Passei por uma perua e estava escrito assim, na traseira: "Lutar, sempre; vencer, talvez; desistir, jamais". Frase bonita, bem construída, simétrica. Três verbos e três advérbios. Bom gosto de quem a escolheu. Entretanto, quando vejo esse tipo de lema para uso externo, fico pensando menos em seu significado imediato e mais nas razões que o indivíduo teve para adotá-lo e, sobretudo, exibi-lo.
Pode ser que ele acredite realmente nisso. Nesse caso, supõe-se que valorize o trabalho, o labor, a persistência. Que acredite que pode vencer, mas que isso não depende somente de suas forças. Que considere que a determinação individual e a fé são seus maiores valores, e que vale a pena ser conhecido e reconhecido como batalhador e convicto. Teríamos, então, um cidadão querendo mostrar ao mundo a forma como se consegue o sucesso, sintetizada num dito que toca as pessoas pelos princípios cristãos de humildade e trabalho que apregoa.
Pode ser, no entanto, que o indivíduo que escolheu esse lema não seja nada disso. Pode ser que seja uma pessoa consumida pela culpa de tomar atitudes erradas e comprometer financeiramente e estruturalmente sua família. Pode ser que seja alguém que tenha entregado os pontos já muitas vezes, e que procure constantemente, dentro e fora de si, motivações para continuar fazendo aquilo que precisa - mas não quer - fazer. Nesse caso, a frase estaria mais para consolo ou promessa. Não seria entendida como "eu luto", mas como "tenho de lutar, fazer o quê?"; não serviria para mostrar algo como "eu acredito no trabalho", mas sim "eu preciso acreditar e continuar no caminho, não tenho outra saída", ou "eu preciso lembrar constantemente que não posso esmorecer, mesmo que as soluções estejam obnubiladas".
Até aqui, supusemos que pessoas com diferentes experiências e motivações poderiam adotar, sem problemas de coerência ou sentido, um mesmo lema de vida. Consideremos agora uma criatura de configuração moral distinta da que atribuímos às gentes imaginárias já descritas. Consideremos alguém que não acredita no sucesso pela via do trabalho; alguém que procura tirar vantagem de todas as maneiras das situações; alguém que prefere o lucro advindo do menor esforço ao pagamento justo por seu mérito e empenho; alguém que, nas piores adversidades, pensa unicamente em salvar o próprio pescoço; alguém que não liga de fazer falcatruas e passar a perna nas pessoas se não houver o perigo de isso vir a público.
Se uma pessoa com essas características colasse no seu veículo um adesivo com a frase em questão, poderíamos pensar que se trata de uma contradição ou uma impropriedade. Mas, por absurdo que possa parecer, o lema teria exatamente a mesma função: mostrar aos outros indivíduos qual a concepção ideologicamente válida e aceita de sucesso. O que haveria de diferente, nesse caso, é que estaríamos diante do tipo mais comum de ser humano que encontramos em nossa vida social, aquele que separa com muita habilidade sua aparência para o mundo de sua conduta interior. Esse tipo de cidadão não acha que está mentindo, pois realmente crê que o trabalho duro deveria ser norma de conduta da sociedade, contanto que ele não fosse obrigado a adotá-la. E ambas as coisas convivem pacificamente em seu universo lógico, pois suas crenças e seus valores não têm necessariamente de ser coerentes com sua práticas cotidianas, podendo muitas vezes contradizê-las, quando convier. Porém, ele não pode assumir explicitamente que se julga exceção à necessidade de cumprir o que diz. Nossa sociedade aceita a hipocrisia, não o cinismo, e, ademais, faltariam argumentos éticos válidos para se justificar. Mas é bom que fique claro: um indivíduo com essas características poderia colocar desavergonhadamente a frase no vidro de seu carro, e por certo ganharia elogios e atenções dos que estão ao seu redor, sem nunca enfrentar qualquer mínimo questionamento sobre a coerência entre sua conduta ética e o lema que adota. Agiria, assim, tal como as inumeráveis pessoas que vestem camisetas com dizeres cujo sentido desconhecem porque as estampas ou cores estão na moda ou parecem simpáticas. As outras diriam apenas: "caiu bem em você".
O curioso é que, se remontássemos a frase, adequando-a à falta de caráter dessas figuras que citamos, poderíamos obter algo mais expressivo e veraz, "Vencer, sempre; desistir, talvez; lutar jamais", lema extremamente pertinente para o que presenciamos todos os dias nas nossas relações com o mundo. Essa reorganização semântica deixaria claro que o negócio é o sucesso, o dinheiro, a vantagem pessoal, e que, quanto menor o esforço para obtê-los, mais eles nos convêm. Isso diz muito sobre o que vemos na política, nas relações de trabalho, nas festas, no trânsito, nas escolas, nas conversas de bar, em vários setores de nossa civilização. Mas um lema como esse carrega o problema do escancaramento, do desmacaramento, da autoculpabilização. Uma pessoa pode pensar assim e até usar essa ideia como um gracejo no contexto de confissões infames a amigos próximos. O que ela não pode é admitir isso abertamente, declaradamente, exibidamente, porque a consciência coletiva lida muito mal com seus desejos reprimidos.
Sintetizando: se tudo fosse somente uma questão de escolha e bom gosto, a frase original seria, para quem acredita no trabalho, para quem precisa acreditar, e até para quem não acredita mas não pode dizer, a opção mais conveniente e correta, sempre; se a questão for a de interpretação, para qualquer cidadão que tivesse lido "Raízes do Brasil", "A ética protestante e o espírito do capitalismo" e um básico resumido de Freud, a frase original tenderia a soar mais como uma curiosidade cotidiana que como uma prescrição, e a frase remontada, mais como uma provocação válida que como um gracejo. Prefiro o segundo ponto de vista. Desacredito da seriedade desse tipo de lugar-comum. Para mim, os homens se revelam no que dizem justamente pelo que silenciam. Feridas expostas precisam ser curadas, e as pessoas preferem, por incrível que pareça, não mostrá-las, ou não reconhecê-las como feridas, a ter de tratá-las adequadamente. As pessoas aceitam sofrer sempre e mentir talvez, desde que não tenham de mostrar jamais.
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