Talvez seja inútil reproduzir neste espaço o que já foi escrito sobre o baixo nível geral desta campanha presidencial e a transformação dos candidatos em entidades ameaçadoras e potencialmente monstruosas. As análises dos diversos cientistas políticos podem dar conta dessa lástima com muito mais recursos de argumentação. Apenas ilustrarei essa constatação deplorável com relatos de experiências pessoais relacionadas ao pré-eleição.
Quando apareceram os primeiros escândalos midiáticos, relacionados a quebras de sigilo e coisas afins, percebi que o debate político, que até então vinha pontuando as discussões dos candidatos, estaria em breve abandonado. Percebi isso não em função dos escândalos em si, mas da forma como foram veiculados, como se fossem os pontos cruciais para a decisão definitiva do eleitor. Resolvi abster-me desse debate, porque não levaria a nada. Eu estava, então, com receio de que essas picuinhas administrativas tomassem o lugar das necessárias exposições de propostas sobre educação, habitação, saúde, transporte, recursos energéticos, agricultura.
Foi uma intuição, mas que me deu apenas o aviso de "caia fora". O que vinha depois disso era muito, muito, muito mais tenso, grave e absurdo do que eu pudera captar. O que vinha não era simplesmente a colocação das pautas em segundo plano, mas a destruição absoluta de tudo o que pudesse ser programático na campanha. Uma catástrofe do ponto de vista das ideias. Uma vergonha.
A cada dia, eu, que já sabia em quem ia votar desde julho, sentia-me mais intensamente derrotado, achacado, agredido. Não foi só não ter escrito no blogue durante esse período: eu deixei de falar com as pessoas, eu deixei de discutir política, eu deixei de acompanhar os programas eleitorais e a internete. Eu não conseguia ler absolutamente nada. Cada vez que lia alguma matéria, ficava arrepiado, depois tenso, depois desesperado. Os fantasmas do machismo, do fascismo, da calúnia, da antipropaganda dominavam meus sentidos e meu coração. A campanha me fazia mal, posso afirmar com segurança. Conhecendo meus limites, me afastei tanto quanto pude.
Foi um enorme sofrimento. Eu queria discutir questões relevantes, eu queria conversar a respeito dos programas, eu queria participar do processo com alguma contribuição conscientizadora. Simplesmente não consegui. Sentia-me impotente, sem forças, sem ânimo. Cada sentença ameaçadora ou irracional proferida por alguém me colocava em estado de alerta, me corroía interiormente. Lamento muito constatar, mas passei o fim da campanha em absoluto silêncio, e sei que isso não é meu normal. Eu estava com medo, muito medo. Ao meu redor, uma verdadeira guerra, e eu incapaz de levantar as mãos para pedir que o tiroteio cessasse.
Há pessoas que, em situações semelhantes, dão o melhor de si, porque são justamente guerreiras, aguerridas, beligerantes. Elas dão a cara para bater porque conseguem devolver e restabelecer o equilíbrio de forças. Não é o meu caso. Eu apanho e sofro, tenho dificuldade em agredir.
Meu caminho foi esconder-me e bolar um mantra mental, aquecido por uma voz interior: está tudo bem. Se meu candidato ganhar, não acontecerá nada do que está sendo previsto. Se o outro candidato ganhar, não haverá alterações tão drásticas. Está tudo bem, eu me dizia. Nenhuma catástrofe à vista. Nenhum monstro. Nenhum demônio. Nenhuma desgraça. Apenas seres humanos, com seus erros e acertos, e suas crenças e descrenças, disputando a condução do meu país. Seres que, por mais que fizessem, não conseguiriam destruir aquilo que os últimos anos haviam trazido de bom. Está tudo bem, eu ouvia lá do fundo do coração.
Embalado por essa fé cega e irracionalista, atravessei todo o período de anticampanha evitando ao máximo contagiar-me pelo clima que me cercava. Não posso dizer que consegui, apenas que sobrevivi psicologicamente. Mas estou cheio de sequelas, como se tivesse saído de um massacre. Em 31 de outubro, saí menor que quando entrei.
Mas saí, enfim.
E pude, então, relembrar fatos que me indicavam o quanto esse clima estava realmente no ar, e as outras pessoas também o captaram.
Pude lembrar da imagem que eu tinha de Dilma Roussef, a da resposta brilhante à maliciosa intervenção de Agripino Maia, defendendo os que, como ela (e Serra também, que fique claro), lutaram pela democracia que justamente permitiu a eleição da qual participava. E o momento da campanha foi o de esconder essa Dilma, em função da pejorativa associação sustentada pela mídia entre esses combatentes da ditadura e tudo o que de mais nefasto se poderia afirmar deles. A Dilma de que eu lembrava ficou guardada no bolso ou no cofre da Dilma que eu via nos debates e na propaganda eleitoral. O medo de perder diminuiu Dilma.
Pude lembrar também do José Serra de anos atrás, homem duro, obstinado, teimoso, mas com o discurso calcado em valores democráticos e história política marcada pela competência de administrador, bem entendido, naquilo que se propunha a fazer. Um homem que eu não temia. Um homem que lamentei não ter disputado com Lula a eleição anterior, pois considerava mais apto à disputa que Alckmin. Um homem que, se me dissessem em 2002 que um dia chegaria à presidência, não me causaria estranheza nem repugnância. O momento da campanha foi o de esconder esse homem, e mostrar um Serra destemperado nas agressões, desastrado nas teatralizações, e associado ao que havia de pior no conservadorismo brasileiro, inclusive o fundamentalismo religioso e as estratégias mais rasteiras de subcampanha. Tenho certeza de que o Serra presidente não poderia ser assim, mas esse estava guardado no bolso ou no cofre do Serra orientado por marqueteiros e desorientado pelo comportamento obsessivo. O medo de perder diminuiu Serra também.
E então saquei que os que as pessoas discutiam nas ruas, nas casas, nos ambientes de trabalho, era irreal. As pessoas discutiam dois candidatos diminuídos, reduzidos a estereótipos e frases feitas, que não podiam encarnar, dessa forma, os valores que sempre defenderam em suas trajetórias políticas. Sem nada a perder, e portanto não diminuída pelo medo de perder, só Marina cresceu nesse mar de lama.
E percebi também que os diálogos refletiam esse desentendimento geral das pessoas. Quando conversavam os meus colegas professores, entre os intervalos de aulas, justificavam suas escolha sempre na base do medo. Quem ia votar em Dilma, era por medo do Serra. Quem ia votar em Serra, era por medo da Dilma. Eu mesmo estava percebendo que, se tivesse entrado nesse clima, teria definido meu voto pelo medo. Eu, que sempre fora tão racional nessas escolhas.
E esse desentendimento geral tomou formas várias. Não houve espaços de análise desapaixonada nem na internete (nos blogues que eu vinha lendo) nem na mídia tradicionalzona, nem em lugar nenhum. As mentiras, calúnias, estereótipos e fantasmas eram repetidos por quem já tinha decisão tomada, e eram quase só o que era oferecido aos indecisos, mais os confundindo.
E todo mundo bebeu desse medo de uma forma que quase esquecemos de que o desemprego diminuíra, o Brasil crescera, passáramos muito bem pela crise e as perspectivas eram e continuariam sendo as melhores.
E o saldo dessa cruel descampanha eu pude perceber, em forma de síntese, num diálogo coletivo que travei com meus alunos da faculdade, depois do segundo turno. Eles me perguntaram se eu estava feliz com o resultado da eleição. Eu disse que sim, mas que estaria bem se o resultado fosse outro também. E então eles ficaram, percebi, um pouco desnorteados na discussão, porque esperavam uma intervenção apaixonadamente positiva ou negativa, como as que eles estavam preparados para fazer. E efetivamente fizeram. Diziam que tudo iria para o buraco com Dilma, que o país estaria muito mal. E os que votaram em Dilma diziam que estava tudo ruim, mas ficaria muito pior com Serra. Percebi aquela sombra e fiz uma fala estranha, mas necessária. Eu disse que estava tudo bem. Que não havia catástrofes à vista. Nenhum demônio. Nenhuma desgraça. Nenhum monstro. Todos eles tinham morrido com a campanha. Restava-nos a civilidade e cidadania de respeitar a decisão de milhões de brasileiros e torcer para que as coisas dessem certo, no país, no Estado, na cidade, independente de nossas torcidas políticas. E que tudo indicava que isso iria acontecer.
Esse momento foi o da minha regeneração. Numa campanha em que a emoção esmagou a racionalidade, só mesmo a minha voz intuitiva interior para tentar redirecionar o pensamento político dos meus alunos para caminhos sadios. Veja só: talvez essa vivência do medo tenha servido para algum aprendizado útil a longo prazo. Pelo menos, passada a tempestade ideológica, tenho alguma reserva intelectual para cuidar dos feridos.
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