sábado, 9 de abril de 2016

Coração profético


Na iminência de algo acontecer, percebe-se que sempre algo pode acontecer. A sensação de perigo é apenas a consciência das possibilidades que ora estão mais evidentes, ora mais latentes. Viver é muito perigoso, como diz Guimarães Rosa, porque viver é estar na iminência de algo que, por mais que queiramos profetizar, sempre aparece sob um véu. Não escondido, não de surpresa: apenas obnubilado.
Mas meu coração é profético, no sentido bíblico. Seus batimentos formam uma sinfonia em Braille, que às vezes nem eu mesmo consigo decifrar. E ele sente coisas que existem, ainda que eu não possa precisá-las.
Nesses dias, sinto necessidade de dizer que a maior vitória que podemos imprimir a nossos adversários no campo das ideias é a alegria de viver. Mostrar que podemos viver alegres, contentes (não digo felizes, mas iluminados pelo bom humor) e produtivos, com valores diferentes daqueles que nos querem fazer assimilar, é o ato mais revolucionário de um ser humano. E é também a forma mais sóbria de lidar com as iminências da vida. Mostrar e experimentar um caminho é também ousar e empunhar um caminho quando as mentalidades são fechadas e excludentes.
Nesses dias atuais, sinto necessidade de dizer que acredito na arte como modo de vida, e na alegria como antídoto contra a loucura. As canções, as encenações, as filmagens, os poemas, as prosas, as instalações, as intervenções, as melodias, as composições plásticas, tudo isso tem servido muito mais para abrir meus olhos que para enfeitar um mundo paralelo de alienação e fuga. Quando as pessoas entram em contato, elas sabem ser pessoas no mundo do espetáculo óbvio; quando os artistas profundos entram em contato com o público, tanto eles quanto o público desaprendem seus papéis e reescrevem suas narrativas. 
Tenho vontade de dizer que ouço vozes e vejo olhares que expõem sentimentos fortes e valorosos. E que existem, sim, boa vontade, generosidade, gratidão, desprendimento e altruísmo. Que tudo isso está difuso e perdido entre outros estímulos e projeções, mas que a determinação pode garimpar essas belezas nas margens do rio de vaidades e excessos que nos arrasta. 
Tenho confiança de que a educação e a arte podem interferir no sistema. Posturas mais críticas, mais autocríticas, mais questionadoras, mais observadoras, podem desativar o preconceito, o machismo, o hedonismo, a egolatria, a discriminação, o racismo. Sensibilizar corações não é para vender produtos nas livrarias: é para salvar vidas, salvar identidades e alteridades, congregar mais corpos na festa do presente. Sobretudo, a alegria, enquanto afirmação de outros valores, agregadores, igualitários, isentos das marcas de fabricação da sociedade ao mesmo tempo líquida e psicótica, enfim, a alegria compartilhada e compartilhável é a maior arma que temos contra o medo, o ódio e a exclusão. O fascismo bebe deles; a alegria transborda e os recobre. Precisamos ser mais altos que fascismo.
Tenho necessidade de dizer que, como os antigos, acredito ver além. Não a verdade do que está além dos olhos, mas a luz no fim do túnel que a escuridão engoliu, mas que podemos reativar antes mesmo de alcançá-la. As profecias não são do futuro. Porque o futuro não está em nenhum outro lugar que não seja matéria do presente. Nesse sentido, vale o coração profético. A dor da lucidez precisa dele.
Venha o que vier, minhas armas estão prontas. Eu sei quem tenho em mim.


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