Dia desses fui com a patroa fazer compras em mercado próximo de casa, mas não tão próximo que possibilitasse trazermos os produtos no braço. Perguntamos, então, a um dos caixas, se havia serviço de entrega; isso definiria o tamanho de nossa compra. O rapaz nos mandou falar com outro empregado, que estava ali perto. Esse era o entregador. Ele garantiu que conseguiria levar os produtos se fizéssemos a compra até as 19h00.
Como bom capricorniano, disciplinado e chatíssimo, fiquei calculando o tempo até que, perto de 15 minutos antes do prazo, encostávamos nosso carrinho em um dos caixas do mercado, para passar as mercadorias. Esse processo demorou um pouco, e, enquanto esperávamos, notei que o entregador me olhava com certa constância, tentando ler algum comportamento ou sacar algum traço que lhe seria importante. Pagos todos os itens, o rapaz sinalizou o funcionário do caixa alguma coisa e me chamou. Disse-me que a entrega implicava acréscimo de 6 reais na compra (disso eu já sabia) e pediu para que eu não pagasse esse dinheiro com a conta no caixa, e sim para ele, depois. Como para mim era exatamente a mesma coisa, aceitei, e na verdade nem estava ligando muito para isso. Estava preocupado com o fato de que iríamos a pé para casa, e as compras, indo de carro, chegariam primeiro.
Foi então que descobri algo que até então não supunha: as compras não iriam de carro. O rapaz colocaria as caixas em um carrinho de entregas, desses que se usam para carregar mercadorias que abastecem o estoque. Ele carregaria as três caixas de coisas que compramos naquele carrinho até chegar em nossa casa. Portanto, caminharíamos juntos até lá.
Confesso que fiquei mais tranquilo de saber que as compras não chegariam primeiro, mas pareceu-me esforço demais para alguém andar sete a oito quarteirões movimentados e de calçadas acidentadas empurrando um carrinho rústico como aquele com tanto peso em cima. Fiquei pensando que, se eu trabalhasse nisso e fizesse vinte entregas por dia, ficaria tão cansado que dormiria umas dez horas seguidas.
No caminho, vim conversando com o rapaz. Descobri muitas coisas. Ele era paraibano, com pouco tempo de São Paulo. Ele ganhava 550 reais por mês para fazer entregas para o mercado, sem direito a vale-transporte nem vale-alimentação. Os seis reais que eu pagaria no caixa ficariam todos para a empresa, pois não importava o número de entregas realizadas para o cômputo do salário final. Ele explicou que, pagando a ele, poderia ter um troco a mais para o transporte e outras necessidades. Disse que era torcedor do Treze, na Paraíba, do Flamengo, no Brasil, e do Corinthians, em São Paulo. Disse-me também muitas outras coisas de que não lembro, pois estava andando mais rápido que o meu normal para acompanhá-lo, e estava um pouco cansado.
Chegamos em casa, e ele levou as caixas até a porta do meu apartamento, enquanto fiquei no térreo, para vigiar o carrinho, que não cabia no elevador. Quando desceu, perguntei se tudo estava entregue, e ele me disse, um tanto desconfiado, que sim, e que minha mulher lhe havia dito que eu pagaria os seis reais na saída. Não fiquei ofendido; sei quanto esse dinheiro era importante para ele.
Dei uma nota dez e não quis troco. Ele saiu contente e agradeceu, desejando-me um bom fim de semana. Mas eu não me senti nada bem. Fiquei pensando no valor das coisas, para mim e para ele. O valor econômico do serviço realizado. O valor moral de pagá-lo "por fora". O valor social de colaborar com alguém que trabalha em condições tão aviltantes. O valor político de conhecer as condições em que um trabalho é realizado, e não apenas o resultado que ele produz em meu benefício. Fiquei pensando em tudo isso, e não cheguei a nenhuma conclusão, mas solidifiquei a certeza de que ainda há muito a se fazer para que se possa promover justiça social de fato no Brasil.
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