Aproveitando a (já comentada) ausência do programa partidário petista como projeto de governo, o final do primeiro turno assistiu a uma das mais bem montadas armadilhas políticas de que já tive conhecimento. Trata-se da questão do aborto.
Para explicar o porquê de considerar essa questão uma armadilha política, tratarei do assunto com um pouco mais de abrangência, explicitando minha posição íntima, minha posição de cidadão, minha compreensão da profundidade da questão, a posição dessa discussão no debate político e as razões pelas quais considerei a forma como esse debate foi conduzido uma leviandade eleitoral.
Em primeiro lugar, explicito minha posição particular. Não sou a favor do aborto por convicções religiosas e filosóficas, e por experiências que tive em minha vida, que sempre me indicaram que a interrupção da gravidez devesse ser a última opção. Acho que não preciso entrar em detalhes nesse caso.
Em segundo lugar, explicito minha posição como cidadão. Sou a favor da descriminalização do aborto até o quarto mês da gravidez. Explico. Minhas convicções particulares, exatamente por serem particulares, não podem ser estendidas para toda uma sociedade. As mulheres abortam por inúmeras razões, desde econômicas até físicas. Não é possível estabelecer, para cada caso, uma lei específica, que diga respeito à situação em questão. Além disso, é preciso ser razoável. O aborto já é ilegal e continua sendo praticado. Não é a permissão ou proibição da lei que mudará a prática do aborto na sociedade. Mas a proibição tem grandes desvantagens, como o despreparo dos hospitais para atender às mulheres que abortam, o estabelecimento de níveis diferenciados de assistência para mulheres pobres e ricas, a impossibilidade de atuar sobre o grande número de complicações pós-aborto que costumam ocorrer, a impraticabilidade de uma oferta de assistência educacional e financeira do estado para as mulheres que manifestassem dúvida em realizá-lo. Por tudo isso, e por entender que a descriminalização é, na verdade, uma forma de salvar vidas (de mães e filhos), porque permite maior atuação do Estado, creio que esta seja a melhor saída nos dias atuais.
Devo deixar claro aqui, ou, no caso de já estar claro, devo explicitar com mais ênfase que não sou abortista por convicção, mas acredito que o aborto seja muito mais um problema de saúde e educação que de legislação criminal.
Em terceiro lugar, é preciso compreender que essa é uma questão muito profunda e delicada. Alguns pontos precisam ser discutidos quando se fala de aborto, e esses pontos tendem a ser pouco pacíficos. Alguns deles: o que é o direito à vida e até onde ele pode ser estendido? O que é o direito da mulher sobre seu próprio corpo? Qual a obrigação do Estado diante da iminência do nascimento de um novo cidadão? Por que o aborto é uma prática social tão disseminada? Quais são as ações educacionais que devem ser tomadas para garantir uma decisão esclarecida das mulheres? Quais são as ações que devem ser tomadas para garantir o aborto, caso seja legalizado, como direito para as mulheres que querem realizá-lo? Instituições vinculadas a grupos religiosos podem se recusar, por princípios éticos, a realizar abortos em hospitais que financiem? O Estado é laico mesmo quando a sociedade é religiosa? O código de ética dos médicos garantiria o direito dos mesmos a fazer ou não fazer a intervenção abortiva?
E haveria mais uma penca de perguntas a se fazer, porque há muitos problemas envolvidos. Essa questão exigiria um amplo debate nacional, uma mobilização permanente de vários setores da sociedade, uma disposição de ouvir religiosos e laicos, esquerdistas e direitistas, engajados e alienados, e tentar encontrar soluções, se não consensuais, pelo menos mais abrangentes. Não seria possível reduzir uma discussão tão profunda e importante a uma questão legal, e muito menos querer encontrar uma solução definitiva levantando-a como bandeira no meio de um debate polarizado e programaticamente pobre como foi o do pleito presidencial.
A última afirmação requer certo cuidado no texto. Alguém poderia contra-argumentar: "mas o aborto é uma questão social importante, e devemos saber o que os candidatos pensam a respeito". Não tenho dúvidas disso. O problema é que a questão do aborto não foi apresentada como um tópico de discussão entre outros, mas sim como uma questão resolvida, encerrada e evidente por si mesma, por meio da qual se distinguiriam as pessoas do bem (contrárias ao aborto) e as do mal (favoráveis). Foi uma questão usada pelas linhas auxiliares do candidato Serra para demonizar a candidata Dilma Roussef.
Essa utilização de um tema como definidor dual do caráter dos seres humanos como alinhados ao bem ou ao mal pode ser tranquilamente associada ao grande câncer dos tempos modernos: o fundamentalismo. É notoriamente fundamentalista a abordagem utilizada para a questão do aborto. Só é do bem, só é bom, só tem caráter, coração, decência, quem for explicitamente contra. Tanto é que Dilma, percebendo a enrascada em que a haviam enfiado, declarou-se contra, assinou documentos mostrando que era contra, posicionou-se contra, e ainda foi cobrada... por ter mudado de ideia! O fundamentalismo é assim: ninguém pode mudar de ideia, ninguem pode titubear, ninguem pode dizer que não tem posição definida. Nenhuma posição é legítima se não for a que o fundamentalismo considera legítima.
O leitor deve se lembrar do horror que eram os e-mails antiabortistas. Eram uma ramificação religiosa da campanha do medo, utilizando tons ameaçadores, fotos repugnantes, imprecações desmedidas. É assim que se deve discutir uma questão de saúde pública, que envolve vidas, posturas, opções?
Dito isso, exponho o que coloco em quarto lugar na sequência do texto. Creio que o debate político deve tratar de questões como aborto, eutanásia, suicídio, depressão, síndrome do burnout, e outras, sim. Mas creio que deva tratá-las como questões de saúde pública, em princípio, e de interesse social, em um segundo momento. Esta não pode ser uma questão de sim e não, de certo e errado, de puros e impuros, ou de qualquer radicalização que a desfigure. As pessoas precisam conhecer argumentos, números, conjunturas, ideias diferenciadas, projetos de melhorias para a área da saúde. A razão precisa sobrepor-se ao medo nesse caso. Uma eleição presidencial não é um plesbiscito. Uma questão como a do aborto não seria resolvida, jamais, pela eleição de Serra, Dilma ou Marina, longe disso. Essa questão deve estar atrelada a uma política de saúde e assistência social, que oferece muito mais resultado que uma mudança na lei.
Concluo, então, argumentando pela leviandade do que aconteceu na última eleição. A questão foi apresentada de forma leviana, como já resolvida, e como definidora do caráter moral dos candidatos. A questão foi discutida de forma leviana, porque causou estrago nas pesquisas, e porque proporcionou mais respostas vazias que indagações pertinentes. A questão atacou a democracia de forma leviana, ao invocar o fantasma do fundamentalismo religioso e dos radicalismos de direita, adormecidos no inconsciente coletivo do brasileiro. A questão saiu da mídia de forma leviana, quando a eleição acabou, como se sua importância dissesse respeito apenas à possibilidade de influenciar um resultado de urna.
A presidenta Dilma Roussef conseguiu uma grande vitória nas urnas, apesar de ter sido colocada em xeque por essa armadilha eleitoral. Entretanto, sua vitória não apaga a tremenda derrota da sociedade civil ao ver uma questão como essa ser tratada de forma tão baixa e perigosa. O posicionamento cuidadoso e temeroso de Dilma durante a campanha é índice claro dessa derrota.
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