sábado, 26 de dezembro de 2015

É preciso urgentemente requalificar o espaço de comentários nos blogues: ele se tornou profissionalizado, inútil e pernicioso


Para quem viveu a empolgação da possibilidade de troca de informação na internete, e mais ainda a empolgação da descoberta dos blogues como recursos de expressão baratos, rápidos, eficientes e com muitas facilidades de interação, é completamente decepcionante perceber que boa parte das conquistas em termos de liberdade e possibilidade de diálogo podem estar indo para o ralo por puríssima falta de bom senso no uso.

Alguns blogueiros e páginas que acompanho frequentemente desativaram o espaço de comentários, sem mais. Ninguém pode culpá-los nem criticá-los por isso. Eles não estão fugindo do debate de ideias, mesmo porque esse debate simplesmente não acontece. O que eles fazem é evitar o dissabor das agressões verbais e da falta de senso de internautas sem civilidade. A prova de que a coisa está nesse nível é que mesmo os grandes portais, que via de regra abrem espaço em suas publicações para comentários dos internautas, já criaram maneiras de filtrar certas inserções, bloqueando palavras, limitando intervenções ou até suprimindo a possibilidade de comentário, tal como os blogueiros a que me referi. E leve-se em conta que esses grandes portais pagam funcionários para cuidar desses espaços virtuais.

Essa tendência de intervenção desqualificada (em alguns casos, até doentia) dos leitores de textos de internete talvez seja apenas reveladora da deterioração geral da urbanidade numa sociedade individualista, competitiva, violenta e frustrada. Em grande parte, creio que isso é verdade. Por outro lado, há outras motivações por trás da mediocridade, às vezes tão medíocres quanto as intervenções agressivas, às vezes inteligentes a ponto de apenas utilizá-las, sem se confundir com elas.

Percebo em portais como UOL, Terra e Yahoo a presença maciça de comentaristas profissionais, preparados para inserir ideias fixas (verdadeiramente fixas) em quaisquer espaços em que for possível. Essas ideias são em boa parte assustadoras, em sua maioria são apenas medíocres, algumas podem ser apenas irrelevantes, e algumas poucas são válidas e sensatas. Não há muito como medir isso, depende de fazer um levantamento e uma análise minimamente isentas e fundamentadas, e eu mesmo não teria essa condição. Mas não é preciso mais que alguns minutos de leitura para que se perceba que o perfil convicto-agressivo-arrogante é o que predomina, infelizmente. 

Esse perfil de comentarista não é, de forma alguma, ingênuo, nem age de forma aleatória. Há comentaristas que emitem sua opinião, reforçam, e depois conseguem tempo para atacar sistematicamente toda e qualquer opinião divergente que seja postada. Creio que a sistematicidade seja a característica que melhor se apresenta na ação desses internautas. Parece que suas energias são claramente direcionadas para: a) ocupar um determinado espaço de escrita dentro de um veículo, seja uma postagem, seja uma notícia, seja outro espaço qualquer; b) postar ideias que reforcem determinadas visões fechadas e definitivas de mundo - raríssimas vezes você vê esse perfil equilibrando prós e contras, ou fazendo perguntas, ou questionando seu próprio raciocínio e suas limitações de compreensão; c) dar sempre a última palavra sobre um assunto ou numa sequência de argumentações, se possível desqualificando, ridicularizando e silenciando a posição adversária, colocando-a como absurda ou medíocre - as risadas, as ironias e a distorção do que foi escrito são estratégias comuns para esse fim; d) cercar os perfis com opiniões diferentes e combatê-los ou agredi-los sistematicamente, não permitindo que nenhuma ideia levantada possa ficar sem resposta; e) unir-se a perfis semelhantes e atuar de forma a estabelecer um "efeito manada", como se a quantidade de postagens ou respostas pudesse substituir a qualidade da argumentação.

Sem toda essa sistematização, essa forma de ocupar o espaço virtual não seria possível, pois estaria fadada ao fracasso ao ser identificada como autoritária, paranoica e altamente desagradável para quem lê. E essa necessária sistematização pressupõe a profissionalização do perfil comentarista: é preciso que alguém tenha tempo, incentivo e recursos para não perder nenhuma postagem adversária. Assim, quando as organizações ou estruturas de poder que sustentam esses perfis elegem um adversário ideológico, procuram adentrar seu espaço virtual e realizar uma espécie de estratégia de "terra arrasada", destruindo toda e qualquer possibilidade de equilíbrio no debate de ideias. Isso também pode ser percebido de forma muita evidente: basta acessar rapidamente a rede para notar que há notícias e blogues que ninguém comenta, ao passo que há espaços em que parece estar havendo uma nova guerra de nervos a cada publicação. 

- Ora, isso tudo é parte do embate político de ideias - poderia dizer o meu interlocutor imaginário. Concordo. Mas até a política tem de ter regras de civilidade para se estabelecer. Na história, abominações como extermínios em massa e guerras de conquista são parte de políticas de Estado, por exemplo, mas isso não as torna mais legítimas. Agressões, intimidações, humilhações são parte das estratégias de manipulação na comunicação humana, é fato. Mas não há outras estratégias? Não há uma riqueza enorme de possibilidades nesse sentido, dentro do diálogo, da interlocução respeitosa, da conversa para enriquecimento mútuo?

O que acaba acontecendo é que esse perfil de comentarista torna-se um propagador violento e autoritário de ideias fixas, às vezes polêmicas, às vezes meramente agressivas, mas nunca ingênuas nem despropositadas. E ele transforma o espaço de debate em um espaço de escrita virulenta, por vezes covarde, porque a distância física e a possibilidade do anonimato garantem uma postura irresponsável em relação ao que publica. Para quem mantém blogues, o resultado é por vezes desastroso, em especial para pessoas não profissionais como eu, que escrevem de vez em quando e não têm como abandonar as outras atividades que garantem seu sustento para cuidar do que está acontecendo em suas postagens. O que acontece, muitas vezes, é que uma postagem que seria boa, se tomássemos só o texto, torna-se intragável quando lidos os comentários. Em certos casos, os comentários nada têm a ver com o espírito nem da postagem nem do blogue, ou nada acrescentam a uma determinada questão, servindo apenas para marcar posição; são, assim, irrelevantes e inúteis. Mas pode ser ainda pior, porque muitas vezes, além de serem descartáveis para o debate, os comentários desviam da ideia principal de tal forma que acabam se focando em ataques ad hominem e agressões desvairadas. Nesse caso, eles são, sem dúvida, perniciosos para quem escreve, para quem lê e sobretudo para quem os recebe em seu blogue.

O que fazer contra esse troll profissional, que transforma um espaço de debate em um espaço de exclusão, violência e impraticabilidade do diálogo? Não há soluções fáceis, admito. Creio que, em primeiro lugar, nunca se deve entrar na "pilha" do comentador mal educado, porque isso é tudo o que ele quer. Uma vez que ele está "equipado" para a guerra, tentar confrontá-lo é dar-lhe crédito em seu campo, e perder tempo, energia e disposição. Recomendo uma frieza quase didática se se considerar que uma resposta vale a pena. Em segundo lugar, é preciso desarmá-lo de sua postura, e uma boa maneira de fazer isso é expor sua estratégia. Isso pode ser feito quando isolamos as palavras agressivas para comentá-las, ou questionamos a caixa alta e as risadas, ou detectamos o "efeito manada" na atuação de distintos perfis. De novo, é necessário sangue frio, e preparação para o revide, porque expor as inconsistências de discurso ou intenções subjacentes de um interlocutor normalmente tende a incomodá-lo. Em terceiro lugar, acredito que seja saudável e importante localizar, selecionar e divulgar, ou até mesmo construir, espaços virtuais públicos de discussão ampla sobre determinados assuntos. Quando um engraçadinho quisesse fazer um bate-boca sobre alguma questão com a intenção clara de perturbar um internauta, ele poderia ser remetido a um desses espaços, para testar suas ideias dentro de um ambiente mais amplo. Responder a uma postagem arrogante com o link de um especialista ou de um fórum sobre a questão pode ser um bom método de qualificar a discussão, ou obrigar o interlocutor a responder não aos argumentos do blogueiro, e sim aos de muitas outras pessoas que se debruçaram sobre o assunto. Por fim, acredito que seja legítimo, em grande parte dos casos, simplesmente não responder, apagar o comentário ou mesmo responder em particular, se se sentir que isso é possível. Boa parte dos blogues são espaços pessoais, embora com exposição pública. Ninguém pode ser obrigado a aceitar atitudes desrespeitosas, que acabam ganhando uma publicidade indevida, e que muitas vezes são realizadas justamente para obter essa publicidade. Ademais, o comportamento de muitos dos perfis na internete chega a ser psicótico, e não são todas as pessoas que conseguem lidar com esse padrão de comportamento. 

Em complemento a esta postagem, vou colocar alguns exemplos de comentário pernicioso nos vários portais e blogues que acompanho, apenas para que não pareça que esse é um incômodo exclusivamente meu, ou relacionado a uma situação específica. Vou fazer isso aos poucos. O importante é que decidi não mais prestigiar a ignorância. Ou será remetida a um debate qualificado, ou será desprezada. É isso.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Linguagem, escolhas e notícias

Acabei de fazer uma consulta rápida às minhas fontes e verifiquei que o continente americano possui mais de 900 milhões de habitantes. É muita gente.

Imagino que, dentro desse imenso contingente populacional americano, não sejam todas as pessoas que tenham condições de ser atletas. Muito menor deve ser o número de atletas de destaque. Muito menor ainda o de atletas em condições de representar seu país. E deve ser ínfimo, para esse contingente, o número de atletas em condições de disputar e vencer uma medalha nos Jogos Panamericanos.

Na verdade, eu não estava pensando a respeito disso até deparar com a manchete do portal Terra que aparece na figura abaixo:



Não farei aqui nenhuma avaliação sobre a conveniência ou inconveniência dos termos empregados. Mas chamo a atenção do leitor para a posição do autor da matéria em relação às informações selecionadas para compor o texto. Repare como a escolha das palavras determina um viés de interpretação em relação ao que é e o que não é importante.

Primeiro, vamos à notícia. Mayra Aguiar conquistou medalha de prata no judô no Pan. A medalha de ouro foi conquistada por Kayla Harrison. As duas já se enfrentaram anteriormente diversas vezes. Essas informações podem ser recuperadas de diversas formas, a partir de distintas escolhas de linguagem. Cada escolha reforçará uma ideia, e não será neutra, pois implicará seleção de informações mais específicas para complementar a ideia das informações principais.

Começo destacando o termo "jejum". Ele aparece como primeira palavra da manchete, e está semanticamente associado a "fome", "falta" e "período de tempo". Com sentido evidentemente negativo, ele está associado à não conquista da medalha de ouro pela atleta. Especificamente da medalha de ouro, porque Mayra Aguiar já havia conquistado prata no Pan de 2007 e bronze no Pan de 2011. Seria possível destacar a sequência histórica de conquistas de medalhas, mas a opção recai na sequência de não conquistas da medalha de ouro.

A ideia de "derrota" que se amplia no tempo (veja o uso do verbo "continua" associado a "jejum") estabelece uma direção para o texto, que tende a se uniformizar em sua construção. É importante ressaltar que essa ideia é evidentemente polêmica, como vimos, pois a definição de sucesso está atrelada tão somente à conquista da medalha de ouro. A despeito disso, a manchete permanece fiel à negatividade anunciada na primeira frase, reforçando com a expressão "perde mais uma". É como se as lutas perdidas estivessem sendo contadas, e as vencidas fossem menos importantes.

Adiante, ainda na manchete, utiliza-se o vocábulo "algoz". O Dicionário Houaiss define "algoz" como "carrasco, executor da pena de morte ou de outras penas capitais". Essa metáfora, comum no jornalismo esportivo, é dramática e hiperbólica, e poderia passar como licença poética se não reforçasse, no contexto empregado, a ideia de insucesso, atribuindo muito maior poder a quem vence (metaforicamente, aquele que mata) e muito menor poder a quem é vencido (metaforicamente, aquele que morre).

Para que não se pense que a análise atribui mais peso aos termos do que eles possuem, consideremos que não se trata de usar ou não a ideia de "algoz", mas de fazê-lo junto com as ideias de "jejum", de perder "mais uma" e de ser "novamente derrotada" (expressão presente no lide). Todas essas expressões, que semanticamente reforçam os traços relativos à derrota, são compensadas apenas pela única informação não negativa, a da medalha conquistada, de "prata". Interessante notar que mesmo a informação da medalha de prata aparece negativizada pelo texto, pois não é apresentada como conquista, e sim como consequência de um fracasso.

O texto desenvolve-se com esse viés e há poucas concessões à positividade da campanha realizada pela judoca. Quanto à ideia da série histórica de derrotas, a matéria aponta para um saldo negativo a partir de uma interpretação sobre os resultados anteriores dos confrontos entre Kayla e Mayra. Note-se que o viés adotado estabelece que dados se deve recuperar da informação e como comentar esses dados:


No caso do trecho selecionado, a primeira informação dá conta de que Mayra havia vencido sete vezes Kayla, uma a mais que a adversária. Portanto, com o resultado da final do Pan, estabelece-se um equilíbrio na disputa, um empate. Entretanto, o autor desconsidera os números da série histórica de confrontos porque, apontando esse empate, eles não reforçam sua ideia central, associada às noções de derrota e fracasso. Para manter a coerência com o viés adotado, recupera apenas duas competições indicadas como "grandes eventos", o Pan de Guadalajara e a Olímpíada de Londres. Com isso, pode falar de "retrospecto negativo": ele não se refere ao histórico dos confrontos, mas às disputas realizadas em "grandes eventos". O recorte da informação consolida a ideia negativa, que poderia ser afastada pelos dados mais amplos. Também é importante notar que a redação considera que o leitor tenha a mesma opinião do autor do texto sobre o que seriam "grandes eventos".

O que estou tentando mostrar com isso? O seguinte:

1) nenhum texto jornalístico é neutro, porque a língua não é um recorte neutro do mundo;
2) há muitas formas de lidar com dados, informações e números; portanto, é preciso cuidado quando as pessoas dizem que "contra fatos/números não há argumentos";
3) não é possível que três medalhas conquistadas em três edições do Pan por uma judoca possam ser vistas como "jejum" ou possam ser associadas a "retrospecto negativo";
4) dentre 900 milhões de americanos, a atleta brasileira habilitou-se para a conquista de uma medalha de prata em uma modalidade de judô, tendo sido derrotada apenas na final da competição por uma atleta estado-unidense, e isso é lembrado por um grande portal de mídia como fracasso;
5) não sei qual a cartilha dos jornalistas de hoje em dia, e menos ainda em relação ao portal de onde extraí a notícia, mas há claramente um viés de desvalorização do atleta na forma como a informação é noticiada; 
6) não acho que é justo estendermos a nossos atletas esse complexo de inferioridade que caracteriza boa parte do pensamento de nossa sociedade, e que não se justifica de maneira alguma.

O pior não é isso. O pior é que essas escolhas de linguagem, articuladas a matérias lidas muitas vezes de forma apressada e irrefletida, produzem um certo "senso comum" para o público em geral, que assimila esse viés de desvalorização como se ele fosse de fato uma abordagem neutra e objetiva. E aí é dose: atletas como Mayra Aguiar, medalhistas em Pan, Mundiais e Olimpíada, têm sua imagem associada ao fracasso. O que é quase um crime numa sociedade que, via de regra, só apoia com patrocínios e investimentos, no esporte, os que já venceram ou têm enormes chances de vencer, deixando em segundo plano aqueles que lutam com gigantesca dignidade, mas que não têm a oportunidade de subir em pódios.




quinta-feira, 9 de julho de 2015

O dom de cantar e o dom de saber usar esse dom



Lembro-me de ouvir, sobre meu ídolo esportivo de sempre, Roger Federer, que algumas vezes ele se perdia durante as partidas que disputava por uma razão até meio bisonha. O tenista suíço é, indiscutivelmente, o mais talentoso jogador de tênis de todos os tempos; em função disso, a cada jogada, duas ou três diferentes soluções poderiam passar por sua cabeça, todas passíveis de serem realizadas por seu braço. O que ouvi de algum comentarista cujo nome me falha na memória é que Roger, às vezes, não encontrava a melhor das soluções possíveis, e acabava perdendo para adversários que, por limitações técnicas, faziam exatamente a mesma coisa em todas as situações dadas, mas sem vacilar. 
Eu fiquei pensando sobre essa questão na tarde hoje, e refleti que o talento, ou o dom, ou a capacidade maior ou menor de fazer alguma coisa (não me importa se pensada como natural ou desenvolvida) é uma condição do indivíduo que pode ajudar ou atrapalhar. Sem dúvida, eu e muitas outras pessoas admiramos quem tem esses talentos. Gostaria muito de ter a habilidade com as palavras que vejo em muitos escritores, a potência e extensão de voz de muitos cantores, a musicalidade de muitos instrumentistas que conheço. Mas ter essas capacidades não quer dizer, de forma alguma, que eu poderia produzir com elas realizações como as que sempre sonhei para minha vida. A distância entre uma coisa e outra é muito grande.
Há algum tempo, eu e meu professor de canto, o Dudé, conversávamos sobre o fantástico Glenn Hughes, vocalista de capacidades impressionantes, virtualmente ilimitadas. O Dudé me dizia que o que havia de melhor em Hughes é que ele, mesmo podendo usar a extraterrestre voz de cinco oitavas e as dezenas de diferentes técnicas de canto, fazia escolhas que limitavam esse potencial para poder dar destaque às canções. É incrível vê-lo buscar notas absurdas em "Mistreated" ao vivo, mas também é incrível ver como respeita canções natalinas, por exemplo, quando as interpreta em um álbum como "A Soulful Christmas". Não importa, nesse trabalho, demonstrar quanto ele "pode" ou "alcança". Importa mostrar quanto ele entende que pode contribuir para o espírito de cada faixa, de cada canção. E o resultado é belíssimo.
Voltando à minha reflexão, meditei que Hughes, ao "economizar" voz e firulas na interpretação das músicas natalinas, entendeu à sua maneira aquilo a que vinha me referindo anteriormente: seus dons podem atrapalhar, nesse caso. Explorar todo o seu potencial de voz em canções singelas fere justamente o que elas têm de mais bonito, e o resultado artístico, embora pudesse ser uma verdadeira aula de canto, tornar-se-ia ao mesmo tempo uma lição de mau gosto estético. 
Dessa forma, acredito que seja missão do intérprete, vocalista ou cantor, em primeiro lugar, saber usar sua voz como recurso para um projeto estético maior. Se ocorrer o contrário, se o projeto estético for utilizado como recurso para promoção da voz, o efeito é egótico e redutor, e ainda que impressione a curto prazo, torna-se cansativo para o ouvinte. Por isso, creio que o grande talento ou dom a ser desenvolvido pelo cantor, que deve estar associado ao seu autoconhecimento e apuro técnico e à sua formação cultural e musical, é aquilo que vou chamar de talento de gerenciar os próprios talentos. Ou dom de saber usar o dom de cantar. 
O nome pode parecer meio maluco, mas acredito que ele represente uma capacidade à parte, tão importante quanto os recursos técnicos e físicos e, até diria, mais fundamental do que eles, considerando que artistas sem muitas qualidades vocais mas com grande inteligência musical para usar as que têm também podem alcançar excelentes resultados a partir da consciência das próprias limitações. Estendendo essa reflexão para além das questões da voz, penso que o artista, em geral, precisa encontrar, dentro de si, a medida da entrega que não comprometa o conjunto da obra. Talvez isso não seja tão óbvio nem tão fácil de fazer em um mundo que associa cada vez mais a arte, e principalmente a produção de consumo, a perfis individuais, isolados, artificiais e egocentrados, com os quais a sociedade individualista está apta a se identificar imediatamente. Mas se não for assim, o que se produz não se sustenta, e acaba caindo na vala comum da descartabilidade e irrelevância, como muito material que vemos por aí.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Incompreensível para mim


Vamos lá, bem simples.

1) Prefiro a palavra "impedimento", já devidamente aportuguesada, à palavra "impeachment".

2) Fui governado 8 anos por FHC, em quem não votei, já tendo idade para votar. Houve corrupção no governo FHC? Houve (compra de votos da reeleição, privatizações etc.). Em algum momento eu pedi o impedimento dele? Não.

3) Fui governado 4 anos por Celso Pitta, DEP, em quem não votei. Houve corrupção no governo dele? Nem precisa responder. Em algum momento pedi o impedimento dele? Não.

4) Fui governado mais de vinte anos por Serra, Alckmin, Covas. Houve corrupção durante esse período? Sim (caso Siemens). Em algum momento pedi impedimento de qualquer um deles? Não.

5) Fui governado por caras em quem votei, vários. Covas, Fleury, Lula, Dilma, Marta. Houve corrupção nesses governos? Sim, sem dúvida. Senti-me enganado, traído, humilhado e diminuído em minhas escolhas? Não. Tenho consciência de que voto em partidos e estruturas ideológico-políticas, e não em perfis vendidos por marqueteiros. Alguma vez pedi o impedimento de quaisquer dessas pessoas? Não.

6) Por que não pedi o impedimento de todos esses caras, se admito que em todos esses governos houve corrupção? Porque uma coisa não tem nada a ver com a outra. Impedimento é uma medida legal que recai sobre quem comprovadamente cometeu um crime. Precisa de um julgamento, com direito a ampla defesa e contraditório. Leva tempo, e tem de ser assim. 

7) E mais: impedimento é da pessoa, não da organização político-partidária. Essa permanece, porque o povo a elegeu. Se o povo elegeu Pitta, e o vice do Pitta é o Kassab, significa que o impedimento do Pitta coloca o Kassab no poder para realizar o programa de governo... do Pitta! 

8) Democracia implica saber perder. Quem não sabe perder, não sabe ganhar. E isso é perigoso. Se Alckimin, por exemplo, por qualquer razão, deixar de governar São Paulo, quem tem de assumir? Alguém do PSDB, ou da coligação, óbvio. Por quê? Porque houve uma eleição majoritária que prestigiou essa coligação, e isso tem de ser respeitado. Essa eleição prestigiou um programa de governo, uma maneira de pensar, e não um indivíduo isolado. Eleições são pra isso.

9) E se eu acaso não gosto do PSDB? Eu tenho o direito de cobrá-lo, pressioná-lo, questioná-lo, e organizar minhas forças para vencê-lo. Mas politicamente, na negociação, no embate de interesses. Tirá-lo do poder, só daqui a quatro anos, quando houver nova eleição, se for do meu interesse e se eu conseguir que a maioria das pessoas concorde comigo. Democraticamente, pelo debate, pela organização, pela persuasão.

10) Passar por cima de tudo isso, de toda uma estrutura democrática que levou anos para ser construída, em nome de espasmos de tensão indignada causados pela leitura de postagens no Face é algo que estou tentando entender há algum tempo. Que está acontecendo com as pessoas? 
Eu entendo perfeitamente a mídia manipular sua cabeça pelos interesses dos grandes grupos econômicos. Eu não consigo entender você se deixar levar por tanta bobagem num momento em que a informação pode ser buscada, discutida, conferida e analisada como nunca fora antes.

São dias difíceis. Espero que as pessoas saibam o que estão fazendo.