Já se passaram alguns dias do final do processo eleitoral brasileiro de 2010, e parece-me que muitas das ondas de excitação e inquietação já se abrandam. Entretanto, guardo como incômodo permanente e não sanado pelos resultados de outubro e novembro a percepção de que algo precisa mudar em relação à chamada grande imprensa.
Creio que esta talvez tenha sido a última eleição presidencial que ainda poderia ser decidida pelos grandes veículos (Globo, jornalões, Record, megaportais de internete). Em 2012, nas eleições municipais, o perfil já será outro. Em 2014, acredito que a internete já terá criado estruturas muito mais sólidas de manejo de informação, e que estará acessível a muitos mais brasileiros. Em 2010, entretanto, o quadro não era tão descentralizado. As conversas com as pessoas no trabalho, nos encontros e nas ruas evidenciavam que ainda são poucos os que leem os blogues de política, ou espaços alternativos de discussão de ideias, e que, quando leem, dificilmente trazem para o debate face a face as argumentações lidas, porque não reconhecem nessas fontes a mesma credibilidade de outros veículos mais tradicionais. Ou seja: é socialmente conveniente comentar numa roda algo que passou no Jornal Nacional ou no Globo Repórter, mas uma informação de um blogue terá menos impacto, porque a audiência na rede é mais dispersa.
Curiosamente, em setembro, eu participara de um fórum de debates de blogueiros e percebera otimismo a respeito das possibilidades para uma nova imprensa jornalística a partir das revoluções digitais da última década. Havia confiança geral de que a movimentação dos blogues na internete poderia fazer contrapeso às distorções propositadas e tendenciosas que a grande mídia veiculava, e de que isso já estaria acontecendo neste ano.
Creio que houve empolgação demais, e pouca cautela. Rodrigo Vianna, do blogue O escrevinhador, e Luiz Carlos Azenha, do blogue Vi o mundo, ambos ex-jornalistas da Globo, não estavam tão otimistas, e tinham toda a razão. O que se viu no segundo turno foi exatamente o contrário do que se dizia entre os blogueiros: as distorções, as calúnias e a falsa informação se disseminaram justamente pela rede, em apoio ao que repercutia a grande mídia, ou até mesmo sem lastro lógico com ela. A grande dose de contaminação negativa e de má fé da informação eleitoral foi ministrada por usuários das facilidades mais banais do mundo virtual, como listas de e-mails, multiplicadores de mensagens para redes sociais, blogues anônimos e afins. As campanhas mostraram-se despreparadas para lidar com esse material difamatório e, mesmo com todas as possibilidades de acesso à informação qualificada que se tem nos dias de hoje, muitas pessoas repercutiram esse lixo pseudojornalístico.
Mas talvez o grande fator complicador deste processo eleitoral tenha sido mesmo o comportamento francamente tendencioso de uma parcela considerável de nossa mídia. Não é segredo para ninguém que o Estadão declarou apoio a José Serra ainda antes do final do primeiro turno, numa atitude correta e esclarecedora. Esse foi um apoio explícito de um meio de comunicação. Houve também apoios não-explícitos, como os da Folha, da Veja, das Organizações Globo. Qualquer dos leitores ou espectadores desses veículos concordará com a constatação de que eles estiveram, embora não declaradamente, muito mais próximos da candidatura Serra que da candidatura Dilma. Não chego a ver grande problema nisso, embora considere que não declarar apoio quando se apoia tão evidentemente é uma cautela inútil. Para mim o problema consiste na distorção de fatos e no desequilíbrio das coberturas. Que um órgão de imprensa declare, ou deixe quase declarado, apoio a X ou Y, vá lá. Mas que deturpe fatos, crie montagens fictícias, apresente dados sem verificação, enfim, que DESINFORME o cliente em função da linha editorial, isso é inadmissível. E foi justamente isso o que mais aconteceu, chegando às raias da insanidade, como no caso que gerou o #Dilmafactsbyfolha do Twitter, ou a ficha falsa do DOPS, ou os sete minutos no Jornal Nacional para provar que um objeto maior que uma bolinha de papel havia sido atirado na cabeça do candidato Serra. Se, nas lidas da perscrutação jornalística, se encontrava um problema de extensão real e investigação indispensável, como o das quebras de sigilo, a atuação dos jornalistas limitava-se a estender a repercussão até o ponto em que se pudesse prejudicar a candidatura não preferida; depois, quando se percebia que a coisa poderia ficar feia para os dois lados, simplesmente não se investigava mais. Jornalistas podem e devem ter opinião, ter ideias, ter posicionamentos. Mas não podem fazer campanha dentro do espaço jornalístico, sob pena de perda de credibilidade.
Haveria, entretanto, uma saída honrosa para que se pudesse revelar posicionamentos a partir da informação, ao invés de revelar informações a partir de posicionamentos. A saída seria a explicitação de uma agenda editorial, de uma pauta de valores e princípios que fundamentasse certa lógica de raciocínio e argumentação de produtores de conteúdo. Mas não temos isso na imprensa brasileira em geral. Temos adesões e repúdios, mas não discussão de ideias, de propostas, de projetos. As linhas editoriais são simpatias partidárias, o que coloca a discussão num nível emocional, sentimental, de afecções. Nesse nível, o debate racional fica prejudicado, inclusive a necessária presença da antítese para a produção dialética do conhecimento. A demissão de Maria Rita Kehl do Estadão, por publicar artigo discordante da linha editorial do jornal, mostra o quanto essa postura irracionalista pode ser perigosa para o pluralismo de ideias. Com uma agenda explícita e bem concatenada no lugar de uma postura maniqueísta, o jornal poderia abrigar posicionamentos discordantes em suas páginas sem percebê-los como uma ameaça aos valores que defende ou sustenta.
Mas é o viés irracionalmente tendencioso de nossa mídia que vem predominando, e isso não se relaciona exclusivamente com o período eleitoral. A campanha começou antes da campanha, creio eu. Não há outra forma de explicar a enorme abertura dada a jornalistas e articulistas tão francamente engajados quanto os que vimos encontrando em rádios, TVs, revistas e jornais. Há posições governistas e antigovernistas, há simpatias e antipatias, concordâncias e discordâncias, que se revelam nas intervenções, nas análises, nas reportagens. Mas há posturas inacreditáveis, que redundam em situações que beiram a insustentabilidade. É possível entender o que motiva um jornalista de economia a criticar sistematicamente o governo Lula durante oito anos, mesmo com todos os indicadores apontando para bons resultados? Ou um jornalista de política colocar todas as suas fichas na desarticulação e esfacelamento da candidatura governista num contexto de aprovação recorde do presidente da República? Má fé ou incompetência? Seja o que for, isso tem feito mal à imprensa. As coberturas são desequilibradas, as análises são desequilibradas, e qualquer um que releia revistas e jornais de um ano atrás perceberá que há mais expectativas e apostas sem nenhum lastro de lógica que prognósticos sensatos e conscienciosos. Dar espaço jornalístico de comentários políticos a uma figura esquizofrenicamente antipetista como Reinaldo Azevedo, para ficar apenas com um exemplo, é como dar ao torcedor fanático de um clube a prerrogativa de comentar, como se fosse especialista, aspectos técnicos de uma partida de futebol. Pode-se conseguir uma linguagem mais próxima do leitor/ouvinte/espectador, mas a análise será, invariavelmente, medíocre. Talvez seja interessante, nesse sentido, uma pesquisa séria e bem dirigida sobre o que foi dito na imprensa por esses pseudoespecialistas no decorrer dos últimos dez anos e o que aconteceu de fato: quais análises conseguiram detectar problemas e tendências verdadeiramente relevantes, quais fizeram água nas muitas ondas que quebraram na praia.
O resultado desse mau jornalismo crônico foi a criação de uma subagenda, oculta, mas onipresente, no decorrer dos anos. Nessa subpauta, surgiram itens que beiram a aberração. No esforço de crítica a todo custo, certas manobras, de tão irracionais, criaram espaços vazios de reflexão, e impossíveis de serem preenchidos com uma pauta positiva, real, que servisse a uma eventual candidatura a ser posteriormente referendada pela mídia e seus interesses. Exemplifico: houve, todos se lembrarão, um esforço dramático e quase paranóico de se culpabilizar Lula pelos acidentes aéreos da TAM e da GOL. A verdade é que a responsabilidade federal nesse caso fica completamente diluída no emaranhado de falhas, problemas e infelizes coincidências que resultaram nessas tragédias. Mas ainda que se possa atingir a imagem de um presidente ou de uma administração com essa proposta, a contraproposta, que faria o papel de pauta positiva, a ser assumida por uma oposição, não funciona. Porque, ainda que haja falhas na esfera federal no setor aéreo, sanar essas falhas não garante que acidentes não mais acontecerão. Nenhum candidato de oposição poderia propor isso, ou afirmar que sua eleição evitaria que aviões caíssem. Isso, obviamente, pulveriza qualquer tentativa de culpabilização exclusiva, porque não é possível excluir os outros fatores que não estão ao alcance do governo. Portanto, não há agenda positiva viável para essa pauta, que é, por sua natureza, deletéria e ideologicamente ineficiente. Mas é curioso notar que, mesmo em relação a temas relevantes, a produção de antipauta não conseguiu promover o estabelecimento de uma pauta positiva. Exemplo: houve também grande esforço de divulgação de escândalos pessoais e financeiros envolvendo figurões que apoiaram o governo, como Sarney e Renan Calheiros. É, sem dúvida, papel da mídia fiscalizar o Legislativo e denunciar todo o tipo de falcatrua que acontece por lá. Mas seria ingênuo crer que essa investida contra as lideranças governistas não tivesse também motivações outras (quem não se lembra do frenesi da imprensa com a eleição do inepto oposicionista Severino Cavalcanti para presidir a Câmara dos deputados e de sua decepcionante queda por falcatruas do mesmo naipe?). Do ponto de vista de uma pauta positiva, isso deveria ressoar no leitor/ouvinte/espectador como um "não a esses velhos medalhões da corrupção", bordão saudável e valoroso. Entretanto, como pode um candidato oposicionista defender essa ideia sem comprometer apoios de campanha e até aportes financeiros? Como saber se uma dessas figuras, saindo do barco dos governistas, não poderia passar para a oposição? Nesse caso, como lidar com as críticas veiculadas? Como lidar com os palanques? O candidato teria de assumir uma postura de "corrupção zero" ou "zero escândalos", ou que é praticamente impossível, pois não tem poder sobre o arbítrio dos homens, nem certeza absoluta sobre suas personalidades, nem conhecimento pleno sobre suas histórias pregressas, nem independência de fato em relação a suas esferas de influência. Uma postura desse tipo se esfacelaria diante da primeira denúncia minimamente fundamentada. E os veículos de comunicação não têm como criticar apenas um dos lados, ignorando completamente o outro, sem incorrer no perigo de atingir futuros aliados ou poupar perniciosos homens-bomba, além, é claro, de perder a credibilidade. A luta contra corrupção é um item de agenda positiva; a luta contra a corrupção praticada por aliados do governo seria um subitem. Mas o subitem sozinho não se viabiliza, se o silêncio de condescendência o contradiz.
Há que se ressaltar, ainda, que essa postura tendenciosa da imprensa tradicional teve efeitos na nova mídia, com o crescimento do número de blogues de campanha, tanto de um lado quanto de outro. Parece-me, entretanto, que o debate na internete foi muito mais democrático, embora igualmente radicalizado e muitas vezes tão passional quanto o dos grandes veículos. É que a internete é descentralizada por natureza, e a audiência depende em muitos casos mais da relevância dos textos que do peso do veículo que os divulga. Mas mesmo na velha mídia houve uma reação à postura de "torcida organizada". Carta Capital, Isto é, Record claramente se contrapuseram a Veja, Época, Globo. Capas atrás de capas respondiam-se mutuamente. Matérias atrás de matérias sacudiam redações e estúdios. Em certa medida, isso pode parecer positivo, como um indicativo de que os espaços podiam tender ao equilíbrio. No entanto, o que se viu foi, muitas vezes, um acirramento da postura partidária, gerando caldo ainda maior de desinformação e passionalidade. Se isso era necessário em nome do debate, para compensar uma investida completamente afinada com a candidatura da oposição, é algo a se considerar. Mas o que ficou foi um recrudescimento da sensação de desequilíbrio, de apego partidário, de excitação desarrazoada.
Não acredito que os próximos anos verão cobertura midiática similar de eleições presidenciais. A tendência é uma mudança radical, embora não tão imediata, das formas de circulação da informação jornalística, associada ao aumento dos usuários das tecnologias digitais. Os grandes jornais não vão morrer, a TV provavelmente ainda centralizará a maior parte das atenções, mas haverá mais e melhores canais de expressão de ideias para mais pessoas, dentro e fora da política. Os veículos de comunicação têm a obrigação ética de fazer melhor do que fizeram neste processo eleitoral, com mais equilíbrio, ponderação e integridade, e têm o compromisso de dar um salto de qualidade em seus projetos editoriais, sob pena de perderem espaço para os milhões de pequenos formadores de opinião que estão chegando.
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