segunda-feira, 20 de julho de 2009

Três reflexões a partir de Barry Lyndon

Barry Lyndon é um belíssimo filme do diretor Stanley Kubrick, menos celebrado que O iluminado, 2001, e outras obras-primas, mas igualmente brilhante. Redmond Barry é o protagonista da história, que se passa na Europa do Antigo Regime, e mostra o percurso de um homem em sua tentativa de estabelecer-se social e financeiramente.
Com música e cenários primorosos, narra-se a pequena odisseia desse homem comum, suas aventuras, seus amores, seus desafetos, sua busca incessante de colocação. Não vou contar nada do enredo, isso é feio de fazer. Mas proponho três questões para discutir a atualidade da obra.
1) Kubrick trabalha o tempo todo com a ideia de que, para Barry, a inserção no mundo da elite europeia, ao qual aspira, depende de um esforço descomunal e de uma esperteza atenta aos vícios e concupiscências dos seus membros. Barry alcança estabilidade financeira porque se especializa no jogo de cartas e em seus truques, aproveitando-se do vício irrefreável de apostas comum a tantos nobres daquele tempo. Penso se não podemos traçar um paralelo entre esse comportamento e aquilo que vemos, por exemplo, em relação aos poderes paralelos da sociedade atual. Por exemplo, quando vemos traficantes e chefes de facções manipularem uma rede de influências que abarca advogados, juízes, policiais, deputados, empresários. Quando vemos, por exemplo, espertalhões que enriquecem com contrabando sendo chancelados, defendidos e até admirados pela alta sociedade, como no caso da Daslu. Pergunto-me se essa figura meio gatuna, meio bajuladora, meio bandida, uma espécie de penetra intocável, seria a resposta velhaca dos excluídos à hipocrisia vaidosa das elites, patente no descompasso entre o discurso de validação do poder e o violento processo histórico de consolidação dessa condição.
2) Kubrick, no finzinho do filme (isso posso contar porque não tem influência na história) coloca uma frase bonita, mais ou menos assim: "Bonitos ou feios, ricos ou pobres, bons ou maus, estes homens e mulheres aqui retratados são, hoje, todos iguais". Não sei se posso dizer que se trata da questão da morte como fator de nivelamento último dos homens. Acho que é mais que a morte: é a finitude da vida. Seja quem for, seja qual for a época em que viveu, cada ser humano é limitado por um tempo de estar no mundo, e um de seus maiores desafios é dar um sentido a essa limitação. A busca por esse sentido, que é diferente para cada indivíduo, é o que de certa forma o singulariza perante os outros. Mas, por outro lado, é também aquilo que ele tem mais evidentemente em comum com outros indivíduos, de outras épocas e lugares. Creio que, no fundo, quando nossas vidas forem olhadas da distância de séculos, pareceremos, em todas as nossas peculiaridades e escolhas, homens procurando algo, homens aprendendo a viver, homens descobrindo a si próprios. Será que essa é uma noção que não temos porque não olhamos nossas vidas de fora, nem de um tempo posterior, no qual já não estaríamos preocupados com o sentido imediato das coisas, e sim com o sentido que elas têm para o conjunto de nossa obra?
3) Barry, no filme, chega a cidades esvaziadas, onde encontra mulheres cujos maridos foram à guerra para retorno incerto. Com elas, tem relações passageiras, fugazes, desenganadas. O narrador diz que, para essas mulheres, foi necessário aprender a amar com certo despreendimento, para que pudessem tocar a vida sem a mágoa da perda (isto é uma paráfrase, mas o sentido é mais ou menos esse). Fiquei pensando se essa não seria uma reflexão sobre relacionamentos amorosos: se as formas de amar, ou aquilo que nós identificamos como amor, não dependem também, em grande medida, de nossas experiências históricas, de nossa cultura, das particularidades do tempo em que vivemos. Será que verdadeiramente compreendemos o modo de amar dos gregos, dos povos pré-colombianos, dos celtas? Se pensarmos que cada indivíduo tem uma história de vida a considerar: será que entendemos o que é o amor para outras pessoas? Se pensarmos que mesmo os conceitos têm uma história a considerar: será que isso que chamamos de amor é uma boa generalização para tantas formas diferentes de lidar com as paixões pelos outros?
Não cobro de Kubrick que essas questões sejam respondidas satisfatoriamente. Ele não precisa nem me dar pistas. Barry Lyndon tem tudo o que espero de um grande filme: ele me pede que eu reconsidere o que sou. Ele conversa com minhas inquietações.
Se você não viu, vale a pena.

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