Mas uma frase do Paulo nas entrevistas gravadas para o filme foi o que mais me chamou atenção. Ele diz, logo no começo, alguma coisa como: "O povo todo mundo, desse eu gosto bastante. Eu não gosto do povo cada um".
Essa sacada eu achei genial, não só pelas expressões "povo todo mundo" e "povo cada um", que sintetizam com poesia os aspectos de todo e parte do conjunto dos cidadãos. O que me pegou foi a percepção de uma questão de fundo filosófico muito presente na obra de um compositor tão ligado à sua cidade. A questão é: é possível gostar do povo sem entender o que é o povo? Quando julgamos captar a "essência" disso que é o povo, não acabamos perdendo os aspectos da diversidade, da individualidade, da exceção?
Quero tentar fazer aqui, a partir desse viés de interpretação, um exercício de reflexão bem particular . Sinto que, para mim, a frase de Vanzolini poderia se inverter. Tenho dificuldade de gostar do "povo todo mundo", e facilidade em gostar do "povo cada um". Sempre fiquei ponderando, mesmo antes de estudar Filosofia, que amar a humanidade, o povo, a nação, é muito difícil, a não ser que eu amasse apenas aquilo que os simboliza. É possível, por exemplo, uma mesma pessoa chorar ao ouvir o Hino Nacional e afirmar que "lugar de nortista é fora de São Paulo". Conheci muitas pessoas assim, e tenho dúvidas se elas realmente amam a nação. O que é nação para elas? A seleção brasileira jogando, a bandeira hasteada, a palavra "Brasil"? Não deveria ser a compreensão da necessária integração cultural entre as pessoas de diferentes partes do país?
Por outro lado - e repito, isso é uma visão muito particular - acho que o preconceito, o medo, a intolerância diminuem muito, mas muito mesmo, com a convivência e a troca. Viajei ao Rio de Janeiro há dois anos, e fiquei na casa de amigos de minha família. A companhia dessas pessoas, o carinho com que me trataram, a disposição de me levarem para conhecer lugares foram coisas que fizeram com que minha impressão sobre o Rio fosse absolutamente positiva. Mas ainda assim não sei se posso dizer que "amo o Rio". Porque o Rio é imenso, tem muita gente, muitos lugares que não são tão turísticos, muitos problemas, e não sei se tudo isso está fora ou dentro de minha forma de sentir essa cidade tão complexa. O que posso afirmar com convicção é que fiz muitos amigos no Rio, e deles gosto sem reservas. Foi assim em Vitória da Conquista. Foi assim em Gramado. E isso me faz crer que tenho muito mais facilidade de gostar das pessoas quando as conheço mais intimamente do que quando nada sei sobre elas. Então, considero mais difícil para mim dizer que gosto do "povo todo mundo".
Admito ter um pé atrás em relação às generalizações. Algumas parecem-me demasiado gratuitas. Como professor, não gosto muito de falas do tipo "o aluno de hoje é assim", "o professor de hoje tem de ser assado", "a criança se comporta de forma X". Uma das coisas que aprendi em sala de aula é que, se você não quer excluir, deve tentar ver as pessoas como são, e não como deveriam ou parecem ser. Alunos são diferentes, classes também, escolas idem. Fora do âmbito profissional, também não gosto de coisas como "quem faz isso é porque é aquilo", ou "isso é coisa de x, y ou z". Toda pessoa comporta um universo de coisas interessantes (quem disse isso foi a Beatriz Bracher, numa gravação do programa Letra Livre da TV Cultura à qual tive a felicidade de assistir), e isso é o que mais me estimula a viver cercado de gente de todo a sorte.
Há uma citação do genial Mikhail Gorbachev no livro de História com o qual trabalho nas 8ªs. séries (História, Sociedade e Cidadania, de Alfredo Boulos) que gostaria de trazer como contribuição. Consta que ela tenha sido extraída do livro Perestroika: novas ideias para o meu país e o mundo:
Penso que aqui seja adequado destacar uma característica especial do
socialismo: o alto grau de proteção social. (...) Mas constatamos também que
pessoas desonestas tentam explorar essas vantagens do socialismo. Conhecem
apenas seus direitos, mas não querem saber de seus deveres. Trabalham mal,
esquivam-se do trabalho e bebem demais. Há um grande número de indivíduos que adaptou as leis e costumes vigentes para servir seus próprios interesses
egoístas. Dão pouco à sociedade mas conseguem, apesar disso, obter tudo o que é
possível dela, e até mesmo o que parece ser impossível: vivem de rendas
imerecidas.
Essa parece-me ser uma outra forma de pensar a dicotomia entre "povo todo mundo" e "povo cada um". E vê-se aqui que essa não é uma questão qualquer: determinou o fim de uma era na história de nosso tempo. O grande estadista russo percebe, com clareza, que não há um "povo geral" para ser governado, e que aquilo que foi feito pensando no benefício de todos não é, necessariamente, valorizado por cada um. Percebe, ainda, que há diferenças individuais, notadamente as de mérito e de caráter, e que é preciso governar considerando essas diferenças. Percebe, enfim, que uma das grandes falhas do socialismo foi desconsiderar os indivíduos em função do conjunto que constituem, como se esse conjunto fosse homogêneo e unitário.
Poetas são poetas porque percebem primeiro. Vanzolini canta aquilo que é comum a muitos paulistanos, e consegue descobrir expressões simbólicas eficientes para dramas cotidianos de milhões de pessoas. Suas personagens são todo mundo, mas ele sabe que não são, ao fim, ninguém em particular. Gorbachev, por sua vez, homem público, não lida com personagens de canções. Lida com criaturas concretas de carne, osso e espírito, às vezes de porco. Em sua experiência, o povo "poético" dá lugar ao povo "político", um conjunto de forças que se unem e digladiam conforme a conveniência. Eu não tenho como olhar tão de cima, como eles. Mas em minha convivência com exemplares avulsos dessa coisa chamada "povo", posso entender um pouco do sentimento que quiseram passar.
Um comentário:
Nossa, sinceramente, foi o texto mais lindo que li no seu blog. Me fez refletir sobre a questão de preconceitos e a "racionalização dos sentimentos". É um assunto muito complexo, paradoxal e eu sei que tenho muito que evoluir ainda.
Lindo! Parabéns!
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