essa atitude? Você colocaria um rótulo em alguém que não conhece como "homem que fez isso"? Você em algum momento pensaria que posso ser um "homem que não faria isso, mas, por alguma razão, fez"?
Você duvidaria de meu caráter, de minha decência, de minha capacidade de fazer coisas boas?
Pois é. Não sei as respostas que você daria para essas perguntas.
Mas sei a resposta da maioria das pessoas que se manifestam comentando fatos da televisão ou postagens da internet. 
A resposta é "sim". 
As pessoas sentem-se livres e capacitadas para julgar outros seres humanos que não conhecem, de quem não sabem nada, por uma atitude, um fato, uma notícia, uma informação qualquer. 
É impressionante quantas vezes vejo comentários agressivos que envolvem já, de cara, uma definição de caráter ou do valor do envolvido nas situações comentadas. 
Como é fácil julgar!
Alguém faz um comentário em um espaço virtual da internet. Não raramente, o comentário posterior já aponta essa pessoa como burro, incapaz, mal-intencionado, e daí para baixo. Basta enxergar uma discordância que certas pessoas já se julgam no direito de diminuir, ofender e rotular o dono da opinião discordante.
É provável que todos já conheçam a experiência de assistir TV coletivamente, e relembrem situações em que uma determinada personagem da mídia, ou de fora da mídia, aparece em cena como tendo feito algo de não tão bom. Protegidas pelo anonimato e pela desnecessidade do debate, as pessoas xingam essa figura, ofendem, julgam seu caráter, sua carreira, seu trabalho. Quantas vezes eu já vi isso! Como isso ficou natural para as pessoas! Mesmo com o desconhecimento completo da vida e das posições e opiniões da pessoa julgada. Mesmo com a clareza de que veículos de comunicação distorcem informações de acordo com seus interesses.
É fácil julgar. Nunca foi tão fácil. 
O que talvez não seja tão óbvio é que sempre será possível condenar alguém por alguma coisa. Por uma razão muito simples: ninguém é perfeito. Ninguém acerta sempre. Ninguém está sempre com a verdade. Ninguém é imune a maus momentos.
Assim como eu, assim como você, qualquer pessoa neste mundo pode ser injustiçada por um julgamento parcial e fundado em má fé.
Basta selecionar as piores coisas que a pessoa fez. Nem precisam ser piores, podem ser apenas as mais polêmicas. Pronto, já se torna fácil apedrejar quem quer que seja!
Eu acho que no fundo nós sabemos disso. E por isso gostamos, por exemplo, do Facebook. Porque o Facebook é estruturado para mostrar o que você tem de bom, bonito e desejável. E um julgamento baseado apenas no que queremos mostrar é igualmente parcial e mentiroso, mas pelo menos ele nos protege do julgamento que nossa consciência faz todos os dias do que não queremos mostrar. E, na balança, podemos pesar a favor de nós mesmos.
Eu acho que posso dizer que nós sabemos disso e isso talvez ajude a entender porque nós gostamos de nos enganar em relação a nossos ídolos, a pessoas que representam nossas projeções e fantasias de grandeza. Muitas vezes, defendemos cegamente essas pessoas (artistas, políticos, atletas), perdoando infinitamente seus erros, pensando só nas dez melhores coisas que fizeram; e quando pensamos nos adversários e opositores dessas figuras, achamos que não devem ser perdoados por qualquer das dez piores coisas que fizeram.
Eu acho que no fundo nós sabemos o quanto são artificiais e incompetentes nossos julgamentos sobre as pessoas e as figuras públicas que conhecemos, mas acabamos admitindo essa superficialidade por causa de uma sociabilidade de concordâncias imediatas e repetição de frases fáceis e negação de qualquer polêmica que possa comprometer nossa popularidade.
Em nome disso tudo, faço um apelo a você, que aguentou esse texto até aqui: não tenha pressa de julgar. Calma. Seja ponderado. Procure conhecer melhor as pessoas antes de defini-las. Procure olhar em você e perceber se as inquietações do outro não são também suas inquietações. Procure entender as motivações de um ser humano dentro de sua história de vida.
Antes de chamar um político de corrupto, será que você consegue examinar a fundo seu coração e se descobrir incapaz de agir como ele? Antes de falar mal de alguém em função de um comportamento, será que você consegue enxergar a situação em sua dimensão exata e indicar que comportamento seria mais apropriado? Antes de rir da mediocridade e incapacidade alheia, será que você consegue compreender que também nasceu incompleto e teve de superar suas próprias limitações?
Ídolos e celebridades são criaturas fictícias, e valem, em termos de dignidade humana, tanto quanto quaisquer outras pessoas, inclusive nós mesmos. Da mesma forma, pessoas que rotulamos ou julgamos com a velocidade de um raio provavelmente sejam da mesma matéria falível e corruptível de que somos feitos. Ninguém é tão lindo e bom, ninguém é tão feio e mau.
E todo mundo tem telhado de vidro. 
Por que, então, tanta gente com pedras na mão?