Rolou uma manifestação na Paulista esses dias, em que estudantes protestaram contra o adiamento do ENEM. Eles aproveitaram para protestar também contra o Sarney no Senado e a corrupção, e colocaram como lema da grita que fizeram a frase "Somos ENEMigos da corrupção". O jogo de palavras foi infeliz, na minha opinião. A palavra inventada "ENEMigo", que indica oposição a "corrupção", contém a sigla "ENEM". Mas na pauta de reclamações da garotada, "ENEM" está no mesmo grupo de ideias de "corrupção", ou seja, algo a ser questionado. O "inimigo" está no campo positivo, mas o "ENEM" (ou seu adiamento) está no campo negativo, e há uma fusão de ambos numa única palavra. Essa ambiguidade enfraquece o efeito contestador da brincadeira.
Do ponto de vista político, também achei a manifestação infeliz, não pela pertinência das reclamações em si, mas porque deu a impressão de não ter foco, nem objetivo definido, nem sequer uma reivindicação central. Protestar contra Sarney é legítimo, assim como reclamar do adiamento do ENEM. Tentar sintetizar as duas coisas num protesto único, entretanto, é inadequado. O vazamento do ENEM não é um problema de corrupção, nem de nepotismo, nem de picaretagem governamental. Também não se trata de um problema relacionado à linha ideológica de atuação, pois, se é certo que o governo apoiou Sarney no Congresso, não seria lúcido dizer que apoiou o roubo da prova do ENEM. Com um pouco de esforço, poderíamos achar que ambas as críticas visam mostrar a incompetência do governo atual, que não consegue acabar com a corrupção nem fazer o ENEM na data certa. Ainda assim haveria dois problemas: o de mostrar que as duas questões têm importância equivalente e grau, no mínimo, semelhante de responsabilidade por parte da administração federal, e o de dispor de um discurso em que se costurassem essas críticas isoladas a um quadro de erros e trapalhadas grande o suficiente para um veredito negativo justificável. A meu ver, não é possível, porque o caso do Sarney é muito mais grave e complicado que o vazamento do ENEM, e porque a responsabilidade do governo no roubo das provas não é a de conivência ou de aceitação. E ainda mais: como é duvidoso acenar para uma incompetência generalizada do governo federal, visto que a economia caminha bem e há no mínimo tantos acertos quanto erros na atuação da equipe de gestão, a manifestação acaba ficando vazia, uma espécie de "Cansei 2", em que o discurso não fere ninguém porque não sabe quem quer atingir, e em que não há noção de algo palpável a ser reivindicado ou negociado, mas apenas um sentimento difuso de indisposição contra tudo que vem do Planalto.
Mas não foi isso o que mais me impressionou.
O que me deixou boquiaberto foi o fato de que essa manifestação mereceu um link de destaque no Yahoo e no Terra no dia em que aconteceu. (O Yahoo e o Terra alimentam-se de notícias do Estadão, é bom salientar). E essa manifestação, que mereceu destaque no Yahoo e no Terra e uma reportagem no Estadão, reuniu... 100 estudantes. Menos pessoas que em uma reunião de pais na escola em que trabalho. Menos estudantes que os que assistem minhas aulas na faculdade semanalmente. O equivalente a oito ou dez grupos de RPGistas, ou a um festival de música alternativa sem público. Um décimo do meu perfil no Orkut.
Eu não entendo o critério editorial do jornal e dos portais. Quando, afinal, se deve considerar uma manifestação como noticiável? Tenho certeza de que qualquer ato de bancários ou trabalhadores dos correios tem muito mais importância política e impacto na vida das pessoas do que esse dos estudantes, sem contar o fato óbvio de que junta muito mais gente. A escolha da mídia, nesse caso, me passa a mesma sensação de vazio que citei acima: atribui-se importância e oferece-se repercussão a tudo o que questiona o governo atual, independente da consistência ideológica ou da representatividade política quantitativamente verificável da manifestação. E isso não funciona.
Não achei mais o link do Yahoo. O do Terra é este aqui.
Um comentário:
Que bom voltar a ler seus posts :)
adorei o texto sobre seu tio, realmente uma lição de vida em relação ao preconceito que muitas vezes nasce na própria família.
Quanto ao ENEM, eu estou num mixto de vergonha alheia e de pena pela mancha que que poderá causar num programa, ao meu ver, tão bem intencionado como o prouni, por exemplo. E tristeza pelos estudantes que poderão ser prejudicados por isso. Justamente porque determinadas mídias vêm nisso uma oportunidade de escandalizar o governo federal e causar um desconforto e pânico em cima de um problema que poderia ser resolvido com tranquilidade e boa vontade de todos os envolvidos.
besos :)
Postar um comentário