terça-feira, 14 de julho de 2015

Linguagem, escolhas e notícias

Acabei de fazer uma consulta rápida às minhas fontes e verifiquei que o continente americano possui mais de 900 milhões de habitantes. É muita gente.

Imagino que, dentro desse imenso contingente populacional americano, não sejam todas as pessoas que tenham condições de ser atletas. Muito menor deve ser o número de atletas de destaque. Muito menor ainda o de atletas em condições de representar seu país. E deve ser ínfimo, para esse contingente, o número de atletas em condições de disputar e vencer uma medalha nos Jogos Panamericanos.

Na verdade, eu não estava pensando a respeito disso até deparar com a manchete do portal Terra que aparece na figura abaixo:



Não farei aqui nenhuma avaliação sobre a conveniência ou inconveniência dos termos empregados. Mas chamo a atenção do leitor para a posição do autor da matéria em relação às informações selecionadas para compor o texto. Repare como a escolha das palavras determina um viés de interpretação em relação ao que é e o que não é importante.

Primeiro, vamos à notícia. Mayra Aguiar conquistou medalha de prata no judô no Pan. A medalha de ouro foi conquistada por Kayla Harrison. As duas já se enfrentaram anteriormente diversas vezes. Essas informações podem ser recuperadas de diversas formas, a partir de distintas escolhas de linguagem. Cada escolha reforçará uma ideia, e não será neutra, pois implicará seleção de informações mais específicas para complementar a ideia das informações principais.

Começo destacando o termo "jejum". Ele aparece como primeira palavra da manchete, e está semanticamente associado a "fome", "falta" e "período de tempo". Com sentido evidentemente negativo, ele está associado à não conquista da medalha de ouro pela atleta. Especificamente da medalha de ouro, porque Mayra Aguiar já havia conquistado prata no Pan de 2007 e bronze no Pan de 2011. Seria possível destacar a sequência histórica de conquistas de medalhas, mas a opção recai na sequência de não conquistas da medalha de ouro.

A ideia de "derrota" que se amplia no tempo (veja o uso do verbo "continua" associado a "jejum") estabelece uma direção para o texto, que tende a se uniformizar em sua construção. É importante ressaltar que essa ideia é evidentemente polêmica, como vimos, pois a definição de sucesso está atrelada tão somente à conquista da medalha de ouro. A despeito disso, a manchete permanece fiel à negatividade anunciada na primeira frase, reforçando com a expressão "perde mais uma". É como se as lutas perdidas estivessem sendo contadas, e as vencidas fossem menos importantes.

Adiante, ainda na manchete, utiliza-se o vocábulo "algoz". O Dicionário Houaiss define "algoz" como "carrasco, executor da pena de morte ou de outras penas capitais". Essa metáfora, comum no jornalismo esportivo, é dramática e hiperbólica, e poderia passar como licença poética se não reforçasse, no contexto empregado, a ideia de insucesso, atribuindo muito maior poder a quem vence (metaforicamente, aquele que mata) e muito menor poder a quem é vencido (metaforicamente, aquele que morre).

Para que não se pense que a análise atribui mais peso aos termos do que eles possuem, consideremos que não se trata de usar ou não a ideia de "algoz", mas de fazê-lo junto com as ideias de "jejum", de perder "mais uma" e de ser "novamente derrotada" (expressão presente no lide). Todas essas expressões, que semanticamente reforçam os traços relativos à derrota, são compensadas apenas pela única informação não negativa, a da medalha conquistada, de "prata". Interessante notar que mesmo a informação da medalha de prata aparece negativizada pelo texto, pois não é apresentada como conquista, e sim como consequência de um fracasso.

O texto desenvolve-se com esse viés e há poucas concessões à positividade da campanha realizada pela judoca. Quanto à ideia da série histórica de derrotas, a matéria aponta para um saldo negativo a partir de uma interpretação sobre os resultados anteriores dos confrontos entre Kayla e Mayra. Note-se que o viés adotado estabelece que dados se deve recuperar da informação e como comentar esses dados:


No caso do trecho selecionado, a primeira informação dá conta de que Mayra havia vencido sete vezes Kayla, uma a mais que a adversária. Portanto, com o resultado da final do Pan, estabelece-se um equilíbrio na disputa, um empate. Entretanto, o autor desconsidera os números da série histórica de confrontos porque, apontando esse empate, eles não reforçam sua ideia central, associada às noções de derrota e fracasso. Para manter a coerência com o viés adotado, recupera apenas duas competições indicadas como "grandes eventos", o Pan de Guadalajara e a Olímpíada de Londres. Com isso, pode falar de "retrospecto negativo": ele não se refere ao histórico dos confrontos, mas às disputas realizadas em "grandes eventos". O recorte da informação consolida a ideia negativa, que poderia ser afastada pelos dados mais amplos. Também é importante notar que a redação considera que o leitor tenha a mesma opinião do autor do texto sobre o que seriam "grandes eventos".

O que estou tentando mostrar com isso? O seguinte:

1) nenhum texto jornalístico é neutro, porque a língua não é um recorte neutro do mundo;
2) há muitas formas de lidar com dados, informações e números; portanto, é preciso cuidado quando as pessoas dizem que "contra fatos/números não há argumentos";
3) não é possível que três medalhas conquistadas em três edições do Pan por uma judoca possam ser vistas como "jejum" ou possam ser associadas a "retrospecto negativo";
4) dentre 900 milhões de americanos, a atleta brasileira habilitou-se para a conquista de uma medalha de prata em uma modalidade de judô, tendo sido derrotada apenas na final da competição por uma atleta estado-unidense, e isso é lembrado por um grande portal de mídia como fracasso;
5) não sei qual a cartilha dos jornalistas de hoje em dia, e menos ainda em relação ao portal de onde extraí a notícia, mas há claramente um viés de desvalorização do atleta na forma como a informação é noticiada; 
6) não acho que é justo estendermos a nossos atletas esse complexo de inferioridade que caracteriza boa parte do pensamento de nossa sociedade, e que não se justifica de maneira alguma.

O pior não é isso. O pior é que essas escolhas de linguagem, articuladas a matérias lidas muitas vezes de forma apressada e irrefletida, produzem um certo "senso comum" para o público em geral, que assimila esse viés de desvalorização como se ele fosse de fato uma abordagem neutra e objetiva. E aí é dose: atletas como Mayra Aguiar, medalhistas em Pan, Mundiais e Olimpíada, têm sua imagem associada ao fracasso. O que é quase um crime numa sociedade que, via de regra, só apoia com patrocínios e investimentos, no esporte, os que já venceram ou têm enormes chances de vencer, deixando em segundo plano aqueles que lutam com gigantesca dignidade, mas que não têm a oportunidade de subir em pódios.




quinta-feira, 9 de julho de 2015

O dom de cantar e o dom de saber usar esse dom



Lembro-me de ouvir, sobre meu ídolo esportivo de sempre, Roger Federer, que algumas vezes ele se perdia durante as partidas que disputava por uma razão até meio bisonha. O tenista suíço é, indiscutivelmente, o mais talentoso jogador de tênis de todos os tempos; em função disso, a cada jogada, duas ou três diferentes soluções poderiam passar por sua cabeça, todas passíveis de serem realizadas por seu braço. O que ouvi de algum comentarista cujo nome me falha na memória é que Roger, às vezes, não encontrava a melhor das soluções possíveis, e acabava perdendo para adversários que, por limitações técnicas, faziam exatamente a mesma coisa em todas as situações dadas, mas sem vacilar. 
Eu fiquei pensando sobre essa questão na tarde hoje, e refleti que o talento, ou o dom, ou a capacidade maior ou menor de fazer alguma coisa (não me importa se pensada como natural ou desenvolvida) é uma condição do indivíduo que pode ajudar ou atrapalhar. Sem dúvida, eu e muitas outras pessoas admiramos quem tem esses talentos. Gostaria muito de ter a habilidade com as palavras que vejo em muitos escritores, a potência e extensão de voz de muitos cantores, a musicalidade de muitos instrumentistas que conheço. Mas ter essas capacidades não quer dizer, de forma alguma, que eu poderia produzir com elas realizações como as que sempre sonhei para minha vida. A distância entre uma coisa e outra é muito grande.
Há algum tempo, eu e meu professor de canto, o Dudé, conversávamos sobre o fantástico Glenn Hughes, vocalista de capacidades impressionantes, virtualmente ilimitadas. O Dudé me dizia que o que havia de melhor em Hughes é que ele, mesmo podendo usar a extraterrestre voz de cinco oitavas e as dezenas de diferentes técnicas de canto, fazia escolhas que limitavam esse potencial para poder dar destaque às canções. É incrível vê-lo buscar notas absurdas em "Mistreated" ao vivo, mas também é incrível ver como respeita canções natalinas, por exemplo, quando as interpreta em um álbum como "A Soulful Christmas". Não importa, nesse trabalho, demonstrar quanto ele "pode" ou "alcança". Importa mostrar quanto ele entende que pode contribuir para o espírito de cada faixa, de cada canção. E o resultado é belíssimo.
Voltando à minha reflexão, meditei que Hughes, ao "economizar" voz e firulas na interpretação das músicas natalinas, entendeu à sua maneira aquilo a que vinha me referindo anteriormente: seus dons podem atrapalhar, nesse caso. Explorar todo o seu potencial de voz em canções singelas fere justamente o que elas têm de mais bonito, e o resultado artístico, embora pudesse ser uma verdadeira aula de canto, tornar-se-ia ao mesmo tempo uma lição de mau gosto estético. 
Dessa forma, acredito que seja missão do intérprete, vocalista ou cantor, em primeiro lugar, saber usar sua voz como recurso para um projeto estético maior. Se ocorrer o contrário, se o projeto estético for utilizado como recurso para promoção da voz, o efeito é egótico e redutor, e ainda que impressione a curto prazo, torna-se cansativo para o ouvinte. Por isso, creio que o grande talento ou dom a ser desenvolvido pelo cantor, que deve estar associado ao seu autoconhecimento e apuro técnico e à sua formação cultural e musical, é aquilo que vou chamar de talento de gerenciar os próprios talentos. Ou dom de saber usar o dom de cantar. 
O nome pode parecer meio maluco, mas acredito que ele represente uma capacidade à parte, tão importante quanto os recursos técnicos e físicos e, até diria, mais fundamental do que eles, considerando que artistas sem muitas qualidades vocais mas com grande inteligência musical para usar as que têm também podem alcançar excelentes resultados a partir da consciência das próprias limitações. Estendendo essa reflexão para além das questões da voz, penso que o artista, em geral, precisa encontrar, dentro de si, a medida da entrega que não comprometa o conjunto da obra. Talvez isso não seja tão óbvio nem tão fácil de fazer em um mundo que associa cada vez mais a arte, e principalmente a produção de consumo, a perfis individuais, isolados, artificiais e egocentrados, com os quais a sociedade individualista está apta a se identificar imediatamente. Mas se não for assim, o que se produz não se sustenta, e acaba caindo na vala comum da descartabilidade e irrelevância, como muito material que vemos por aí.