O lixo aparece. Feio, sem graça, sem trazer nada de novo, sem acrescentar nada. Era simples: jogar na lata ou na trituradora.
Aí, o espertalhão vem com uma excelente ideia: por que não ganhar dinheiro com esse lixo? Os não-espertalhões argumentam: ora, porque isso é lixo; é feio, não tem graça, não traz nada de novo e não acrescenta nada. O espertalhão preferiria não responder, mas responde: "e daí? O importante é que eu vou ganhar dinheiro!".
E então o lixo, em vez de ir para a lata ou a trituradora, vai para o computador. O computador se esforça: melhora infinitamente a imagem, melhora o som, melhora a narrativa. O lixo fica parecendo produto. Continua feio, sem graça, sem trazer nada de novo e sem acrescentar nada. Mas vira um lixo apresentável.
O problema é que geralmente o lixo tem um dono. E não dá para reciclar o lixo sem reciclar o dono. O computador sabe que, para achar mais lixo, as pessoas procurarão o dono. As pessoas não sabem que, para achar mais lixo, podem procurar milhares de outros donos de lixo, tão competentes em fazer coisas feias, sem graça, sem trazer nada de novo e sem acrescentar nada quanto quaisquer outras.
Mas o computador tem até fórmulas para o dono do lixo: assessoria de imprensa, aulas de etiqueta e um monte de coisas, respostas padrão para jornalistas não encomendados. O computador manda colocar uma roupinha da moda, se é dono, e uns silicones, se é dona. Pronto, o dono já é tão apresentável quanto seu lixo.
Agora é hora de replicar o lixo. Não, não é reciclar: é replicar. É mostrar o lixo na mão de gente sorrindo. É jogar o lixo na mídia. É fazer gente conhecida dizer que o lixo é bom. É associar o lixo a "estar na onda" ou "estar por dentro". É tornar impossível a quem não liga para o lixo de ficar indiferente a ele. Aos que tentarem resistir, replicar, mais e mais. Naturalizar o lixo. Fazer com que o lixo seja um padrão, algo a ser copiado. Parabenizar publicamente o dono do lixo. Pagar puxa-sacos e liberar otários para pedirem mais lixo ao dono do lixo. Convocar intelectuais para afirmarem o direito ao lixo e condenarem como antidemocráticos e atrasados os que chamam o lixo de lixo. Criar uma polêmica sobre a qualidade do lixo, e obrigar os que não gostam do lixo a consumir o lixo para terem autoridade ao criticá-lo. Escrever sobre o lixo, justificando-o, reconhecendo que ele tem aspectos sadios para a cultura, apesar de ser feio, sem graça, sem novidade e sem nada a acrescentar.
E se o dono do lixo concordar em continuar revirando seus estrumes e porcarias para oferecer lixo dentro desse esquema, ele pode se tornar um verdadeiro lixo humano. Uma celebridade, idolatrada, querida. Feia, sem graça, sem trazer nada de novo e sem acrescentar nada a ninguém, mas querida.
Mas pode ser que o dono do lixo julgue ter direitos. Ou o direito de criar mais lixo sem recurso ao computador, ou o direito de não fazer mais lixo. Então, está na hora de procurar outro lixo para reciclar. De pegar o dono do lixo e jogar na lata ou na trituradora. De jogá-lo fora e ainda continuar lucrando com o lixo dele. Porque o espertalhão não curte lixo. Ele vende lixo para poder comprar o que não é lixo. Ele pode se desfazer do dono do lixo, porque o espertalhão é dono de algo maior: da estrutura toda da reciclagem. Então, não é preciso nem muito esforço. Basta ele parar o processo, e dono do lixo não é mais apresentável. As pessoas não procurarão mais o dono do lixo, porque os jornalistas não farão mais perguntas, os puxa-sacos não aparecerão mais, não haverá mais orientação para nada. Mas o lixo continuará apresentável e apresentado, gerando dinheiro. Feio, sem graça, sem trazer nada de novo e sem acrescentar nada, mas gerando dinheiro.
E quando o lixo gastar (porque a embalagem feita pelo computador é rapidamente degradável), não tem problema. O espertalhão sabe que lixo é fácil de achar, daqui a pouco aparece mais.
E aparece o lixo. E começa tudo de novo. Por isso é que se chama reciclagem.
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