quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A "certeza" do bem e do mal e o medo que tenho do que vem por aí


Vez por outra, apareço por aqui para tentar elucidar, por meio da escrita, sentimentos que me incomodam. Não é sempre que consigo, e acredito que desta vez não conseguirei. Hoje, gostaria de escrever sobre o radicalismo e a desumanidade.
Convido a você, leitor, que traga à sua mente as pessoas de seu dia a dia de que você consegue agora se lembrar. Com certeza, são muitas, por muitas razões. Se você fizer um esforço de cinco minutos anotando em uma folha de papel, entre as pessoas de seu convívio, poderia listar mais de uma centena. 
Pois bem, imaginemos que você tivesse agora a tarefa de pegar uma outra folha e fazer da forma mais simples possível um risco no meio, dividindo-a em duas partes. Imaginemos que você escrevesse no alto de uma das partes a expressão "pessoas totalmente boas" e no alto de outra das partes a expressão "pessoas realmente más". Agora, imaginemos que você tivesse a incumbência de passar os nomes listados para a parte correspondente.
Nem é preciso tentar fazer isso para perceber, imediatamente, que você não conseguiria enquadrar a grande maioria das pessoas em algum dos lados. Você teria dúvidas, você teria questionamentos, você compararia a ação dessas pessoas às suas ações. Mesmo que as etiquetas da divisão fossem apenas "pessoas boas" e "pessoas más", você não conseguiria, por mais rígidos que fossem seus princípios e mais convictos que fossem seus julgamentos, empreender essa separação.
Ora, se isso acontece com pessoas, isso também acontece com valores, com ideias, com instituições, com grupos, com partidos, com ideologias, com obras de arte, com gostos, com personalidades, com referências. Você jamais conseguirá traçar, de maneira imediata e convicta e sem reparos ou injustiças uma lista perfeitamente fidedigna do que você considera bom ou mau em nenhum setor da civilização, em nenhum âmbito da vida. 
Óbvio? 
Parece que não.
Os tempos são estranhos nesse sentido. A facilidade com que as pessoas determinam o bem e o mal é assustadora. A facilidade com que encontram justificativas para suas questionáveis valorações é assustadora. A facilidade com que simplesmente ignoram os questionamentos ao seu simplismo primário tanto de raciocínio quanto de postura diante do mundo é assustadora.
O mundo parece a certas pessoas tão claramente dividido entre bem e mal que se torna impossível a compreensão de que há outros valores envolvidos nas relações entre os homens, como o certo e o errado, o justo e o injusto, o belo e o feio, o necessário e o desnecessário, o relevante e o irrelevante.
Exemplo: eu praticamente calei meu Face com a prática de retirar da lista de atualizações os perfis que reproduzissem memes degradantes, desumanos, insensíveis em relação ao próximo. Sobrou muito pouca gente. Mas minha saúde mental melhorou muito. É insuportável receber mensagens agressivas contra políticos, celebridades, indivíduos que por alguma razão foram parar na mídia, todo dia, toda hora, sem nada a acrescentar nem uma palavra que remeta à reflexão ou que mobilize para alguma coisa mais dignificante. É horrível gente brincando com a possibilidade de morte de uma pessoa. É horrível gente apontando para defeitos físicos de seus desafetos. É horrível gente alarmando gente com informações não verificadas. É assustador o grau de irresponsabilidade que as pessoas demonstram com os seres humanos com os quais travam contato.
Mas o Face é só um reflexo da face real das pessoas. Isso é mais assustador.
As pessoas realmente acreditam que Deus é evidente e o Diabo também é evidente. 
É incrível como o fundamentalismo encontrou terreno na nossa cultura, sempre tão reconhecida pela diversidade, pela miscigenação, pela mescla. Sim, eu sei, ele sempre esteve lá, no preconceito, na segregação, na violência. Mas como ele conseguiu essa complacência coletiva, esse estatuto de normalidade, depois de tantos anos, e num contexto de ampliação do acesso à informação?
As pessoas podem gostar, por exemplo, de um clube de coração. Isso não lhes dá o direito de agredir, humilhar, ou denegrir indivíduos ligados a um clube adversário. As pessoas podem ter convicção de uma ideologia. Isso não lhes dá o direito de demonizar a ideologia adversária ou distorcer suas propostas. As pessoas podem não gostar dos tucanos ou dos petistas. Isso passa muito longe de frases de efeito cretinas e estúpidas como "todo petista é vagabundo" ou "todo tucano é canalha", ou qualquer predefinição medíocre da grandeza de um ser humano. Às vezes, as pessoas agem como se os outros tivessem obrigação de pensar o que elas pensam ou de agir como elas agem. Pior: agem como se os outros, os diferentes, fossem um obstáculo a ser superado, um erro na marcha do progresso, ou algo parecido. 
Não se pode conceber que um indivíduo seja desumanizado, reduzido em sua condição de dignidade, porque tenho diferenças legítimas de valores com ele. 
Nós, professores, sabemos que vamos ministrar aulas a pessoas com todo o tipo de formação, e zelamos pelos conteúdos que ministraremos. Assim, se a ciência histórica se desenvolveu a partir de uma visão que envolve pensadores de esquerda, temos a obrigação de considerar esses desenvolvimentos. Se a Biologia, em seus desenvolvimentos, apontou para a seleção natural como solução para explicar nossa ancestralidade, temos o dever de apresentar essa teoria. Se Freud percebeu que grande parte de nossas ações conscientes está pautada em informações mentais a que muitas vezes não temos acesso imediato, temos o dever de trazer isso à baila. Esse zelo é respeito pelo aluno. Que nos ofenderá, talvez, por acreditar que Marx é um monstro, que Darwin era ateu ou que Freud era tarado. Mas que, nem por isso, deixará de receber, de nossa parte, tratamento digno de quem merece o que a ciência pôde produzir de melhor.
Eu não aceitaria que um professor fosse humilhado por falar da teoria da evolução, em nenhuma circunstância, nem mesmo por convicções de grupos contrários.
Assim como seria inaceitável que um policial fosse agredido por proteger um criminoso de ser linchado em praça pública. Ou, inversamente, se um policial fosse aplaudido por abusos praticados contra um indivíduo já preso, já apto a ser submetido a um julgamento legal;
Assim como seria inaceitável e desumanizante que uma pessoa fosse ofendida, agredida ou abusada pelas roupas que usa ou deixa de usar.
Assim como seria inaceitável e desumanizante e monstruoso que um ser humano fosse espancado por sua aparente orientação sexual (que, sendo um fenômeno íntimo e particular dos seres humanos, não precisa estar necessariamente atrelada a quaisquer estereótipos sociais consolidados).
Assim como é inaceitável que um profissional, na honrada atitude de deslocar-se geograficamente para exercer sua profissão, seja hostilizado por sua origem geográfica ou suposta vinculação ideológica. Seja ele um nordestino querendo construir um comércio em São Paulo, um turco procurando serviço na Alemanha, um trabalhador juntando dinheiro em condições subumanas na metrópole para sustentar sua paupérrima família na Bolívia, um eletricista brasileiro tentando a vida em Londres a despeito das desconfianças de uma polícia truculenta, ou um médico cubano que tenha vindo prestar seus serviços no Brasil.
Todos esses são seres humanos.
Nossas convicções de bem e mal não estão acima da humanidade dessas pessoas.

É isso.

Não, não é só isso.

Estou com um medo danado do que vejo por aí, e do que virá. Se essa loucura toda for uma tendência, e recebo sinais de que talvez seja, as consequências devem ser tenebrosas. Até diria inimagináveis.