Se isso ocorre pelo fato de ser eu capricorniano, não sei. Sei que tenho muito forte essa característica do signo de ser reservado no tocante à vida pessoal. Mesmo em rodas de amigos ou com familiares, não falo de conquistas amorosas, nem de perdas. Não falo das pessoas com quem me relaciono. Não falo das minhas preferências. Não toco em assuntos de foro íntimo, a não ser que meus problemas exijam, num grau desesperador de estado físico ou financeiro, ajuda alheia. Não gosto de expor ninguém. E ainda mais: acho que uma das armadilhas da sociedade do espetáculo é que você deixa de poder amar livremente quando passa a ser seguido, vigiado, julgado por sua visibilidade. Para mim, é sempre melhor amar em segredo, viver relacionamentos sem o julgamento apressado, parcial, recalcado e conservador da maioria das pessoas.
Nunca escrevi aqui sobre meus relacionamentos. Tenho o máximo respeito pelas pessoas que, algum dia por algum motivo, entenderam gostar de mim a ponto de compartilhar seu tempo, sua história, sua intimidade. Não tenho o direito de expor suas vidas e aquilo que elas dividiram comigo. Portanto, em que pese o título do texto, continuarei não falando de meus relacionamentos, no que tange à sua concretude histórica, digamos assim. Nas próximas linhas, apenas tentarei desenhar percepções mais abstratas sobre relacionamentos em geral, considerando, evidentemente, minha interiorização das experiências que tive. Alerto que as colocações que farei podem ser chocantes e surpreendentes, e que as pessoas que prezam uma determinada imagem minha de bom moço ou criatura ponderada podem se sentir imensamente frustradas com o que venham a ler.
A primeira colocação que farei parece ter fundo moral, ético, paradigmático, proverbial, mas não é nada disso. É algo que é ridiculamente óbvio, mas que só pode ser verdadeiramente apreendido com o tempo. É o seguinte: ninguém é obrigado a gostar de ninguém. Implicação primeira disso é que ninguém é obrigado a gostar de mim. Evidente, elementar? Creio que sim, mas levei muito tempo para sentir que podia lidar com isso. Sempre foi difícil para um jovem inseguro como eu compreender que as paixões são voláteis, são passageiras, são instáveis, e que as pessoas mudam, como muda a orientação de seus corações. E que isso nada tinha a ver com meu valor enquanto ser humano. Talvez por isso as separações tenham sido, na minha vida, momentos absolutamente devastadores, em que me senti imobilizado e diminuído diante de todos à minha volta. O tempo me ensinou a não procurar justificações, embora de vez em sempre eu me pegue tentando racionalizar, justificar, estabelecer causas e efeitos para acontecimentos que são refratários a essas apreensões tão mentais. Mas creio que a segunda implicação seja a mais difícil de lidar: a de que não sou obrigado a gostar de ninguém. Ou seja: os sentimentos que tenho, em determinados momentos e em determinadas configurações da marcha da vida, por determinadas pessoas, costumam ser muito mais voláteis e indeterminados e surpreendentes que os vínculos que estabeleço a partir desses sentimentos. Isso é terrível para quem tem preocupação com o outro, porque é um espaço em que a ética e a dignidade não comandam. Repare o leitor que não me refiro às ações, mas aos sentimentos propriamente ditos. Acredito que as pessoas devem, sim, honrar seus compromissos. Apenas não acredito que os compromissos, verbais ou legais, possam controlar, abafar ou modificar certos sentimentos, como os que se relacionam ao amor e à paixão amorosa. O resultado interior disso sempre foi um só, no meu caso: culpa. Sensação de pequenez moral. Autopunição. Aceitação passiva das invasões e agressões alheias. Até que foi chegando um tempo em que percebi que não havia nada de exatamente errado com as coisas do coração. Que nada havia de imoral em sentir atração por uma pessoa quando ela, ou eu, vivíamos outra relação. Que nada havia de antiético em amar ou estar apaixonado por pessoas diferentes num mesmo momento da vida. Que nada havia de surpreendente em viver fases numa relação em que não havia amor nem paixão pela pessoa com quem me relacionava, embora ainda houvesse uma respeitável história a dois e uma forte expectativa de superação desse momento. Foi nesse tempo que comecei a entender que o ciúme, a possessividade, as exigências mil de demonstrações de afeto ou consideração, as obrigações "contratuais" dos namoros e casamentos, eram brinquedinhos bobos diante da magnanimidade da vida amorosa de um ser humano.
E isso me levou a mais algumas percepções.
Passei a entender, por exemplo, que não é possível saber tudo sobre uma pessoa. Mais que isso: não é saudável nem inteligente querer saber tudo sobre uma pessoa. As pessoas precisam ter um espaço insondável, surpreendente, permitido, ainda que isso nos custe uma certa insegurança e a sensação de que não podemos controlá-las. Mas a verdade é que não podemos mesmo ter esse controle, e se os sentimentos de uma pessoa apontam numa direção que não queremos, o melhor que podemos fazer é manter uma atitude de respeito e de amizade, e aprender a conviver com isso.
Passei a entender, também, que essa ideia de alma gêmea é uma analogia poética para relacionamentos que são bons e estáveis por muito tempo, mas não é condição obrigatória da felicidade amorosa. Porque tem muita gente boa no mundo. Tem muita gente interessante. Tem muita gente inteligente, brilhante, atraente por muitos motivos. Tem muita gente que nos desperta tesão. Tem muita gente que nos desperta admiração. Pode ser que encontremos, vida afora, alguém com quem nos sentimos tão bem que esse comércio de contatos e sondagens acaba inibido por uma satisfação mais ou menos constante. Mas essa não é a regra. Simplesmente porque essas coisas do coração não têm regra. Então, é possível ser feliz encontrando uma alma gêmea, assim como também é possível ser feliz vivendo diferentes relacionamentos em diferentes períodos da vida, com diferentes graus de satisfação.
Passei a entender, também, que a única coisa que realmente importa nos relacionamentos é o perdão. Se a gente levar a ferro e fogo tudo o que o outro faz, não tem relacionamento. Tem contrato, compromisso, mas ninguém vive contratualmente, as pessoas precisam de liberdade para deixar seus sentimentos fluírem. Então (pense o que quiser, querido leitor, neste ponto, mas é o que sinto, e o que verdadeiramente decidi assumir para mim), não creio mais que faça sentido ter grandes demonstrações de raiva ou frustração ou desespero quando percebo que minha companheira teve alguma atitude menos louvável na sua conduta. As pessoas guardam sentimentos contraditórios que as levam a fazer coisas que não esperávamos. Temos de perdoar isso, se quisermos ter contato com a integridade delas, se é isso que nos apaixona. Temos de perdoar pequenas mentiras. Temos de perdoar certos desequilíbrios emocionais. Temos de tolerar a possibilidade de não sermos únicos no coração de quem amamos. Temos de passar por cima de certas mancadas. Não podemos nos desesperar com as fases em que não estamos sendo atraentes para a pessoa que nos atrai. Tudo isso é parte do jogo da vida, é parte dos relacionamentos. Evidentemente, não dá para viver uma vida baseada na agressão, na mentira e no desrespeito, mas também não podemos achar que não haverá nenhum momento em que isso não venha a acontecer, em alguma medida, no nosso namoro ou no nosso casamento. E, quando isso acontece, temos de ter o preparo e a decência de não julgar o todo pela parte, de não resumir a grandeza que todo ser humano tem a sua condição de falibilidade. Se colocássemos uma lupa no coração de cada um dos mortais, qual deles restaria sem nódoa, sem maldade, sem nenhum resquício de despudor ou oportunismo? Amamos seres humanos, ou idealizações que fazemos deles? É isso: ou se aprende a perdoar, ou o amor e o relacionamento estarão fadados ao descompasso.
É até contraditório falar em perdoar quem não tem, na verdade, culpa, mas fica entendido que se trata de desenvolver uma capacidade de relevar situações, das mais contornáveis às mais delicadas.
Isso tudo implica no seguinte: respeitar as decisões do outro, e respeitar o outro independentemente das decisões. Entender que as obrigações éticas são umas, que as obrigações contratuais são outras, e que as obrigações amorosas não existem, senão não haveria amor. Entender que a única razão legítima para uma pessoa ficar com você é que ela tenha vontade, em seu íntimo, de ficar com você. Entender que ninguém é de ninguém, ainda que tenhamos a vaidade e a presunção de julgar que controlamos os sentimentos alheios. Entender que o casamento é uma escolha, o namoro é uma opção, e o amor não costuma perguntar-nos sobre nossas escolhas e opções: ele invade e fim, como diz Djavan. E que é justamente por causa dessa não-obrigatoriedade, dessa imprevisibilidade do amor, que devemos nos sentir bem com os momentos em que ele está presente, sejam eles poucos ou muitos, permanentes ou impermanentes, longos ou curtos, dentro ou fora dos casamentos e namoros.
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