Venho acompanhando pela televisão e pela internete a terrível situação das cidades serranas do Rio de Janeiro, de vários bairros da minha cidade, e de várias localidades pelo Brasil afora que sofreram com as chuvas de janeiro. O que tenho visto e ouvido é sempre muito triste, porque as perdas humanas e materiais foram muito grandes.
Nesses momentos em que vemos pessoas perderem seus entes queridos, suas casas, seus pertences, ficamos com um sentimento de injustiça, de comiseração, pensando que as coisas poderiam e deveriam ser diferentes. Isso é natural do ser humano de bom coração, que desenvolve uma das emoções mais fundamentais para a sobrevivência social de nossa espécie, que é a compaixão.
Mas este momento é muito delicado, e a compaixão precisa se transformar em ação efetiva. E quando as emoções precisam se transformar em ações efetivas, entra o elemento racional, para organizar e tornar produtivos os investimentos de energia que estamos dispostos a empregar para minimizar esse tipo de tragédia.
Nesse momento de racionalidade, de tentativa de entendimento, de utilização da inteligência do homem para o bem do próximo, não podemos deixar que as emoções travem a lucidez, porque isso só pioraria a situação. É preciso que a compreensão dos fenômenos que causaram essas tragédias seja lúcida, transparente, minimamente desapaixonada. E o que me preocupa é que não tem havido discussão lúcida na mídia, que é a principal fonte de informação e orientação sobre os acontecimentos que se sucederam.
O que tenho visto na mídia é a substituição da lucidez por uma indignação seletiva, quando não pela simples histeria de procurar culpados pelas desgraças. Qualquer pessoa de bom senso entende que apontar culpados não contribui. Apontar culpados pode funcionar como um fator de alívio para as pessoas indignadas e chateadas com o que aconteceu; os bodes expiatórios sempre têm uma função de catalisadores da raiva e agressividade coletivas. Entretanto, obviamente acaba se tornando uma forma de compreender menos, de entender mal. Canalisar agressividade nada tem a ver com analisar racionalmente um problema e procurar paliativos, soluções e medidas eficientes.
Uma tragédia não começa no dia em que cai sobre tudo a sua volta. Ela é resultado de anos e anos de erros, de imperfeições, de problemas, que criam uma situação perigosa. Essa iminência do perigo alia-se a circunstâncias desfavoráveis em determinados momentos, e aí é que explodem os problemas graves. Mas é preciso que fique claro que uma destruição de tal extensão NÃO PODE SER OBRA DE UM ÚNICO FATOR ISOLADO. Ou são considerados os diversos fatores que levaram ao problema, ou o problema nunca será sanado nem minimizado. Quando as pessoas insistem em apontar para um fator isolado, por questões morais, políticas, ideológicas, elas estão, na verdade, atrapalhando a busca de soluções.
Vejo e ouço pessoas falarem das responsabilidades dos governos federal, estadual, municipal. Ok. É um fator a se observar. MAS NÃO É O ÚNICO. Não se resolvem problemas de infraestrutura das cidades apenas com investimentos em prevenção de tragédias, e isso por vários motivos. Em primeiro lugar, porque não é uma questão de quantidade de dinheiro investido em um período específico, mas de projeto a longo prazo, focando exatamente o problema a ser solucionado. Em segundo lugar, porque não é possível prever com toda essa exatidão qual seria exatamente o problema a ser solucionado; há certa imprevisibilidade nas tragédias naturais, que podemos minimizar com a tecnologia, mas ainda não conseguimos, nem nos países mais avançados do mundo, eliminar por completo. Em terceiro lugar, porque mesmo os investimentos em prevenção de tragédias são paliativos num contexto mundial de mudança climática constante e grandes alterações regionais. Em quarto lugar, porque há problemas estruturais que são mais profundos. São Paulo, minha cidade, é um exemplo disso. As enchentes continuarão infelizmente acontecendo por muito tempo, seja qual for o investimento do Estado ou da Prefeitura, porque a cidade foi construída de forma desordenada, sem um plano que previsse situações como as que temos vivido. Não se pode dizer que uma ou outra administração específica, ou mesmo que o Estado apenas, sejam culpados de um fenômeno cultural complexo, a saber, a ocupação anárquica da área e o crescimento sem planejamento da metrópole. Por fim, algo que é óbvio, embora o óbvio pareça às vezes uma ofensa a certas inteligências: soa completamente absurdo pensar que qualquer governante queira que essas tragédias aconteçam, ou que não queira evitá-las. Há erros, há opções discutíveis, mas não dá para imaginar uma insensibilidade tão monstruosa por parte dos nossos representantes de, intencionalmente, deixarem acontecer as perdas que vêm acontecendo.
Vejo e ouço pessoas falarem sobre a responsabilidade dos próprios habitantes que moram nas áreas alagadas. Ok. É outro fator a se observar. Ressalva-se, apenas, que é preciso verificar se foram somente residências em áreas consideradas de risco que foram atingidas, ou se os problemas foram tão graves que atingiram locais impensáveis. Mas, voltando às áreas perigosas, é certo que construir uma casa numa região de risco é, de certa forma, assumir esse risco para si e para a própria família. Mas a questão não se resolve assim, apontando as pessoas como algozes de si mesmas. Ao que me conste, ninguém quer morrer, nem perder suas pessoas amadas. É preciso saber por que as pessoas estavam nessa condição de risco. Será que todos têm alternativas? Será que todos têm informação, orientação? Será que as desocupações necessárias para salvar a vida de muitos foram barradas por serem inconvenientes politicamente? Será que os técnicos encarregados de liberar as autorizações para as construções foram profissionalmente corretos? Será que os projetos de tirar as famílias das áreas perigosas não feririam interesses econômicos de empresas, especuladores imobiliários, e até das próprias famílias? Todos esses são fatores a se considerar, antes que se aponte para a vítima como ÚNICO CULPADO de sua queda. E mesmo que se constate que houve imprudência por parte da vítima, isso nos impede, enquanto seres de mesma condição humana, de querer ajúdá-la, orientá-la, zelar por seu bem-estar? Isso nos desobriga de repensarmos as condições em que tudo aconteceu? Isso nos oferece justificativa para não nos comovermos com a situação em que as pessoas ficaram? (Sempre lembrando que é preciso saber se só pessoas em áreas consideradas de risco foram atingidas, ou se a extensão das perdas atingiu também quem estava em locais até então considerados seguros).
E há muitas outras coisas a se considerar. Há que se considerar até que ponto as mudanças climáticas que vivenciamos não são responsabilidade da humanidade como um todo, por suas opções antiecológicas. Há que se considerar a ação individual ética de cada um, ou seja, até que ponto o lixo que o indivíduo joga no bueiro achando que nada vai acontecer não se transforma em uma parte do problema mais amplo, ainda que seja uma pequena parte. Há que se considerar se o estilo de vida das pessoas, que é suicida em vários aspectos, como no trato da própria saúde, não precisa se tornar mais respeitoso em relação aos riscos em que são colocadas as próprias pessoas e as que as rodeiam: até que ponto vale a pena economizar para ter celular, roupa bonita, carro, e colocar em risco a própria integridade física - seja por tragédias naturais, ou tiroteios, ou mesmo por desatenção em relação a outros aspectos práticos da vida?
Sem considerar com muito cuidado, com muita lucidez, com muito carinho, todos esses fatores, e sem avaliar como cada um deles poderia ser minimizado para que novas tragédias não venham a acontecer, não chegaremos a nenhuma conclusão produtiva. O que teremos é demagogia, histeria, sensacionalismo.
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