domingo, 28 de junho de 2009

O povo

Excelente o filme "Um homem de moral", sobre a obra musical de Paulo Vanzolini. Além de resgatar as canções do cara, com comentários sobre situações que inspiraram as letras, há uma série de cenas do cotidiano de São Paulo, em vários bairros diferentes, mostrando o dia e a noite da minha cidade natal. A música é a perfeita trilha sonora para as imagens escolhidas.

Mas uma frase do Paulo nas entrevistas gravadas para o filme foi o que mais me chamou atenção. Ele diz, logo no começo, alguma coisa como: "O povo todo mundo, desse eu gosto bastante. Eu não gosto do povo cada um".

Essa sacada eu achei genial, não só pelas expressões "povo todo mundo" e "povo cada um", que sintetizam com poesia os aspectos de todo e parte do conjunto dos cidadãos. O que me pegou foi a percepção de uma questão de fundo filosófico muito presente na obra de um compositor tão ligado à sua cidade. A questão é: é possível gostar do povo sem entender o que é o povo? Quando julgamos captar a "essência" disso que é o povo, não acabamos perdendo os aspectos da diversidade, da individualidade, da exceção?

Quero tentar fazer aqui, a partir desse viés de interpretação, um exercício de reflexão bem particular . Sinto que, para mim, a frase de Vanzolini poderia se inverter. Tenho dificuldade de gostar do "povo todo mundo", e facilidade em gostar do "povo cada um". Sempre fiquei ponderando, mesmo antes de estudar Filosofia, que amar a humanidade, o povo, a nação, é muito difícil, a não ser que eu amasse apenas aquilo que os simboliza. É possível, por exemplo, uma mesma pessoa chorar ao ouvir o Hino Nacional e afirmar que "lugar de nortista é fora de São Paulo". Conheci muitas pessoas assim, e tenho dúvidas se elas realmente amam a nação. O que é nação para elas? A seleção brasileira jogando, a bandeira hasteada, a palavra "Brasil"? Não deveria ser a compreensão da necessária integração cultural entre as pessoas de diferentes partes do país?

Por outro lado - e repito, isso é uma visão muito particular - acho que o preconceito, o medo, a intolerância diminuem muito, mas muito mesmo, com a convivência e a troca. Viajei ao Rio de Janeiro há dois anos, e fiquei na casa de amigos de minha família. A companhia dessas pessoas, o carinho com que me trataram, a disposição de me levarem para conhecer lugares foram coisas que fizeram com que minha impressão sobre o Rio fosse absolutamente positiva. Mas ainda assim não sei se posso dizer que "amo o Rio". Porque o Rio é imenso, tem muita gente, muitos lugares que não são tão turísticos, muitos problemas, e não sei se tudo isso está fora ou dentro de minha forma de sentir essa cidade tão complexa. O que posso afirmar com convicção é que fiz muitos amigos no Rio, e deles gosto sem reservas. Foi assim em Vitória da Conquista. Foi assim em Gramado. E isso me faz crer que tenho muito mais facilidade de gostar das pessoas quando as conheço mais intimamente do que quando nada sei sobre elas. Então, considero mais difícil para mim dizer que gosto do "povo todo mundo".

Admito ter um pé atrás em relação às generalizações. Algumas parecem-me demasiado gratuitas. Como professor, não gosto muito de falas do tipo "o aluno de hoje é assim", "o professor de hoje tem de ser assado", "a criança se comporta de forma X". Uma das coisas que aprendi em sala de aula é que, se você não quer excluir, deve tentar ver as pessoas como são, e não como deveriam ou parecem ser. Alunos são diferentes, classes também, escolas idem. Fora do âmbito profissional, também não gosto de coisas como "quem faz isso é porque é aquilo", ou "isso é coisa de x, y ou z". Toda pessoa comporta um universo de coisas interessantes (quem disse isso foi a Beatriz Bracher, numa gravação do programa Letra Livre da TV Cultura à qual tive a felicidade de assistir), e isso é o que mais me estimula a viver cercado de gente de todo a sorte.

Há uma citação do genial Mikhail Gorbachev no livro de História com o qual trabalho nas 8ªs. séries (História, Sociedade e Cidadania, de Alfredo Boulos) que gostaria de trazer como contribuição. Consta que ela tenha sido extraída do livro Perestroika: novas ideias para o meu país e o mundo:
Penso que aqui seja adequado destacar uma característica especial do
socialismo: o alto grau de proteção social. (...) Mas constatamos também que
pessoas desonestas tentam explorar essas vantagens do socialismo. Conhecem
apenas seus direitos, mas não querem saber de seus deveres. Trabalham mal,
esquivam-se do trabalho e bebem demais. Há um grande número de indivíduos que adaptou as leis e costumes vigentes para servir seus próprios interesses
egoístas. Dão pouco à sociedade mas conseguem, apesar disso, obter tudo o que é
possível dela, e até mesmo o que parece ser impossível: vivem de rendas
imerecidas.

Essa parece-me ser uma outra forma de pensar a dicotomia entre "povo todo mundo" e "povo cada um". E vê-se aqui que essa não é uma questão qualquer: determinou o fim de uma era na história de nosso tempo. O grande estadista russo percebe, com clareza, que não há um "povo geral" para ser governado, e que aquilo que foi feito pensando no benefício de todos não é, necessariamente, valorizado por cada um. Percebe, ainda, que há diferenças individuais, notadamente as de mérito e de caráter, e que é preciso governar considerando essas diferenças. Percebe, enfim, que uma das grandes falhas do socialismo foi desconsiderar os indivíduos em função do conjunto que constituem, como se esse conjunto fosse homogêneo e unitário.

Poetas são poetas porque percebem primeiro. Vanzolini canta aquilo que é comum a muitos paulistanos, e consegue descobrir expressões simbólicas eficientes para dramas cotidianos de milhões de pessoas. Suas personagens são todo mundo, mas ele sabe que não são, ao fim, ninguém em particular. Gorbachev, por sua vez, homem público, não lida com personagens de canções. Lida com criaturas concretas de carne, osso e espírito, às vezes de porco. Em sua experiência, o povo "poético" dá lugar ao povo "político", um conjunto de forças que se unem e digladiam conforme a conveniência. Eu não tenho como olhar tão de cima, como eles. Mas em minha convivência com exemplares avulsos dessa coisa chamada "povo", posso entender um pouco do sentimento que quiseram passar.

sábado, 20 de junho de 2009

Interpretações

Tive a curiosidade de pesquisar a respeito de um tema esquisito, veiculado numa chamada de matéria televisiva que acabei não vendo.
Seguindo este link, este e este, você se deparará com uma certa pesquisa que indica uma relação entre os sorrisos das pessoas nas fotos de quando eram crianças e o índice de divórcios dessas mesmas pessoas no decorrer de suas vidas.
Antes de qualquer desenvolvimento a respeito do assunto, quero dizer que não considero a pesquisa nem um pouco confiável, e sequer acho que os índices percentuais mostrados (repare: os 10% mais sorridentes, os 10% menos sorridentes, 5% de divórcios, 25% de divórcios) possam servir para quaisquer suposições a respeito dessa relação alardeada pelas matérias. Do ponto de vista científico, é temerário e até irresponsável traçar conclusões com evidências tão tênues, opções tão pouco rigorosas (o que é sorrir, afinal? pessoas que moram juntas mas se odeiam estão casadas ou divorciadas? etc.) e dados estatísticos tão inconclusivos. Além disso, as comparações entre quem sorriu mais ou menos se ativeram a um décimo dos pesquisados em cada caso, ou seja, não se construiu um gráfico de proporção entre sorrisos e casamentos com o universo de pesquisa, apenas compararam-se dois estratos desse universo entre si. E, não bastasse tudo isso, soa estúpido saber que "pesquisadores olharam os álbuns escolares de pessoas e analisaram seus sorrisos, atribuindo notas de 1 a 10 de acordo com a 'intensidade'", como se houvesse forma de quantificar algo tão subjetivo, pessoal e dependente de traços fisionômicos particulares.
A veiculação de matérias desse teor já é, por si só, mau jornalismo. Primeiro, porque dá visibilidade ao irrelevante, produzindo manchetes e suposições que não se sustentam. Segundo, porque apresenta o que é questionável até pelo bom senso como se fosse uma verdade científica. Por último, porque induz a raciocínios preconceituosos e redutores. Um exemplo dessa indução é o comentário abaixo, presente numa das matérias que linkei:

“Talvez o sorriso mostre uma atitude otimista em relação à vida” explica Matthew Heinestein, um psicólogo da Universidade DePauwn, no Indiana. “Ou talvez sorrir para as pessoas atraia outras pessoas felizes e, daí, surja uma união boa”.

Ou talvez as pessoas que mais sorriem nas fotos (visto que sorrir em fotos não é, de forma alguma, sinal de otimismo ou de felicidade, mas uma prática social convencionada) sejam justamente aquelas que mais se preocupam com a aparência, a forma como são vistas pelos outros. Por essa razão, também seriam as que mais dificilmente se divorciam, tentando sempre acreditar ou fazer acreditar numa imagem positiva de seus relacionamentos. Por que não considerar essa hipótese também?
Simples: porque ela não serve para a reportagem que se pretendia fazer. Se a divulgação midiática da pesquisa já é, em si, lamentável, a opção de interpretação da mesma, fechada, obtusa, acrítica, serve apenas para confirmar a opção pelo mau jornalismo. Os dados apresentados não permitem nenhuma conclusão, e, por isso mesmo, a interpretação psicologizante dos mesmos acima transcrita é tão válida quanto zilhões de outras, porque nenhuma se sustenta. Estamos, nesse caso, totalmente imersos na chave do talvez, e é fácil perceber que as análises dizem mais sobre predisposições mentais de quem analisa do que sobre os objetos investigados.
Alguns blogs que li e a própria matéria do Fantástico que linkei chegam a sugerir que as fotos das pessoas na infância deveriam ser vistas para se calcular as possibilidades de sucesso do casamento. Nem de brincadeira aceito isso. Apesar de divorciado (e extremamente sorridente em tudo quanto é foto, diga-se de passagem), ainda considero casamento uma coisa muito séria. Séria demais para ser tratada com preconceitos: o sucesso do casamento, obviamente, não está associado à sua duração, e a felicidade de um indivíduo e sua positividade em relação à vida nada têm a ver com o número de casamentos que ele faz. Essas pseudoverdades científicas, expostas com esse viés normativo e conservador, ao espalharem-se pelas mentes das pessoas menos esclarecidas e mais passivas em relação à mídia, produzem encanações, autojustificações e temores infundados que, ironicamente, em nada contribuem para "uma visão otimista da vida" ou um casamento "de sucesso".
Só não foi uma total perda de tempo ter lido as matérias sobre a pesquisa porque no fim produzi esta postagem, este desabafo. Da próxima vez, vou propor às empresas jornalísticas que exijam, anexadas ao currículo dos pleiteantes a vagas, fotos dos mesmos quando eram crianças. Talvez seja um critério coerente com a seriedade dos conteúdos que veiculam.

domingo, 7 de junho de 2009

De volta - 4 coisas

A primeira é que acabou o semestre mais produtivo de minha carreira como professor. Estou muito cansado ainda, mas creio que agora terei mais tempo para as coisas que quero desenvolver.

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A segunda é que Federer igualou Sampras e ganhou Roland Garros. Fiquei mais feliz por isso que pela goleada do Brasil sobre o Uruguai no Centenário de Montevidéu. Vi quanto Roger queria esse título, e todos sabem o quanto merece. Há atletas que são excelentes como atletas, que eu respeito e admiro, como Phelps, Pelé, Schumacher, e outros; mas não tenho paixão por eles. A diferença, para mim, no caso de Federer, é ver um SER HUMANO que admiro chegar ao panteão dos maiores de todos os tempos. Ele está ao lado de Muhammad Ali no meu coração. Sempre foi o melhor tenista de todos os tempos; agora, é também o maior.

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Outro dia vi num anúncio sobre Dom Casmurro a seguinte chamada: o livro que inspirou a minissérie Capitu. Ué? Alguém achava que fosse outro? Isso agora vai alavancar as vendas da obra? Ou eu estou ficando ultrapassado em relação à cultura de massa?

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Encontrei uma ex-aluna no Extra, aqui perto de casa. A mãe tirou a menina da escola, porque ela tinha dificuldades mentais. Não deixou que fizesse o médio, só o fundamental.
Três anos depois, reconheço a menina mais tímida, menos comunicativa, e com o olhar mais triste. Olhar que só se alegrou ao reconhecer minha namorada, que foi professora dela.
Se você, professor, às vezes julga que não faz diferença, é porque não vivenciou uma cena como essa em sua vida. Lamento pela atitude da mãe. A escola tem de ser, mais do que nunca, o lugar da inclusão, mesmo com todos os problemas.