segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

A superintelingência


Às voltas com a redação de minha tese de doutorado, que vem fluindo com consistência nos últimos dias, recordei-me de uma figura estranha, bizarra, fascinante e ao mesmo tempo escandalosa e ridícula que habitou o centro da tela da TV no programa do Jô por duas noites de entrevista. Tratava-se do malandro Alexandre Selva, transformado pelo talento de interpretação em reencarnação do poeta Omar Kayyam. 

Quando vi aquela figura dando entrevistas, fiquei com a antena ligada, principalmente por causa das afirmações extraordinárias que fazia. Era sem dúvida um super-herói da sapiência. Dizia que lia em 10 minutos o conteúdo de qualquer livro de 100 páginas. Dizia que falava 105 línguas e idiomas. Dizia que possuía 107 títulos de Doutor Honoris Causa. Dizia que se lembrava com clareza de todas as suas encarnações anteriores. Dizia isso na maior cara lavada e sem nenhuma contestação do entrevistador, que parecia torcer para que tudo aquilo fosse verdade.
No fundo, eu também torcia, e torço, para que exista alguém assim, por uma questão de complexo de inferioridade e de transferência. Sempre me senti intelectualmente limitado em relação àquilo que queria e sonhava produzir. Por mais que estudasse, lesse, refletisse, não me via atingindo o patamar de realizar alguma obra fundante ou revolucionária. E de repente aparecia na televisão alguém  com dons que, bem utilizados, permitiriam grandes conquistas, grandes descobertas, grandes reflexões. Alguém com potenciais ilimitados no campo da inteligência.

Obviamente, esse sentimento de admiração com a fantasia de HQ criada por Alexandre Selva esbarrava no senso de ridículo mais rasteiro: nenhuma das afirmações restava comprovada, ou sequer verificada, pela produção do programa, e nada do que era dito pelo falso guru sequer chegava perto da imagem construída pela autopromoção. Nem um grãozinho de nada: porque existem mesmo caras como Kim Ung Yong, que são supergênios, sabem mais de dez línguas e tal. Mas mesmo esses caras têm seus limites nos recordes, e não seriam nada para a personagem interpretada por Selva. Uma pena que um falsário tenha produzido uma personificação tão interessante, uma pena mesmo. 

Eu projeto minhas inconsistências e limitações nessas figuras, confesso. Gostaria muito de ter maior agilidade mental para escrever, ler, pensar e dar conta das inúmeras atividades que realizo dia após dia. Gostaria de saber que posso mais do que tento, e que isso faz diferença para os outros. Uma superinteligência seria bem-vinda para que eu pudesse escrever poemas mais belos, para compor argumentos mais eficientes sobre temas relevantes, para confrontar a manipulação e a intimidação com mais força etc. Se não fosse para tudo isso, pelo menos para que o sofrimento de escrever uma tese de doutorado decente não me consumisse tanto em momentos como este...

Na verdade, repensando essa condição de inteligência privilegiada, fica fácil saber que pessoas como Selva são farsantes. Em minha opinião, e considerando a loucura toda do mundo, se alguém possuísse capacidades tão notáveis, creio que dificilmente se exporia à mídia, exatamente porque compreenderia o que é a mídia, o que são os valores da sociedade em que vive, o que se passa na cabeça da maioria das pessoas. Se existe de fato alguém assim, esse super-herói da inteligência está silenciosamente construindo obras que colaboram com a vida de milhões de pessoas e que fazem com que a humanidade caminhe adiante, sem pensar nos louros dessas conquistas. Porque um ser superinteligente já superou seu complexo de inferioridade, já sabe que não pode pautar seus valores em suas frustrações, e já compreendeu que o valor da vida está muito além do valor das rotinas que julgamos defini-la. Sua inteligência estará além dos idiomas que domina, dos títulos que possui, e das teses que eventualmente precise redigir.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Este homem

Um passante livre de preocupações e compromissos poderia ter visto esse homem em sua glória, sentado numa mesa de um espaço de alimentação, tomando café e saboreando um pão na chapa com toda a autoridade de sua fome. Provavelmente, não concentraria o olhar. Se concentrasse, talvez pudesse se perguntar sobre as vestes despojadas, o chinelo de dedo, os olhos pensativos e os cabelos bagunçados que singularizam a figura observada. Talvez atribuísse mentalmente alguns estereótipos a esse homem: um trabalhador desempregado? Um homem com a cabeça na lua? Um intelectual arrogante? Um rapaz desleixado e sem ambições? 
Esse homem continuará saboreando a delícia de um pão na chapa. Mil tentativas talvez não fossem suficientes para acertar o que ele é. Ele não se preocupa com isso, por certo, senão se vestiria de outra forma, e teria uma postura mais vigiada e tensa. Mas se não fosse possível saber quem ele é, talvez o curioso passante pudesse tentar descobrir o que se passa na cabeça de alguém assim. O que está rolando lá dentro daquela cachola: canções? Poemas? Obrigações? Acertos? Erros? Planos?
O pobre passante teria, agora, ainda menos chance. Sim, muitas coisas fluem por aquele mundo de ideias, mas pouquíssimas podem se fixar nesse momento. São quarenta anos de tudo o que a vida poderia oferecer a alguém. E, nesse fluxo interminável, muitas imagens vêm e vão, e algumas conseguem se estabelecer por um pouquinho mais de tempo dentro dos olhos que pairam fixos, como que olhando para uma projeção vinda do profundo do peito.
Foram sins e nãos. Direitos e deveres. Acertos e erros. Falas e emudecimentos. Ímpetos e raciocínios. Risos e choros. Aproximações e distanciamentos. Medos e ousadias. Incertezas e convicções. Pessoas o aconselharam bem, pessoas o aconselharam mal. Pessoas o quiseram bem, pessoas ele quis bem. Houve música, muita. Poesia, muita. Houve livros, discos, materiais de estudos. Muitas pessoas o ouviram, e ele nem sabe o que elas pensam. Ele ouviu muitas pessoas, e às vezes também não sabe o que elas pensam. Foram coisas bem feitas e coisas mal feitas. Muita coisa sem terminar. Muita coisa por dizer, muita coisa por fazer, muita coisa por criar. Graças a Deus.
No meio disso tudo, de todo esse turbilhão de fatos e feitos, foram muitos anos se tornando professor e se mantendo aluno. Muitos outros aprendendo a não ter medo de cantar e escrever. Muitos ainda descobrindo o que o coração dizia sobre o amor, e tentando traduzir em ações efetivas. Os rótulos, afinal, podem colar: professor, cancionista, cabeludo, rockeiro, poeta, desencanado, descolado, hippie, esquerdista, nem aí, místico, coração mole etc. etc. etc. Nada definiria com precisão.
Talvez seja melhor ficar com a imagem, e só com a imagem, que o passante curioso pode captar na totalidade: esse homem sentado na mesa de um espaço de alimentação toma café e come um pão na chapa em estado de glória. Sim, glória.
Ele, depois de quarenta anos, sabe que seu caráter não deve nada à sua consciência.


ESTE homem de quarenta anos nada deve à própria consciência. O resto é resto.