Final do jogo SESI contra Cruzeiro, decisão da Superliga nacional de voleibol. Giovane é o técnico do SESI.
O time do SESI é melhor que o do Cruzeiro, e, embora eu torça para o Cruzeiro, recebo sem maiores dramas a indiscutível conquista do título pelos paulistas, que, ademais, já haviam sido a equipe mais bem colocada na primeira fase. O quarto set é um verdadeiro massacre.
Todos comemoram, se abraçam, repórteres entram em quadra, puxam o Murilo para entrevistar, puxam outros jogadores, puxam o técnico. O repórter se posiciona para as perguntas. Giovane também. O repórter capricha:
- O que é mais emocionante, Giovane, ganhar a Superliga como técnico ou ganhar as Olimpíadas e o Mundial como jogador?
Eu paro. Estupefato. Não é possível que o rapaz perguntou isso. Mas perguntou mesmo. Pela cara que fez o Giovane deu pra ver que ele se atreveu.
E passam milhões de coisas pela minha cabeça.
1) A não ser que eu esteja muito enganado, é preferível ser medalhista das Olimpíadas até como gandula que ganhar a Superliga nacional como jogador. Não há comparação possível. Aliás, comparar isso seria absolutamente ridículo em qualquer outra situação, quanto mais nessa!
2) Se não estou imensamente equivocado, para muitos atletas, tornar-se técnico não é exatamente a primeira opção, mas sim a alternativa de manter-se em atividade quando a carreira declina. E a postura de técnico, inclusive em termos de envolvimento e distanciamento, é absolutamente outra, impossível de ser comparada com a de jogador em atividade.
3) Ou eu estou ficando louco ou era óbvio que Giovane acabara de vencer um campeonato longo e disputado e estava no momento de saborear a conquista. Nessas condições, não seria polido, nem oportuno, nem sequer inteligente perguntar-lhe sobre outro assunto que não se relacionasse à conquista. Na verdade, a pergunta é um absoluto contraclímax do momento emocional vivenciado pelo entrevistado. É como pegar um adolescente dançando numa festa e perguntar o que a mãe dele acharia disso.
4) Imagino que o repórter esperava uma declaração bombástica do tipo: "a emoção é a mesma" ou "a emoção é maior na Superliga". Se ele obtivesse essa resposta, ela seria evidentemente falsa e demagógica, servindo apenas para alimentar polêmica ou fazer uma manchetezinha sensacionalista. E, por outro lado, se ele obtivesse a resposta óbvia, a de que a Olimpíada e o Mundial são muito mais importantes, não teria acrescentado nada à sua entrevista. O que me leva a concluir: a pergunta ou era inútil, ou capciosa.
5) Se a pergunta era inútil ou capciosa, cabe-me perguntar: por que foi feita? Se alguém me disser que fazer perguntas capciosas é importante para o jornalismo, para satisfazer a curiosidade do espectador ou surpreender o entrevistado em algum deslize, eu mudo o questionamento: afinal, para que é o jornalismo, então? Se ele serve só para isso, não é melhor não ter?
6) O Giovane respondeu de uma maneira esperta, brilhante, sagaz. Ele disse que só não estava em quadra porque já não conseguia, caso contrário estaria também. Essa resposta matou a pau. Primeiro, porque mostrou que o repórter comparara situações profissionais incomparáveis (jogador e técnico). Segundo, porque evidenciou que os títulos como jogador são mais importantes (e assim afastou, por eliminação, a necessidade de se posicionar em relação à comparação Superliga versus Olimpíada). Terceiro, porque retomou o foco na comemoração daquele título, conquistado naquele dia. Quarto, porque, desmontou a estratégia capciosa do repórter. Quinto, porque, de certa forma, ao não recuperar os termos da pergunta, a resposta explicita que aquela foi mal feita, ou nem deveria ser feita.
7) Eu estou estudando Linguística esses dias, e, ainda com essa cena impressionante na cabeça, deparei com dois trechos de textos teóricos que me ajudaram a compreender minha indignação. O primeiro é sobre a circulação do dizer na sociedade. É assim:
"(..) em estudos recentes, tem havido a preocupação de mostrar que a comunicação rompe muitas vezes o caráter intimista de um diálogo entre o eu e o tu, aqui e agora. Nesses casos, rompe-se o dialogismo mais estreito e alarga-se a circulação do dizer na sociedade. (...)
No caso das entrevistas, na televisão ou na imprensa escrita, estabelecem-se três relações de comunicação: entre o entrevistador e o entrevistado, entre o entrevistador e o público, entre o entrevistado e o público. Em outras palavras, a relação entre o entrevistador e o entrevistado, que é a única explicitada nessa comunicação 'alargada', dependerá (...) das relações dos interlocutores com o público. Na verdade, a comunicação com o público é o objetivo primeiro da comunicação entre entrevistador e entrevistado" (FIORIN, José Luiz (org.), Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2010, p. 46).
Para mim, tudo ficou muito claro. O entrevistador, querendo empatia do público ou aprovação por uma atuação mais incisiva, fez a pergunta com objetivo de colocar Giovane nas cordas. Giovane, que sabe que é pessoa pública, que tem um público específico de aficcionados por ele, pelo vôlei ou pelo SESI, saiu das cordas com destreza e deixou claro, não para o repórter, mas para a audiência, que entendeu a armadilha e que não cairia nela.
Mas o público não é uma entidade passível de ser completamente conhecida. Na verdade, é uma entidade um tanto quanto abstrata. O público não é o índice do IBOPE, é algo complexo, variado, de difícil definição e apreensão. Quem lida com essa entidade tão complicada de conceituar tem de ter um norte, uma base, um fundamento. Na falta deste, vem à tona uma espécie de generalização, meio simplificadora, meio redutora, do que seriam os interesses da audiência. Essa imagem (considerada em sua complexidade ou simplicadora e generalizante) é o que, em Greimas, define-se como simulacro, ou seja, "representações das competências respectivas que se atribuem reciprocamente os participantes da comunicação e que intervêm como algo prévio, necessário a qualquer relação intersubjetiva" (FIORIN, José Luiz (org.), Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2010, p. 46). O repórter forma mentalmente um simulacro do espectador, e isso guia a formulação de sua pergunta. O simulacro, nesse caso, é uma imagem negativa, aética, de mediocridade, como se o público estivesse ali para cutucar Giovane, e não para compartilhar a alegria da conquista. O entrevistado também trabalha com um simulacro de seu público, bem mais positivo. Ele entende que não é oportuno fazer comparações com outras conquistas, e, ao mesmo tempo, que é necessário ser polido e reencaminhar a entrevista que está sendo realizada, em respeito a quem o acompanha pela televisão.
Eu não trabalharia com uma imagem negativa de público, se fosse o entrevistador. Ou seja: eu não teria feito aquela pergunta. Por outro lado, se há orientação explícita ou implícita dentro do jornalismo para uma atuação tão desrespeitosa em relação ao espectador, quase o chamando de idiota, eu fico achando que algo no jornalismo se perdeu. E se essa orientação estiver correta em sua construção do simulacro da audiência, só me resta rezar.
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