Um grande amigo meu, que há tempos não vejo, dizia que todas as pessoas têm defeitos, e que o meu era gostar de futebol. Confesso, adoro futebol. Gosto de assistir a jogos de todos os times, de todas as divisões. Gosto do balé, da disputa de bola, da imprevisibilidade do espetáculo, da plasticidade das jogadas. Torço para o Cruzeiro, mas posso torcer para qualquer outro time, pois aprendi a acompanhar os jogos querendo que alguém vença. Fui poucas vezes a estádios, e sempre considerei que, neles, a proximidade com a experiência da disputa em campo nos torna coparticipantes.
Mas é só. Para mim, futebol é torcer, acompanhar, admirar, aplaudir, vaiar. E creio que, para qualquer ser civilizado, a experiência de torcedor não deva passar disso. Futebol não é mais importante que política, que assuntos amorosos, que educação, que questões de direito e cidadania. Futebol não é minha profissão, e não é uma paixão que sobrepuje minhas responsabilidades, ou mesmo minhas outras paixões (música, literatura).
O caso da agressão ao jogador Vagner Love, do Palmeiras, é, para mim, um claro exemplo do que acontece quando os limites da paixão pelo esporte são ultrapassados, e as frustrações cotidianas são projetadas naquilo que deveria ser apenas uma forma de entretenimento. Vagner é um ótimo jogador - e ótimos jogadores têm fases boas e ruins. Foi responsável por muitos dos gols que tiraram o Palmeiras da segunda divisão. Deve ter jogado mal, sei lá, não acompanho tanto assim o desempenho dos atletas. Mas mesmo que tivesse feito as piores partidas de sua vida, nada, absolutamente nada poderia justificar a estupidez e intolerência do comportamento dos torcedores no caso em questão. E o pior de tudo é que comentei esse caso com três pessoas diferentes, em momentos diferentes, e três vezes ouvi algo como "apanhou pouco, estava fazendo corpo mole".
Eu não sei até que ponto pode ir o ódio ou a frustração de ver meu time perder um campeonato, ou um jogador em quem eu depositava confiança perder um gol incrível ou jogar abaixo do que sabe. O que eu sei é que faz parte da minha cidadania entender que isso é só diversão, teatro, espetáculo. Nenhum jogador que atua pelo meu time tem qualquer obrigação contratual ou moral comigo; jogadores são profissionais, atuam por seus clubes e a eles devem satisfações. Não é porque eu compro camisa, vou ao estádio e sustento o mercado da bola que tenho o direito de administrar o meu clube de coração, de escalá-lo, de interferir no seu gerenciamento. Se assim fosse, não precisaríamos de técnicos, de preparadores físicos, de especialistas em futebol. Como torcedor, tenho várias formas de manifestar minha aprovação ou reprovação em relação ao que acontece em campo, ou à forma como meu clube é administrado. Posso votar nas eleições do clube. Posso escrever faixas, fazer protestos, cantar músicas. Posso reclamar de uma substituição ou da presença de algum jogador. Tudo isso está dentro daquilo que qualquer indivíduo pode fazer sem ferir as liberdades individuais dos outros, sem atrapalhar a vida de outras pessoas.
Entretanto, como torcedor, não tenho o direito de fiscalizar a vida pessoal de jogadores do meu clube. Se o jogador corresponde ou não às expectativas de atuação em campo, é uma coisa. Se ele tem uma vida noturna intensa, é outra, e ninguém tem nada a ver com isso. Se isso atrapalha o rendimento do atleta, cabe ao clube e ao técnico avaliarem e tomarem as medidas cabíveis. Ponto final. É mais do que óbvio que aquilo que acontece fora do espetáculo, fora do âmbito da partida, dos treinos, das concentrações, não é problema do torcedor. Não aceito bronca nem do meu chefe imediato quando estou em casa com minha família.
Se não tenho nada a ver com o que acontece com um cidadão em sua vida pessoal, tanto menos posso tentar agredi-lo, por qualquer que seja o motivo. Não há justificativa para uso da violência contra um indivíduo que não me agrediu. Minhas insatisfações pessoais não podem ser resolvidas por meio da violência física, e esse é um princípio básico da vida em sociedade. Não interessa se o cidadão fez ou não corpo mole, se honrou ou não a camisa, se ama ou não o clube como eu amo, se ganha exorbitâncias ou salário de fome: não tenho o direito de ofendê-lo, de agredi-lo, de ameaçá-lo. Isso é crime, isso está fora do comportamento social saudável. Ainda mais: não é inteligente, por parte do torcedor, criar esse clima de cobrança ostensiva e intranquilidade. Nem todas as pessoas reagem da mesma forma quando estão acuadas, e muitas delas, inclusive, perdem toda a motivação quando são atacadas em sua dignidade. Assim aconteceu com Edilson, que abandonou o Corinthians depois de ser agredido pela torcida, numa atitude que considero exemplar. A conivência com a violência, às vezes, é pior que a própria violência, e foi isso que me assustou ao ouvir as pessoas defendendo a imbecilidade dos torcedores que foram presos.
Por fim, quero deixar registrado que a paixão pelo futebol, que rende muito dinheiro a não muitas pessoas, tem sido usada como desculpa esfarrapada para atos covardes, injustificáveis e até monstruosos de torcedores - se é que se pode chamá-los assim - ao longo dos anos. Basta fazer uma pesquisa simples na rede: ônibus do Coritiba destruído por torcedores do Vasco, mortes que acontecem em brigas de torcida agendadas pelo orkut(!), destruição da avenida Paulista pelo vandalismo na comemoração do título da Libertadores pelo São Paulo(!), troca de pauladas e morte em final de campeonato juvenil(!). Para cada um esses casos citados, seria interessante e plenamente adequado que todos os atletas e pessoas que vivem de futebol fizessem uma greve ou paralisação de uma semana em protesto. Nem toda a alegria e tristeza que o futebol nos proporcionou nos últimos 80 anos pode justificar a morte brutal de uma pessoa, por exemplo. Infelizmente, a imprensa e as autoridades não levam esses casos tão a sério, talvez por medo de desagradar os torcedores, que são poder de consumo e possibilidade de votos. O espetáculo não pode parar; mas se ele envolve insanidade, estupidez, vandalismo, covardia, violência, ele para. Porque senão deixa de ser espetáculo e vira barbárie.
(Alguns dirão, com razão, que a sociedade do espetáculo acaba sempre sendo a sociedade da barbárie. Quero acreditar que seja possível um equilíbrio, um consenso, embora no fundo saiba que isso é uma manifestação de esperança, não uma análise racional).
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