sábado, 16 de junho de 2012

Música e eu

Embora não goste muito da ideia, devo concordar com o que as pessoas dizem sobre gente como eu. Tenho um emprego estável e uma carreira no magistério. Tenho possibilidades dentro da minha área, e conto com o respeito dos profissionais com quem trabalho. Sendo professor, meu empenho é mal remunerado, mas não tendo os grandes vícios do homem moderno (drogas, jogos, ostentação, prostituição), consigo sobreviver até bem com o salário que tenho. 
Eu deveria investir na carreira acadêmica. Escrever montanhas de artigos e publicar em pencas de revistas. Eu deveria vender minha força de trabalho analítica a editoras e afins. Ou ser ghost writer de alguém, ou colaborar com políticos e celebridades fazendo revisões, escrevendo discursos, ajudando a montar publicidades. 
Estranhamente, quando tenho algum tempo vago, ou mesmo sem tê-lo, dedico-me à música. E pior de tudo, não me dedico à música de orquestra, erudita, com a disciplina e a humildade de quem sabe executar obras de gênios que merecem todo o empenho técnico do ser humano à disposição de sua criatividade. Dedico-me à música popular, mais especificamente à canção popular. 
Faço aula de canto há mais de dois anos. E não porque tivesse algum projeto nesse período. Eu não tinha nada, nem tempo de construir nada, ou de investir em alguma boa ideia, lucrativa ou não. Remexendo um pouco mais na extensão da memória, verifico que toco violão há 24 anos, e que participei de uma série de projetos, que, por um motivo ou outro, não vingaram. Na maioria dos casos, porque as necessidades da vida apertaram e eu precisei me concentrar nas coisas da carreira, não para alcançar grandes evoluções, mas para não perder a condição mínima de subsistência digna.
Se eu fosse uma pessoa dessas pragmáticas, que constroem coerentemente seus projetos de vida e têm disciplina suficiente para levá-los adiante, o correto seria largar a música. Nunca ganhei dinheiro com ela. Nunca atingi status social por meio dela. Nunca contei com a confiança das pessoas no meu trabalho. Nunca fiz algo que pudesse ser "descoberto" ou "reconhecido". 
A despeito de tudo isso, não posso, não sei, e não vou viver sem música. É uma parte de mim. É mais que um prazer e uma necessidade, é quase o que os religiosos denominam "chamado". Eu tentei. Rompi vínculos, desisti de projetos, coloquei necessidades à frente. Tudo inútil. A música não é um hobbie para mim. Ela é uma emoção profunda da minha integridade, uma das bases que me sustentam.
Minha primeira banda foi o Diversos. Talvez não a primeira, pois fiz tentativas com os colegas de Federal, mas na época eu era pura vontade, sem nenhuma depuração, e fui devidamente recusado. O Diversos era constituído por Luciano Luiz (hoje nome forte da imprensa esportiva e do gerenciamento da Copa de 2014), Eduardo Prevedelo (amigão, cara genial, grande coração e hoje provavelmente muito bem de vida em Santa Catarina), Lute (descanse em paz, irmão), Fernando Nishio (grande cara, deve estar por aí ganhando bastante dinheiro), Sapo (no lugar do Lute) e Ana Paula, com participação do Jabá no início de tudo, e de outras pessoas que perdi no turbilhão das lembranças. Era uma banda ao estilo punk, com canções pretensiosas e outras de tiração de sarro. Não fomos adiante por uma série de razões, entre as quais provavelmente a falta de recursos técnicos para fazermos o que queríamos, e o fato de que tínhamos, todos, planos paralelos e muita vida pela frente.
Depois do Diversos, fiz algumas tentativas de trabalhos em duplas. Uma com o grande amigo Ariel Carvalho, hoje construindo sua vida no Norte do Brasil. Faltou-me, nesse caso, técnica suficiente para sustentar as boas intuições do meu parceiro. Outra, com o maravilhoso cantor Arturo Viola, hoje na Inglaterra, trabalhando com produção musical. Em relação ao Arturo, faltaram-me noções de música mínimas para acompanhar o extraordinário talento nato que ele possuía.  Tentei também fazer algo com o Paulo Zorzetto, hoje grande nome da arte de tocar bateria, músico de primeira, com conhecimento acadêmico, mas não fui muito adiante, embora tenhamos conseguido, por curto período de tempo, fazer algumas noites no Bexiga, com o guitarrista e vocalista Marcos.
E nesse meio-tempo veio o convite para que eu participasse de uma banda de rock com meus amigos de bairro e de verve, Jefferson Luiz (hoje guitarrista do excelente Esquema Apê) e José Wildzeiss Neto, o Netinho (uma pessoa a quem devo, sem exageros, parte da minha vida, e que é tão especial que não tenho como defini-la). Inicialmente, éramos nós três e o Junior, baterista conhecido deles, que depois saiu. Rearranjos, discussões e tensões depois, acabamos nos fundindo com a outra banda do Netinho, e formamos o Nautilus, projeto encabeçado pelo extraordinário músico Pierini (sim, esse mesmo, dos CDs de música instrumental) e complementado pelo gênio musical inato do Marquinhos (que deve estar fazendo música por aí afora). Esse projeto, de rock progressivo e com intenções a longo prazo, tinha larga possibilidade de vingar, mas havia clara diferença técnica e mesmo de confiança entre eu e os outros integrantes. A prova disso é que, depois do rompimento por discordâncias musicais, a banda voltou a unir forças, com o nome de Arena, mas já sem minha participação. Mais tarde, o Jefferson, espírito irriquieto e criativo, e o Netinho formaram com o Eduardo a banda Esquema Apê, trabalho conceitual, avançado e brilhante, que está aí para quem quiser conferir. O Pierini construiu uma irretocável carreira-solo, sempre muito exigente em relação a tons e timbres e qualidades propriamente musicais do que produzia.
A verdade em relação ao Nautilus é que eu cantava e tocava violão, mas não fazia nenhuma das duas coisas bem o suficiente para participar de um projeto tão ambicioso. Tendo de encarar minhas limitações, fui estudar na ULM (Universidade Livre de Música), tendo sido aprovado para cursar canto popular. Mas a vida de professor é complicada, há altos e baixos, e tive de priorizar quase com exclusividade minha formação, até conseguir certa estabilidade profissional ao ser aprovado no concurso da Prefeitura de São Paulo. Com isso, a música ficou um pouco de lado.
Mas quando tudo indicava que a música ficaria no passado em minha vida, o Everson Bô (da sensacional banda Sudaka e do N-Grão) me falou de um pessoal que tinha uns projetos bacanas, ali na Vila Matilde. Era uma turma da pesada. A princípio, tínhamos o Bô, o João e o Alemão, esses últimos cabeças visionárias emprestadas às áreas de artes plásticas. Não formamos uma banda de imediato, houve alguns arranjos e desarranjos. Entre entradas e saídas, ficamos sendo eu, Alemão, João, Duda, Daniel, Pitchu (esse hoje é músico profissional). Queríamos uma vocalista feminina, testamos algumas pessoas, inclusive a Paulina, cantora brilhante, mas acabou não rolando. Formamos o Oficina Hz, proposta aberta para várias contribuições. Gravamos algumas coisas (foram as primeiras gravações, depois de tanto tempo, em que eu efetivamente fazia o papel de vocalista da banda; fiquei orgulhoso!) que ficaram interessantes, e provavelmente tínhamos futuro para além disso, mas nunca fizemos aparição pública. João e Pitchu acabaram saindo depois das primeiras gravações, e ficamos eu, Alemão, Daniel, Duda e Sandro. Esse era um pessoal muito bacana, receptivo, e que gostava da minha produção. 
Entretanto, a vida de casado tem suas exigências, e não são muito fáceis de conciliar com a música. O fato é que acabei abandonando o Oficina Hz, lamentavelmente, e fiquei um tempo parado, esperando esquecer a vida de acordes e sons e tomar rumo em outras possiblidades. Qual o quê! Esse curto período foi interrompido pelo convite do meu irmão Daniel (sim, ele mesmo, vocalista do Nacionarquia) para fazermos um trabalho juntos. Devo muito a ele. Ele me trouxe de volta para a música, e isso foi importante não só para minha confiança como artista como também para minha recuperação de autoestima na vida pessoal, depois da minha separação. Fizemos várias apresentações e tínhamos (temos, na verdade) todo um projeto de MPB e poesia, muito bacana. Mas eu não consegui acompanhá-lo. Dispondo de muito mais talento e verve, o Daniel iria longe, e senti que eu o estava segurando, principalmente porque as exigências do mestrado me limitavam. 
E seguiu-se mais um período morno, que acabou me tornando cético em relação às minhas possibilidades. Eu fiquei, sinceramente, um tanto quanto descrente do que poderia fazer. Afinal de contas, depois de tantos anos, eu julgava que se tivesse algum talento especial ou diferenciado isso acabaria sendo reconhecido pelos pessoas, e algum sucesso (nada a ver com fama ou dinheiro) eu teria atingido. E que, se isso ainda não tinha acontecido, era porque talvez eu não servisse mesmo para a coisa.
Esse ceticismo não me impediu de continuar cantando, tocando e ouvindo muita música. Mas, devo confessar, na verdade essa desconfiança até me ajudou, porque muitas das tensões e encanações que eu tinha ficaram resolvidas de uma vez por todas com a constatação de que a vida continuaria com ou sem minhas pretensões musicais. E foi assim, com as ambições em baixa e a vontade de fazer música em alta, que eu decidi fazer aulas de canto com o Dudé, indicação do Daniel. 
A princípio, foi um pouco difícil para o Dudé me dar aulas, porque eu era muito tenso, nervoso, não me soltava. Parece que as críticas que recebia e as frustrações advindas da constatação de minhas limitações tinham sido incorporadas na memória do corpo, e a voz refletia isso. Devo ter sido o pior aluno do Dudé durante muito tempo, com dificuldades de fazer os exercícios mais básicos. Mas a verdade é que o capricorniano é teimoso, não desiste, não para, não entrega os pontos. E constatei melhoras, e fui me empolgando. E fui entendendo que tinha qualidades, e que deveria investir nelas, ao invés de ficar lamentando meus defeitos. A minha vida musical foi salva pelo Dudé, indiscutivelmente.
Então eu melhorei, e fiquei contente com isso, mas ainda não estava plenamente convencido, porque faltava tornar pública minha melhora. Faltava poder me apresentar, e oferecer um pouco do que vinha aprendendo.
Nesse intervalo de tempo, fiz uma loucura necessária para racionalizar minha vida profissional. Olhei para mim mesmo, enquanto professor e pesquisador, e cheguei à conclusão de que precisaria de algo mais forte, mais incrustado na minha personalidade, para seguir adiante. A vida acadêmica nunca foi um habitat natural para mim, eu sabia disso. Ou eu escolhia algo com o que teria profunda identificação, ou pararia mesmo no mestrado, comprometendo a possibilidade de dar aulas no ensino superior público, um objetivo de vida que o tempo tornou uma necessidade. Foi então que a mão do destino (dane-se se a imagem é brega) colocou no meu caminho as aulas de pós do professor Luiz Tatit. Foi encantamento, depois mergulho, depois certeza de que queria aquilo para mim. Não foi nada fácil. Saí de uma área em que havia investido pesadamente (Literatura Brasileira) para tentar a sorte na Línguística, na qual eu era não mais que um aventureiro, sem história pregressa, sem iniciação científica e mesmo sem bases mínimas de formação. Ralei muito para o processo seletivo, com expectativas limitadas e noção de que talvez não fosse suficiente. Como milagres vivem acontecendo comigo, o Tatit me aceitou como orientando, e estamos desenvolvendo um trabalho sobre as canções de Adoniran Barbosa. Sim, eu havia conseguido transformar a música em objeto de estudo acadêmico. Que vitória!
Mas tudo isso era vitória para mim, só para  mim. Ainda faltava mostrar para os outros o que estava conseguindo.
Foi então que o Sandro me indicou para um pessoal ponta firme que queria fazer blues, rock e canções com roupagens criativas. Participei do primeiro ensaio, muito nervoso, porque me sentia testado. Mas foi amor à primeira vista. Parece que o pessoal gostou do meu trabalho, e fiquei honrado com isso. Geralmente, eu cantava nas bandas porque escrevia as letras, e tinha ideias de composição, mas não porque as pessoas gostassem da minha voz. Desta vez, fui aceito cantando músicas que não eram minhas, e isso me deixou muito animado.
É esse o trabalho que desenvolvo hoje. Acredito que ele tem muito futuro, e que as pessoas são criativas e intensas. Começamos eu, Kleber Vaccioli (o maestro), Maurício Melo (nosso Hendrix), Rogério Rangel (a.k.a. Dedos de Veludo), o grande Tarcisio Capitão Caverna Duarte e Sandro, nosso gaitista meio sumido. Há outras pessoas a serem integradas no projeto, a longo prazo, e talvez a formação mude um pouco, porque a vida é assim, com idas e vindas. Mas a verdade é que esses caras são responsáveis pela segunda parte da minha salvação como músico. Eles me resgataram num momento em que eu nem sabia que poderia fazer o que estou fazendo. Nossa banda se chama Blue 7.1.
Pois é. Resta alguma conclusão de toda essa trajetória maluca de idas e vindas e acertos e erros e colaborações e descolaborações? Sim.
A conclusão final é que eu não consegui viver sem música. Não poderia dizer que não consigo, mas é indiscutível que não consegui. Não sei até onde posso chegar, mas isso hoje pouco importa. Na verdade, talvez isso nunca tenha sido o mais importante. Se fosse, eu já teria desistido há muito tempo. A verdade é que, quando subo num palco ou estou numa roda de amigos com o violão ou faço uma gravação que me parece boa, nesses momentos eu sou mais eu. Ou simplesmente: eu sou eu. E, sendo eu  nesses momentos, posso conviver melhor com o outro eu, de outros momentos que precisam se resolver em seus âmbitos próprios.
Até quando eu puder me suportar cantando, compondo e tocando, eu viverei a experiência da música tão intensamente que, mesmo diante dos antigos e futuros problemas ou fracassos, terá sido um sucesso sentir o que sinto cada vez que esse pedaço de mim se manifesta.

3 comentários:

Unknown disse...

tsua historia é muito bonita vc é um grande lutador parabens vc merece beijos de sua aluna luciana
h

Lucas Goulart disse...

Bela história! É impossível se livrar da música. Você tem um dom duplo: é ótimo músico e ótimo professor. Parabéns...

manu gomes disse...

A música tem mesmo essa poder inexplicável de conectar-nos à nossa essência. Mais uma vez me identifiquei aqui! Sempre tive interesse pela música, mas sempre a deixei de lado (beeem mais do que você, inclusive) em função das tais prioridades práticas da vida. Hoje estou redescobrindo a música, aprendendo violão e em breve iniciarei as aulas de canto. Não tem um dia sequer que eu não me pergunte porque eu não comecei isso há 15 anos. Quanto tempo eu perdi tentando me descobrir de fora pra dentro, sendo que a música me proporcionaria isso de dentro pra fora.