Eu fico imaginando.
Fico pensando o que aconteceria a alguém que disputasse três eleições seguidas para o mesmo cargo, sofrendo três derrotas consecutivas. E que assumisse esse cargo marcado por uma grande desconfiança em relação aos rumos que tomaria.
Fico pensando o que aconteceria a essa pessoa se, desde o momento em que assumisse esse cargo, sofresse oposição violenta dos quatro maiores jornais do país e da maior revista em circulação. Fico pensando como essa pessoa lidaria com uma sucessão de escândalos e manchetes negativas na imprensa.
Fico pensando como alguém poderia se segurar no governo nesse contexto, se ainda colaborassem para seu azar as trapalhadas de membros de sua administração e práticas antiéticas de pessoas de seu partido.
Fico pensando como uma pessoa, com todos esses fatores contrários, poderia sobreviver a um bombardeio midiático pré e pós-eleição que a associasse a corrupção e desvios de conduta.
Como uma pessoa pode suportar a ação legitimada e bem paga de colunistas de revista e blogueiros que a ofendem sistematicamente, acusando-a de desonesta, chamando-a por apelidos indecorosos, comparando-a a sapos, antas, mulas e afins? Como uma pessoa pode manter sua popularidade se sofre ataques constantes à sua reputação, que se estendem a membros de sua família, amigos próximos e homens de confiança? Como, se são levantados todos os aspectos que possam afastá-la da imagem de sucesso construída pela ideologia da elite e culturalmente aceita por grande parcela da população? Como, se aplicam contra ela preconceitos de classe, de procedência geográfica, de formação escolar e muitos outros?
Como as pessoas olhariam para mim se eu fosse descrito como um alcoólatra? Se eu fosse acusado de pedir que minha ex-companheira abortasse uma filha? Se eu fosse tachado de estuprador de meninos? Se ventilassem que me aproveitei financeiramente do fato de ter sido cassado pela ditadura, ou da desgraça de ter perdido um membro do corpo? Se minha forma de falar fosse impiedosamente ridicularizada dia após dia em vídeos postados na internete e distribuídos em listas a milhões de pessoas? Se eu fosse, sem nenhum respeito ou consideração por minha posição institucional, chamado de analfabeto, ignorante, mentiroso e despreparado?
Como eu poderia ser querido do povo se os jornais associassem minha imagem a acidentes aéreos com centenas de mortos? Se associassem a imagem de minha administração a apagões e surtos de febre amarela e questões de segurança nos estados e a vazamentos de provas do ENEM e dossiês fabricados contra adversários e a problemas tantos que nem fosse possível um só governante por eles se responsabilizar? Se associassem minhas aparições públicas a manifestações de repúdio? Como ficaria minha imagem se eu fosse vaiado na abertura de um evento esportivo internacional, transmitido ao vivo e a cores para toda uma nação?
Fico imaginando.
Fico imaginando alguém que passasse por todos esses problemas e ainda outros. Uma crise mundial que abalasse mercados em todo o planeta. A necessidade de se posicionar em relação a blocos de poder em atrito evidente. A urgência de reverter um quadro de miséria de uma enorme população desamparada. A cobrança de resultados em diferentes áreas sociais destruídas pelos mandos e desmandos de pessoas desqualificadas para administrá-las.
Fico imaginando a cabeça de alguém que tem seu principal projeto social criticado impiedosamente e que, depois de vê-lo vingar, tem de ouvir os mesmos críticos dizerem que outros governantes deveriam receber os méritos desse sucesso, por terem sido pioneiros nas iniciativas.
Fico imaginando como se sente alguém criticado em seu próprio país por conduzir uma política externa considerada desastrosa enquanto recebe prêmios tanto dos fóruns dos países capitalistas quanto dos fóruns alternativos com inspirações socialistas.
Fico pensando que todas essas condições, somadas, inviabilizariam a eleição, ou a reeleição, ou a carreira política, ou mesmo a imagem de integridade de uma pessoa.
E é por isso que considero a popularidade do presidente Lula um fenônemo extraordinário, que dificilmente se repetirá. Nunca houve oposição tão feroz, agressiva e sem limites a uma figura pública quanto a que vi ser praticada contra o presidente nos últimos oito anos - e não estou discutindo as razões dessa oposição, se fundadas ou infundadas, estou apenas constatando sua obstinação. Não foi apenas crítica a um estilo governo; foram ofensas que beiraram o inaceitável, como a alusão ao dedo perdido da mão ou à condição de nordestino. E ainda assim Lula se manteve, sobreviveu no imaginário da população, tornando-se, ao fim de seus dois mandatos, não apenas o presidente mais popular de nossa história, mas a figura pública de maior credibilidade do Brasil, como atestam pesquisas realizadas nos últimos tempos, com possibilidade clara de fazer seu sucessor e até mesmo, se quisesse, de conseguir um terceiro mandato, com aval dos brasileiros. Mais de 80% da população apoia o presidente no fim desse longo e tortuoso percurso, mesmo com o desgaste que seria natural para uma personagem com tão ampla exposição. Isso não é normal, definitivamente. Ampliando o raciocínio da manchete da revista CULT sobre a gestão Lula, diria que não tivemos um presidente apenas improvável, mas em grande medida também impensável.
Gostemos ou não de Lula, seremos sempre obrigados a admitir que desenvolveu-se uma química entre ele e o povo que não acontece todo dia. Quando nos afastarmos no tempo dessa época histórica, teremos condições de avaliar com menos parcialidade ou paixão o seu legado, entre os muitos erros e os muitos acertos. Mas será muito difícil explicar às gerações vindouras uma popularidade tão gigantesca e consolidada num contexto tão traiçoeiro e complicado de governabilidade. Estou certo de que se trata de um fenômeno singular, e que deve ser analisado e compreendido como tal.
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