sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A confissão de Lúcio

Terminei há pouco a leitura dessa obra sensacional de Mário de Sá-Carneiro. Denso, profundo, mas ao mesmo tempo vibrante e vivaz, o livro me remeteu ao que mais gostava e gosto em todos os eventos do mundo gay aos quais já estive presente: a atmosfera de liberdade para os sentimentos e as possibilidades que eles trazem. A personagem principal tem uma percepção elevada, acurada e detalhista das pessoas que a rodeiam, o que deixa transparecer uma postura de admiração e atração pelas mesmas. Lúcio, em sua paixão pelos outros, não faz distinção de gênero. A paixão de Lúcio não é sempre, nem necessariamente, sexual, remetendo às diversas formas de amar que se transformam, por nossas convenções de sociabilidade, em amizades, casamentos, casos, quedas, simpatias, companheirismos, e outros nomes para situações que não estão tão rigidamente empacotadas em nossos corações. Isso torna Lúcio belo: a sensibilidade à beleza alheia, a capacidade de identificar o ponto exato em que as pessoas o tocam.
Pensei muitas coisas da minha vida enquanto lia o livro de Sá-Carneiro. Sou um cidadão relativamente enquadrado no que a sociedade entende como sadio: heterossexual, com um relacionamento estável, nunca cometi crime por amor nem cultivei fantasias que prejudicassem outras pessoas. Mas o custo dessa normalidade envolveu, desde sempre, um certo receio de expor sentimentos e pensamentos que pudessem soar polêmicos em relação aos parâmetros de moralidade e imoralidade que me foram ensinados. A figura fictícia de Lúcio revolve a verdade desses sentimentos incovenientes com doçura e filosofia, o que lhe dá grandeza e força interior. Nesse sentido, a personagem afigura-se como mais real, verdadeira e verossímil,no que se refere à vida psicológica, que a maioria das personagens não-fictícias que encontro no meu dia-a-dia.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Noite chuvosa de domingo

É curiosa a fascinação que tenho pela chuva. Gosto do barulho que ela faz quando cai sobre os telhados e escorre pelas telhas e pelas canaletas, gosto de observar as formas que são constituídas nos pequenos riozinhos das sarjetas, gosto até de sentir a força dos pingos contra meu corpo, quando estou perto de casa e posso correr a qualquer momento para um chuveiro quente. Para mim, a chuva é ainda mais bonita quando há árvores e animais na paisagem, porque eles têm um jeito especial de recebê-la e absorvê-la.
Ao mesmo tempo, tenho medo da chuva. O som dos trovões me arrepia. Não sou muito amigo de relâmpagos. Sempre passam na minha cabeça as raras, mas marcantes, histórias de pessoas atingidas por raios. E as tempestades escurecem o céu, deixando o dia com aspecto sombrio, carregado, tenso.
Mas se fosse só fascinação e medo da natureza, estaria tudo bem. Ainda tem o problema de que chuvas prolongadas são sempre motivo de preocupação em São Paulo. As pessoas que moram em barracos nas favelas sofrem bastante. Várias regiões inundam, e famílias perdem seus bens, às vezes suas habitações. Muitas vias ficam intransitáveis, o trânsito piora muito, o metrô anda mais devagar. Eu mesmo me preocupo com minha residência, pois convivo com uma goteira bem no meio da minha cama, obrigando-me a colocar panelas e outros recipientes para evitar a destruição do colchão e do estrado.
Não sei somar e subtrair os prós e os contras, os medos e os deslumbramentos, o conveniente e o inconveniente da chuva. Como todo fenônemo da natureza que se preze, ela não pergunta pelos sentimentos humanos. Por isso, quando ela vem, preparo-me para uma ocasião de abrandamento, que consiste em ver o que ela quer, aceitá-la, absorvê-la, e refletir sobre minha precariedade diante das coisas, como sói aos que se querem razoáveis e sensatos.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Expectativa

Quando eu soube que o Radiohead viria ao Brasil, não pensei em absolutamente nada: fui ao site e comprei o ingresso. Para mim, seria oportunidade única de prestigiar a maior banda de rock das décadas de 1990 e 2000. Enquanto efetuava a compra e lia nas comunidades informações a respeito do evento, descobri que, na verdade, o grupo viria para um minifestival, do qual participariam mais três atrações, uma internacional e duas nacionais.
Para mim, pouco importavam essas atrações, que serviriam apenas de entrada para o prato principal. Entretanto, mudei completamente o pensamento quando foi anunciado Kraftwerk como show de abertura do Radiohead. Eu pagaria para ver o Kraftwerk até mais do que para ver o Radiohead. Se considerarmos a importância para a história da música pop, o correto seria o Radiohead abrir para o Kraftwerk.
Com duas atrações assim, comecei a achar o show barato para o que paguei. E agora nem me importavam as duas atrações nacionais que viriam, pois, além do Radiohead, eu poderia curtir a maior banda de música eletrônica de todos os tempos, e isso me bastava.
Pois não é que mudei o pensamento de novo? Li uma notícia que é a cereja do bolo: uma das atrações brasileiras será a banda Los Hermanos, para mim a maior do rock nacional desde a Legião Urbana. Eles andaram separados, gravando trabalhos solo, e o retorno estaria marcado justamente para esse festival.
Com mais essa novidade, considero meu ingresso quase gratuito. São três bandas que eu sempre quis ver, e que poderei curtir no mesmo dia. Minha expectativa é muito grande. Tenho impressão de que verei o melhor show da minha vida. A quarta banda chama-se Vanguart, e eu a desconheço completamente. Mas vou procurar algumas músicas na rede. Depois de tantas boas surpresas, não duvido nada que eles sejam tão interessantes quanto os outros.
Shows no Brasil são caros e muitas vezes desorganizados. Torço para que nesse dia tudo dê certo, porque faço questão de fazer valer cada centavo investido nesse evento e de viajar na excelente música desses artistas sem maiores preocupações. Estou contando os dias.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Polaridades

Meu sogro sempre tentou me explicar como funcionava o positivo e o negativo na macrobiótica, mas é difícil de entender. Para mim, o arroz teria de ser ou positivo ou negativo, tal como a cenoura, a batata, o alface, etc. Para equilibrar a alimentação, minha única tarefa seria juntar positivos e negativos no prato.
Pela explicação dele, o equilíbrio não funciona dessa forma, porque os alimentos são positivos e negativos uns em relação aos outros. Ou seja, em um determinado prato, o arroz pode funcionar como positivo ou negativo, dependendo dos outros alimentos que o acompanham. Por esse raciocínio, a polaridade (digamos assim, só pra entender) não está no alimento, mas na posição que ele ocupa na composição da refeição.

Esta peculiaridade da macrobiótica, que não entendo bem, serve-me como analogia do quadro político brasileiro, que igualmente não posso entender. Tudo depende do lado, da composição de forças, do "diga-me com quem andas". É lamentável e impressionante a total ausência de agendas políticas, tanto dos partidos quanto das organizações e movimentos. Ninguém sabe muito bem o que quer e onde quer chegar, mas todo mundo é craque em identificar o adversário e tentar destruí-lo.
Há várias demonstrações disso na rede, e, só para ficar nas mais evidentes, abra-se a página de fórum da comunidade Brasil, do orkut. A quantidade de tópicos criados sobre candidaturas a presidência, governo, prefeitura, ou outros cargos é simplesmente enorme. Isso poderia ser um bom sinal, de maturidade política, de vontade de discutir propostas. No entanto, quando empreendemos nosso tempo na leitura de cada um desses tópicos, o que vemos é um desfile perfis falsos repetindo palavras de ordem e despejando elogios ou vitupérios em relação a determinada personalidade política.
No meio desse tiroteio verbal, perdemos completamente a noção do que se está discutindo, e os que discutem perdem a referência política básica, que é o interesse público. Assim, uma mesma figura fictícia dirá que a resistência contra a ditadura militar pela esquerda organizada era terrorismo, atacando Dilma por ser governista, e elogiará, por exemplo, Gabeira, por ser oposição. Uma outra figura elogiará a política econômica de FHC falando mal da de Lula, mesmo que o assunto seja, por exemplo, uma orientação conservadora, comum a ambas as gestões. Ficamos sempre na dúvida sobre a posição da figura: uma política econômica conservadora é boa para o país ou não? Os ex-combatentes da ditadura são terroristas ou não?
Como resultado, não sabemos com quem estamos falando, e acabamos falando com ninguém, pois não podemos identificar o interlocutor por suas posições. Em outras palavras: não sabemos onde as pessoas querem chegar.
O que acontece na comunidade do orkut apenas reflete o que vemos diariamente na imprensa, nas discussões de populares, nos órgãos dos três poderes, em todos os lugares: uma sanha de atacar e defender tão grande que gera o esquecimento (ou mascaramento, quando conveniente) da essência do que é atacado ou defendido.
O quadro político brasileiro, cindido entre PT e PSDB, apresenta essa características complexas de polarização. CEUs são bons se feitos por X. Se feitos por Y, são caros e eleitoreiros. Privatizar é uma coisa legal, se Fulano está no governo. Se Sicrano está, privatizar não presta.
Falta agenda, falta clareza do que é necessário, falta interesse público, que é suprapratidário por natureza. Deixamos de discutir questões prementes, como o desmatamento da Amazônia, a reforma política do Legislativo ou o combate ao tráfico, simplesmente porque as plataformas dos partidos não se preocupam com o estabelecimento de agendas básicas para resolução desses problemas, a não ser em época de eleição, quando os discursos tornam-se evasivos e demagógicos, incapazes de posicionamentos eficazes e propostas ousadas. No fim, fica tudo como o arroz da macrobiótica: depende do que acompanha, pode ser positivo ou negativo. Se Gabeira está na oposição, é considerado um gênio. Se está com o governo, pode dizer exatamente as mesmas coisas e ser considerado um imbecil.
Enfim, talvez a política seja isso mesmo, mais um jogo de forças que uma luta por ideais ou princípios. Se for assim, serei sempre um inconformado. Mas acho que não. Ainda verei um país em que política seja discutida por verdadeiros apaixonados, e não por torcedores uniformizados.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Tenho uma concepção de fé que independe de religiões ou cultos. Para mim, ter fé é acreditar em algo que tem remotas probabilidades de acontecer ou de existir. De acordo com essa concepção, a fé seria algo que contraria a razão e o senso comum, e não algo que os complementa. Ter fé, nesse sentido, é sempre, de alguma forma, ter coragem, e levar adiante o que parece insensatez ou desatino.
Quando eu fazia terapia (fiz com orgulho e acho que todo mundo deveria experimentar, pelo menos) fui avisado de que precisava dar mais atenção à minha intuição, e confiar mais em Deus. De fato, não sou nada resolvido em relação a minha espiritualidade. Graças à formação cética, tento encontrar explicações, comprovações e, na falta de ambas, pelo menos evidências das coisas que tenho como certas.
Acontece que, na minha trajetória, vivi experiências incompreensíveis para esses padrões de pensamento, o que me fez uma pessoa indecisa em relação às minhas crenças mais profundas. Devo admitir que em 90% das situações que me vêm à mente hoje não estive em condições de dizer com segurança qual era o caminho mais provável segundo as regras da razão, e me arrependo de não ter dado ouvidos àquela voz fraca, profunda e certeira que se confundia com meu silêncio.
Não importa se provavelmente Deus não existe. Não importa se o que considero como princípio limita o que os outros consideram como sucesso. Não importa quanto tempo levo para aprender as coisas que pessoas iluminadas parecem saber desde que nasceram. Eu acredito em Deus, em mim, na vida. E eu sou daquelas pessoas que precisam de um "algo mais" para se levantarem da cama todo dia e se disponibilizarem para este mundo tão sem sentido. Todos os momentos da minha existência que considero grandiosos e felizes estavam impregnados do perfume desse "algo mais". E eu preferiria passar o resto de meus dias embebido dessa essência misteriosa a ser capaz de decifrá-la com o distanciamento próprio da racionalidade.

Escrevo essas coisas meio etéreas inspirado pelo filme "Carruagens de fogo", que acabei de assistir, e do qual extraí como mensagem-síntese: "aquele que Me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante do Pai".
Ainda vou pensar muito no sentido dessa frase.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Presente

Sabe aquela coleção da Folha de Bossa Nova que saiu ano passado? Pois é. Minha mãe pacientemente foi comprando todos os números, sem perder nenhum. Eu via a caixinha de sapatos improvisada cada vez mais cheia daqueles livrinhos com CD. No dia do Ano Novo eu disse que era uma coleção legal, e que precisaria de um dia para gravar tudo. Quatro dias depois, no meu aniversário, ela me deu a coleção inteira de presente. Disse o quanto aqueles discos marcaram a adolescência dela, e que queria que eu ouvisse aquelas canções com muito carinho.
Já ouvi dois: Wilson Simonal e Maysa. Uma delícia de música. E que cantores sensacionais!
Muitos dos meus colegas de escola até hoje desprezam a Bossa Nova. Suspeito que eles não gostam muito do estilo João Gilberto, violão e voz baixinha, e desconhecem outros intérpretes do movimento. Aposto que se perdessem alguns dias retomando essa parte mais orquestrada, mais cantada, mais swingada, mudariam de opinião. Tenho percebido, nas audições, que, dentro do que se convencionou chamar de Bossa Nova, há um leque extenso de alternativas de gosto e estilo, de forma que sempre é possível descobrir algo novo nos compositores, arranjadores, instrumentistas e intérpretes.
Agradeço à mamãe pelo presente de bom gosto, e ao bom Deus por me dotar de sensibilidade para usufruí-lo.