A dois dias da vitória de Dilma Roussef, quando a eleição encaminhava-se já sem grandes sobressaltos para a confirmação do que as pesquisas vinham apontando nas semanas anteriores, uma orientação do papa Bento XVI indicava ser legítimo à Igreja intervir em questões políticas, guiando o voto dos fiéis. Não sou Católico, embora tenha passado por quase todos os sacramentos, e considero legítimo, sim, que as Igrejas, enquanto instituições religiosas, se pronunciem sobre os assuntos que entenderem importantes do ponto de vista da fé. Mas uma coisa me incomodou muito, muito mesmo.
O grande debate do início do segundo turno da eleição foi a já aqui analisada questão do aborto. E, dentro desse debate, víamos as instituições religiosas pronunciarem-se de forma taxativa e absoluta, por meio de seus líderes locais, dizendo que candidatos X ou Y não mereceriam o voto por se colocarem em posição não taxativa ou dúbia em relação a essa questão. Vejo desequilíbrio nesse caso. Isso não é orientação. Orientação seria pedir para que os devotos considerassem também essa questão na hora de votar. Definir para o devoto em quem ele deve votar é fazer propaganda política, é tomar partido explícito e justificar por razões de fé.
Mas esse desequilíbrio do líder parece-me ter uma raiz no desequilíbrio psicológico da sociedade em geral. Não considero normal que uma pessoa, por mais fé e devoção que tenha, defina seu voto pela fala de um padre ou de um pastor. É claro que ninguém se considera em condições de debater com Deus, mas considerar os líderes religiosos como infalíveis e inquestionáveis representantes de Deus na Terra é assustador numa sociedade democrática e pluralista. Até porque, dentro das mesmas Igrejas, diferentes pastores e padres fazem diferentes pregações, abordam diferentes temas, têm diferentes visões de mundo.
Parece-me, entretanto, que esta eleição revelou à sociedade civil seu inimigo ideológico mais nocivo: o fundamentalismo religioso. Enquanto ele foi utilizado para arrancar dinheiro de fiéis, ou garantir presença em grandes eventos, ou realizar grandes intervenções coletivas, ele não pesou politicamente, não incomodou, permaneceu como uma incógnita. Mas, convocado pela campanha de Serra, esse modo doentio de encarar a realidade revelou ser a visão de mundo de milhões de brasileiros, em várias partes do país. A relevância política do fundamentalismo religioso poderia ser encarada como mais uma das forças de mobilização da sociedade, mas existe algo nela que me incomoda em particular, que é o fato de que a palavra religiosa dos líderes não é alvo de crítica, especulação, debate, ou contestação possível.
A intervenção do papa Bento XVI é, na verdade, correspondente às dos pastores evangélicos em suas áreas de influência, com a diferença de que o Catolicismo é mais centralizado. E ela se dá num contexto histórico específico: a Igreja Católica está se aproximando do fundamentalismo e está disposta a exercer maior influência política nos países em que predomina. Essa é uma equação tão perigosa quanto a associação de quadros dos partidos às igrejas evangélicas, resultando, como se sabe, em dúzias de concessões de rádios e emissoras de TV para as mesmas.
Eu acredito em Deus e considero Jesus Cristo a figura mais fascinante da Humanidade. Posso discutir minhas crenças e meus valores relacionados ao que tenho de mais místico, sem nenhum problema. Mas entendo, perfeitamente, que a religião oferece-me uma visão alegórica, incompleta, necessariamente parcial da realidade. A religião não é o arbítrio, a religião não é a verdade. Podemos nos conduzir por ela, mas ainda seremos nós os condutores, e ela, o instrumento. O fundamentalismo religioso tira do indivíduo sua responsabilidade sobre o mundo e sobre si mesmo, porque lhe oferece escolhas prontas, e não elementos para que ele as realize.
Nesse contexto, combato, em nome da democracia, todo e qualquer tipo de fundamentalismo religioso, e toda ação que se encaminhe para isso. Assim como considerei suja e inconsequente a campanha que demonizava Dilma como abortista e Temer como anticristo (o fundamentalismo tem muito de imbecil, como nesse caso), considerei inoportuna a intervenção de Bento XVI. Ele poderia ter dito isso depois da eleição, ou bem antes dela. Não foi coincidência, foi uma tentativa de medir poder. Eu posso criticar o papa porque não sou católico, e não sou candidato a nada neste Brasil majoritariamente católico, mas acho que as palavras do católico presidente Lula são perfeitas como resposta: "o Brasil é um Estado laico". E tem de ser um Estado laico. E num Estado laico, as Igrejas são respeitadas, têm liberdade para suas pregações e seus ensinamentos. O Estado respeita a religião.
Por isso, a contrapartida precisa ser verdadeira: a Igreja precisa respeitar o Estado. Precisa respeitar os processos democráticos, que implicam divergências, debates, convivência de opiniões contrárias. Se a Igreja quer contribuir com o jogo democrático, e, em consequência, com o Estado, pode adentrar nesse campo para oferecer subsídios às divergências, aos debates, às opiniões que se contradizem. Se a Igreja, entretanto, entende que deve entrar no jogo com as cartas marcadas, aproveitando-se da liberdade que tem em relação ao Estado para diminuir o espaço do embate de ideias, creio que presta um desserviço à democracia, e desvia-se de sua função precípua, que é a condução da humanidade por um caminho mais digno e edificante.
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