domingo, 25 de dezembro de 2011

Por que os bichinhos me comovem?

Meus amigos e meus inimigos têm uma senha para me ganhar, dominar ou expor. Eles sabem que sou muuuuuito emotivo. E que choro fácil, fácil.
Isso desde criança, e não exatamente porque seja um menino mimado (pelo menos não tanto quanto outros que tenho conhecido ultimamente), mas porque talvez esse seja um daqueles traços que são da pessoa, que vêm com a história de vida e as disposições de espírito de cada um, e que não podem, mesmo com toda a terapia do mundo, ser apagados sem prejuízo da integridade.
O mais interessante - e talvez mais perigoso - dessa emotividade é que ela se associa a coisas curiosas, inusitadas e incomuns. O megaexemplo seria minha paixão pelos bichinhos: cães, gatos, coelhos, lagartixas, tigres, sapos, formigas etc. Observar os animais, para mim, é de certa forma ser absorvido por seus dramas de existência, suas lutas, suas dores, suas sortes e azares. E - perdoem-me a afirmação provavelmente exagerada - sinto-me mais humano vivenciando essa experiência do que me sentiria em certas situações cotidianas entre humanos. Talvez porque os animais são o que são, sempre; e os humanos esforçam-se, muitas vezes, em ser alguma coisa que não são, e não chegarão de fato a ser.
Eu não posso ver filmes como "Marley e eu". Eles me fazem chorar, eu fico automaticamente apaixonado pela personagem principal. Não precisam nem ser grandes filmes, como de fato esse não é, mas basta que tenham a sensibilidade de mostrar a natureza sem disfarces nem meias verdades dos bichos para que eu me entregue por inteiro. Esses dias o filme passou de novo. Consegui ver até as cenas em que ele começa a envelhecer. Depois, fui fazer outra coisa, porque sabia que desabaria no final.
A série "No reino dos Suricatos" é outro exemplo. Como me comove! Como torço por aqueles animaizinhos simpáticos, gregários e expostos à toda aridez e inospitalidade do deserto! Certos episódios são mesmo impossíveis de ver, para mim, sem chorar, ou pelo menos ficar perto de derrubar algumas lágrimas.
Um amigo meu de profissão me disse que uma das melhores sensações de sua vida era observar, por horas e horas, caracóis, formigas, caramujos percorrendo o campo aberto das terras do interior. Isso é realmente uma experiência única. Só consegui fazer isso na infância, mas reconheço-me inteiramente nesse prazer que ele me descreveu.
E eu poderia ficar aqui enumerando muitas outras situações, com gatos abandonados, cachorros de rua, pombos e pássaros caídos, e outros. Há algo em mim que se mobiliza em prol dessas criaturas.
Evidentemente, amo os seres humanos também, tanto que mergulho na cultura historicamente produzida como quem salta em uma piscina de mel. A questão é que, por alguma razão que não sei dizer, os bichinhos muitas vezes parecem mais indefesos diante do mundo, e ao mesmo tempo mais fortes e resilientes em sua batalha pela continuidade da espécie. Enfim, é inútil explicar.
Como todas as coisas da minha vida, essa facilidade de comoção está eivada de contradições. Perguntariam, com razão, vários de meus amigos: mas, se você compreende a dignidade e a integridade dos animais, por que não se torna vegano, ou vegetariano? Olha... eu tentei. Não consegui. Mas não descarto tentar de novo. Na verdade, tenho enorme admiração pela minha prima Estela e meu amigo Cesar, que levam esses princípios muito a sério em suas vidas. Talvez eu precise de mais tempo; talvez seja esse um dos meus desafios a vencer. Evidentemente, se minha saúde ficasse comprometida, ou se houvesse necessidade de consumo, para alguma carência do organismo, de elementos de origem animal, eu os consumiria, mas evitando ao máximo ampliar essa necessidade ao ponto de transformar em hábitos descuidados.
Mas essa é uma outra questão. O que quero deixar claro nesta postagem é que meu coração é dos cães, gatos e suricatos, mesmo quando não os compreendo ou tenho medo de suas reações. Ou posso até dizer: justamente porque eles guardam certo mistério da vida, que é divino em sua manifestação.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Deus

Se você colocasse uma câmera em um lugar qualquer do mundo não imediatamente acessível ao ser humano, provavelmente conseguiria filmar algum tipo de vida formando-se e protegendo-se em grupos e sistemas. Que tipo de vida seria esse? Poderiam ser criaturas como pequenos insetos, peixes circulando em cardumes, plantas parasitando outras plantas, mamíferos em semivigília para antecipar o ataque dos predadores. Seja qual for o formato desse ser, seja qual for a enformação dessa vida, o fato é que ela estará, sempre, fragilmente, equilibrando-se sobre uma corda bamba. Para esses notáveis batalhadores, conviver com a iminência do desaparecimento, da morte, da destruição, é parte de uma experiência evolutiva instintiva da qual, mesmo não tendo consciência, eles são os legítimos atualizadores e mantenedores em sua singularidade individual.
Quando um bando de roedores atravessa desavisadamente um caminho cheio de sinuosidades e esconderijos, onde uma serpente silenciosa posiciona-se para obter sua presa do dia, não há garantias, nem seguros, nem leis, nem justiça, nem nada. Daqueles vinte ou trinta que passarão, um ficará, e não é possível dizer qual seja. Aos outros, restará a fuga, a reorganização do grupo, a triste percepção da perda de um membro, e a continuidade da jornada. E a inteligência do instinto, a avisar: deve-se estar atento, pois é preciso que continuemos no mundo.
Por que aquele, e não outro? Por que x e y sobrevivem a uma inundação, e não a ou b? Por que, das tantas moscas que sobrevoam os restos nos matagais, justamente aquelas tinham de enredar numa teia de aranha, e outras prosseguiriam com sua rotina de alimentação e reprodução? Não sei se é possível responder a essas especulações, e talvez elas nem façam realmente sentido, uma vez que procuram encontrar padrões numa realidade ainda não suficientemente desvendada. O que considero, na verdade, mais intrigante nisso tudo é que, embora tenhamos muitas vezes a convicção de que, pelo menos no espaço de tempo em que realizamos nossas atividades cotidianas, nosso lugar no universo está garantido, estamos, provavelmente, na mesma situação dos roedores do parágrafo anterior. Vivemos num mundo em que, caminhando por dentre multidões, ou fechados em fantasias de segurança, somos absolutamente vulneráveis. Menos que as moscas, que os coelhos, que a plantas? Talvez. Mas quando um atirador anônimo invade um espaço em que você está, num momento de delírio psicótico, caberá uma mesma indagação aplicável ao reino animal: por que fiquei, e outro se foi? Por que alguns são pegos de surpresa por coisas tão absurdas quanto uma bala perdida ou uma queda aparentemente trivial, enquanto outros escapam de guerras sanguinárias e condições completamente desfavoráveis?
Creio que somos animais, antes de tudo, e que tenhamos essa bela e sábia condição de seguir em frente, sobrevivendo, dando continuidade à espécie. Mas nossa relativa segurança física para o prosseguimento da experiência da vida, construída pelo engenho de inúmeras gerações de nossos antepassados, talvez tenha nos dado uma percepção arrogante do mundo, camuflando a irmandade que temos com todos os seres subsistentes que nos rodeiam, que é baseada, justamente, na quase insignificância perante o todo, aliada à extrema singularidade de permanecer uno e respirando apesar de todas as possibilidades em contrário. É um milagre estar aqui blogando e dividindo a sensação da própria finitude com outros da mesma espécie, num planeta tão rico de vidas e experiências do existir. Se somos animais antes de tudo, somos homens, acima de tudo, e espíritos, em meio a tudo, e expressões de uma inteligência superior, a despeito de tudo.
Nisso se fundamenta meu amor por Deus.

sábado, 5 de novembro de 2011

Pontos a esclarecer

Esses dias, indignado com a confusão e a loucura que se estabeleceram no prédio da faculdade responsável pela minha formação, desabafei em forma de piada no Facebook. Escrevi que a PM da USP tinha achado o assassino de Salomão Hayala (o vilão da novela das 11), com a intenção de dizer que tinha cometido exagero na atuação contra os estudantes pegos com maconha. Não sei se houve ou não exagero na abordagem, mas tenho certeza de que houve na condução.
Enfim, isso pouco importa. O que importa é que alguns leram a piada que fiz, que evidentemente implicava a incorporação de uma voz social conservadora atacando os uspianos, sem compreender a ironia das palavras, ou seja, o fato de que eu me solidarizava com os estudantes. Esse mal entendido gerou desconforto para mim, e tive de tirar a piada do ar, porque os comentários levavam a crer que eu tinha dito uma outra coisa.
Em função disso, quero esclarecer alguns pontos do meu pensamento, para que nada fique por interpretar, e as pessoas tenham clareza de algumas posições.
Primeiro, não sou a favor nem contra a PM no campus da USP. Não tenho nada, a princípio, contra a PM (talvez contra alguns PMs, mas que não creio representarem a insituição como um todo). Só que ainda não me convenci da efetiva necessidade dela, se por tantos anos tivemos uma guarda universitária que, bem ou mal, dava conta do recado. Não era mais simples equipar, preparar e reorganizar a guarda universitária? Mas, enfim, não é, no meu caso, nem questão de rancor, nem de medo, nem de nada. Apenas de entendimento.
Segundo, sou a favor da descriminalização do uso da maconha. Se o policial, na USP ou em qualquer outro lugar, ficar preocupado em prender quem está fumando um baseado, não tem polícia para tanta gente. E acredito que um sujeito enchendo a cara num barzinho e depois saindo com seu carro na madrugada é muito mais pernicioso que alguém que fuma maconha. A polícia precisa se focar em coisas mais importantes e perigosas para a sociedade.
Terceiro, não julgo o caráter das pessoas pelo uso ou não uso de nenhum tipo de droga, ou remédio, ou estimulante. Há canalhas abstêmios e pessoas indescritivelmente lindas que fumam, ou bebem, ou cheiram, ou injetam anabolizantes, ou abusam de remédios. O verdadeiro problema é o tráfico de drogas, não o usuário.
Quarto, acredito que as pessoas acabam criando, pelos padrões de comportamento socialmente observáveis dos estudantes, um estereótipo geral de quem frequenta cada faculdade. O perfil da FFLCH, para a maioria das pessoas, é de um frequentador mais desencanado, questionador, e zeloso da liberdade individual. O do Mackenzie, será outro, o da PUC, outro; e, mesmo dentro da USP, o da Medicina ou do Direito, outro e outro. Quando aconteceram as confusões dentro do campus, vi, li e ouvi pessoas querendo preconceituosamente desqualificar, com base em interpretações pobres e distorcidas derivadas desses estereótipos, tanto o aluno da FFLCH quanto o da USP como um todo. Não acho que podemos coadunar com esse tipo de pensamento. Não somos "vagabundos maconheiros", como algumas pessoas deixaram entender. Somos estudantes. Trabalhamos, lutamos por ideais, produzimos conhecimento, atuamos em vários setores da sociedade. E se alguns ou muitos de nós fumam maconha, não creio que a porcentagem seria diferente se pegássemos festas de elite nos bairros chiques de São Paulo ou pancadões na periferia, ou escolas de luxo e caríssimas e escolas públicas, como parâmetros de comparação. Fuma-se tanto na USP quanto em qualquer outra instituição de ensino, ou de qualquer outra coisa, no Brasil. Se a droga é um problema, é um problema da sociedade como um todo e não de uma suposta impertinência de um grupo social específico.
Quinta e última coisa, só para que fique claro o lugar de onde falo, e não porque eu sinta necessidade de me defender da hipocrisia alheia: eu nunca fumei maconha, eu não bebo, eu nunca utilizei drogas ilícitas. E não acho que seja melhor que ninguém por causa disso.

domingo, 11 de setembro de 2011

O entregador

Dia desses fui com a patroa fazer compras em mercado próximo de casa, mas não tão próximo que possibilitasse trazermos os produtos no braço. Perguntamos, então, a um dos caixas, se havia serviço de entrega; isso definiria o tamanho de nossa compra. O rapaz nos mandou falar com outro empregado, que estava ali perto. Esse era o entregador. Ele garantiu que conseguiria levar os produtos se fizéssemos a compra até as 19h00.
Como bom capricorniano, disciplinado e chatíssimo, fiquei calculando o tempo até que, perto de 15 minutos antes do prazo, encostávamos nosso carrinho em um dos caixas do mercado, para passar as mercadorias. Esse processo demorou um pouco, e, enquanto esperávamos, notei que o entregador me olhava com certa constância, tentando ler algum comportamento ou sacar algum traço que lhe seria importante. Pagos todos os itens, o rapaz sinalizou o funcionário do caixa alguma coisa e me chamou. Disse-me que a entrega implicava acréscimo de 6 reais na compra (disso eu já sabia) e pediu para que eu não pagasse esse dinheiro com a conta no caixa, e sim para ele, depois. Como para mim era exatamente a mesma coisa, aceitei, e na verdade nem estava ligando muito para isso. Estava preocupado com o fato de que iríamos a pé para casa, e as compras, indo de carro, chegariam primeiro.
Foi então que descobri algo que até então não supunha: as compras não iriam de carro. O rapaz colocaria as caixas em um carrinho de entregas, desses que se usam para carregar mercadorias que abastecem o estoque. Ele carregaria as três caixas de coisas que compramos naquele carrinho até chegar em nossa casa. Portanto, caminharíamos juntos até lá.
Confesso que fiquei mais tranquilo de saber que as compras não chegariam primeiro, mas pareceu-me esforço demais para alguém andar sete a oito quarteirões movimentados e de calçadas acidentadas empurrando um carrinho rústico como aquele com tanto peso em cima. Fiquei pensando que, se eu trabalhasse nisso e fizesse vinte entregas por dia, ficaria tão cansado que dormiria umas dez horas seguidas.
No caminho, vim conversando com o rapaz. Descobri muitas coisas. Ele era paraibano, com pouco tempo de São Paulo. Ele ganhava 550 reais por mês para fazer entregas para o mercado, sem direito a vale-transporte nem vale-alimentação. Os seis reais que eu pagaria no caixa ficariam todos para a empresa, pois não importava o número de entregas realizadas para o cômputo do salário final. Ele explicou que, pagando a ele, poderia ter um troco a mais para o transporte e outras necessidades. Disse que era torcedor do Treze, na Paraíba, do Flamengo, no Brasil, e do Corinthians, em São Paulo. Disse-me também muitas outras coisas de que não lembro, pois estava andando mais rápido que o meu normal para acompanhá-lo, e estava um pouco cansado.
Chegamos em casa, e ele levou as caixas até a porta do meu apartamento, enquanto fiquei no térreo, para vigiar o carrinho, que não cabia no elevador. Quando desceu, perguntei se tudo estava entregue, e ele me disse, um tanto desconfiado, que sim, e que minha mulher lhe havia dito que eu pagaria os seis reais na saída. Não fiquei ofendido; sei quanto esse dinheiro era importante para ele.
Dei uma nota dez e não quis troco. Ele saiu contente e agradeceu, desejando-me um bom fim de semana. Mas eu não me senti nada bem. Fiquei pensando no valor das coisas, para mim e para ele. O valor econômico do serviço realizado. O valor moral de pagá-lo "por fora". O valor social de colaborar com alguém que trabalha em condições tão aviltantes. O valor político de conhecer as condições em que um trabalho é realizado, e não apenas o resultado que ele produz em meu benefício. Fiquei pensando em tudo isso, e não cheguei a nenhuma conclusão, mas solidifiquei a certeza de que ainda há muito a se fazer para que se possa promover justiça social de fato no Brasil.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Meu país

Dia 7 de setembro é data em que pessoas de todo o Brasil comemoram ou protestam, projetando e desejando um país melhor. Um anseio dessa ordem é sempre justo e benéfico. Mas não fico contente quando pessoas se utilizam desse anseio como guarda-chuva ideológico para falar mal do Brasil, como se não vivessem aqui ou não tivessem nenhuma relação com a nação e sua cultura.
Li recentemente alguma coisa sobre a Jante Law, conjunto de princípios que regem as relações humanas em países nórdicos europeus - aqueles que são considerados os mais felizes e tranquilos do mundo. Entre as muitas ideias interessantes que considero válidas para qualquer sociedade, tomei como aforismo uma em especial: "Não pense que você é melhor do que nós". Um pouco de bom senso e de atenção a essa constatação quase elementar sobre a natureza humana seria o suficiente para que muitos brasileiros nos poupassem das coisas estúpidas que dizem sobre meu país.
Eu não consigo mais levar a sério quando as pessoas dizem: no Brasil, nada funciona; os americanos é que são isso; os japoneses ou alemães ou italianos é que são aquilo; e coisas do gênero. Eu não consigo conceber que as pessoas ainda acreditem que corrupção, violência, tráfico ou incivilidade sejam problemas inexistentes nas sociedades que consideram melhores que a nossa. Eu não engulo quem sai do Brasil, fica lá fora um tempão, ganha dinheiro, e fica dizendo que o país não vai pra frente, que não tem vínculo com sua pátria, e coisas do tipo.
Eu nasci neste país, eu cresci nesta cultura, eu falo esta língua, eu aprendi a ser o que sou com estas pessoas. Sou louco pela música brasileira, pela culinária brasileira, pela natureza brasileira. As mulheres do Brasil são lindas, as pessoas do Brasil são acolhedoras, o ritmo do Brasil é cativante. Desejo um dia visitar Nova York, Paris, Cairo, sei lá, tantos lugares!, mas eu ainda serei filho desta experiência aqui, destes valores, desta forma de ver e viver o mundo, com muito orgulho.
Eu não tenho vergonha do meu país. Tem gente que considera o máximo tornar-se europeu ou americano ou construir a vida em outro lugar. Respeito as decisões de cada um, mas tenho convicção de que viver aqui ou em outras bandas implica as mesmas etapas de toda a experiência humana: trabalhar, criar relações, cuidar da família etc. E essas coisas podem dar certo ou não no Brasil ou em qualquer outro canto do planeta. Mas muitas pessoas não entendem assim, e acham que quem conseguiu sair do Brasil tem maior valor ou competência que quem ficou.
Por favor, se você não gosta do Brasil, não fale mal dele. É ridículo. Bem ou mal, foram estas águas e estes ares, e estes pratos de arroz com feijão e farinha, que puseram você em pé antes que sequer sonhasse em alçar outros voos. O Brasil não é o que passa no jornal de televisão, e nem o que a elite pensa do povo que trabalha para ela. Meu país é Minas, Rio, Bahia, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Pará, Ceará, Pernambuco. É gente demais para generalizar de forma tão redutora e mal-intencionada. É mediocridade demais achar que toda essa gente é má, ou inferior, ou ingênua.
O Brasil não deveria ser, para as pessoas, essa concepção vazia, fabricada pela superficialidade e pelo descompromisso ético de parte da sua elite, que dá margem a todo tipo de preenchimento ideológico pejorativo. Conhecer o Brasil deveria significar, para quem insiste em falar mal de nós e de si mesmo, uma forma de conhecer o sangue que corre nas próprias veias e a sustância que orienta o próprio estar no mundo.
Eu não fui a nenhum desfile no 7 de setembro. Mas, ao pensar com carinho e profundidade no Brasil, eu fui fundo no que sou, e o orgulho que senti de me saber parte desta nação vale a empunhadura de uma bandeira, em qualquer parte do mundo, em qualquer momento da vida.

sábado, 6 de agosto de 2011

Desserviço

Ganhei de presente o livro do jornalista Leandro Narloch, Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, e só vou seguir adiante nesta postagem porque sei que quem me presenteou não lê meu blogue.
Sei que é um presente, e foi dado com carinho, porque a pessoa julgava que poderia ser interessante para um professor de História (agora lidando apenas com Português e Filosofia) descobrir novidades e curiosidades relacionadas às novas pesquisas realizadas nos últimos anos.
Li o livro. É um pastiche engraçadinho de trabalhos acadêmicos, contestando certas posições mais consagradas dos historiadores. Lido nessa chave, não fede nem cheira; é uma provocação, nada mais.
O problema é que mais de uma pessoa em mais de uma situação já me deu informações elencadas nesse livro como se fossem o suprassumo da fidedignidade. As pessoas dizem para mim: - Viu, Vinicius, a História dos livros está toda errada. Eu li um livro que conta a verdade sobre blá, blá, blá... e lá vem pérolas do tipo "o Aleijadinho não existiu" ou "Santos Dumont era um palhaço" ou "o Acre deveria ser jogado no lixo", ou "os índios não foram massacrados".
Quando uma provocação, ou pastiche, ou piadinha besta desse nível começa a receber esse status de "coisa séria", passa a ser necessário reagir, antes que as pessoas comecem a acreditar que há mais nesse pastel do que massa e vento.
Então, aviso aos leitores, com toda convicção: existe uma característica inerente a todo o texto cientítico, argumentativo ou dissertativo que sempre deve ser levada em conta na leitura do mesmo. Essa característica é o viés. Se o texto defende uma ideia, não a defende a partir de um lugar neutro, incolor e inodoro de enunciação. Ele a defende a partir de uma formação discursiva dada, de um conjunto de pressupostos e referências que lhe fornece algum corpo de fundamentação. Leandro Narloch não é "politicamente incorreto", como simula em sua descrição do "guia". Ele é conservador e direitista. Seu viés é direitista. Ele está alinhado a Marco Antonio Villa e outros historiadores que fundamentam sua argumentação em uma percepção reacionária e conservadora do mundo. Isso é muito importante esclarecer: o livro de Narloch não é uma mera provocação a alguns, ele é uma provocação à vertente mais progressista e esquerdista do estudo de História.
Até aí, estamos elas por elas, não é verdade? Cada um puxando brasas para sua sardinha, e ficamos na mesma em termos de saber o que realmente ocorreu, não é isso? Seria isso se lidássemos com um historiador de direita. O que eu chamo de historiador nesse caso? Um especialista que é capaz de coligir fatos e documentos a partir de pesquisas realizadas com método, a partir de uma determinada concepção de história e de filosofia da história que pudesse pautar seu trabalho. Narloch não é um historiador, é um jornalista, e isso se revela claramente em seu "guia": não há método nenhum na escolha dos fatos elencados para provar a tese x ou y. O método é a mera retirada de trechos ou frases de obras de autores que, de alguma forma, pudessem validar a lógica dos raciocínios. Narloch não pesquisa fontes, não acrescenta nada às pesquisas já realizadas, nem mesmo se dá ao trabalho saudável e mínimo de redigir um estado da questão ou um levantamento bibliográfico sobre os temas, avaliando a validade e a fidedignidade das fontes utilizadas e justificando as que não foram aproveitadas. O livrinho de Narloch, do ponto de vista da História enquanto ciência, é absolutamente irrelevante. Entretanto, quando apresentado editorialmente sem essas ressalvas fundamentais, passa a ser perigoso. E quando lido descuidadamente, por um público que não tem recursos para avaliar a cientificidade da argumentação que contém, ele se torna, infelizmente, pernicioso.
Se você leu o livro e ficou com a pulga atrás da orelha em certos trechos e em função de certas afirmações, ele terá servido para alguma coisa: para provocar em você a vontade de se aprofundar na temática que suscitou dúvidas. Mas se você estava procurando informação qualificada e julga que a encontrou nessa obra, recomendo a leitura de muitas outras obras de história do Brasil antes de usar qualquer das "descobertas" brilhantes de Narloch numa conversa entre amigos, ou para impressionar incautos. Sem isso, você pode acabar passando vergonha. Por fim, se você não leu o livro e procura novas abordagens e pesquisas sobre a história de seu país, há trocentas obras muito bem fundamentadas, redigidas por pesquisadores qualificados e respeitados no meio acadêmico, e há inúmeras revistas científicas de História que trazem pesquisas em andamento, devidamente respaldadas por uma metodologia e uma orientação científica. Leia esse material, e você entenderá por que escrevi esta postagem sobre uma obra que nem isso merecia.

sábado, 4 de junho de 2011

Relacionamentos amorosos

Se isso ocorre pelo fato de ser eu capricorniano, não sei. Sei que tenho muito forte essa característica do signo de ser reservado no tocante à vida pessoal. Mesmo em rodas de amigos ou com familiares, não falo de conquistas amorosas, nem de perdas. Não falo das pessoas com quem me relaciono. Não falo das minhas preferências. Não toco em assuntos de foro íntimo, a não ser que meus problemas exijam, num grau desesperador de estado físico ou financeiro, ajuda alheia. Não gosto de expor ninguém. E ainda mais: acho que uma das armadilhas da sociedade do espetáculo é que você deixa de poder amar livremente quando passa a ser seguido, vigiado, julgado por sua visibilidade. Para mim, é sempre melhor amar em segredo, viver relacionamentos sem o julgamento apressado, parcial, recalcado e conservador da maioria das pessoas.
Nunca escrevi aqui sobre meus relacionamentos. Tenho o máximo respeito pelas pessoas que, algum dia por algum motivo, entenderam gostar de mim a ponto de compartilhar seu tempo, sua história, sua intimidade. Não tenho o direito de expor suas vidas e aquilo que elas dividiram comigo. Portanto, em que pese o título do texto, continuarei não falando de meus relacionamentos, no que tange à sua concretude histórica, digamos assim. Nas próximas linhas, apenas tentarei desenhar percepções mais abstratas sobre relacionamentos em geral, considerando, evidentemente, minha interiorização das experiências que tive. Alerto que as colocações que farei podem ser chocantes e surpreendentes, e que as pessoas que prezam uma determinada imagem minha de bom moço ou criatura ponderada podem se sentir imensamente frustradas com o que venham a ler.
A primeira colocação que farei parece ter fundo moral, ético, paradigmático, proverbial, mas não é nada disso. É algo que é ridiculamente óbvio, mas que só pode ser verdadeiramente apreendido com o tempo. É o seguinte: ninguém é obrigado a gostar de ninguém. Implicação primeira disso é que ninguém é obrigado a gostar de mim. Evidente, elementar? Creio que sim, mas levei muito tempo para sentir que podia lidar com isso. Sempre foi difícil para um jovem inseguro como eu compreender que as paixões são voláteis, são passageiras, são instáveis, e que as pessoas mudam, como muda a orientação de seus corações. E que isso nada tinha a ver com meu valor enquanto ser humano. Talvez por isso as separações tenham sido, na minha vida, momentos absolutamente devastadores, em que me senti imobilizado e diminuído diante de todos à minha volta. O tempo me ensinou a não procurar justificações, embora de vez em sempre eu me pegue tentando racionalizar, justificar, estabelecer causas e efeitos para acontecimentos que são refratários a essas apreensões tão mentais. Mas creio que a segunda implicação seja a mais difícil de lidar: a de que não sou obrigado a gostar de ninguém. Ou seja: os sentimentos que tenho, em determinados momentos e em determinadas configurações da marcha da vida, por determinadas pessoas, costumam ser muito mais voláteis e indeterminados e surpreendentes que os vínculos que estabeleço a partir desses sentimentos. Isso é terrível para quem tem preocupação com o outro, porque é um espaço em que a ética e a dignidade não comandam. Repare o leitor que não me refiro às ações, mas aos sentimentos propriamente ditos. Acredito que as pessoas devem, sim, honrar seus compromissos. Apenas não acredito que os compromissos, verbais ou legais, possam controlar, abafar ou modificar certos sentimentos, como os que se relacionam ao amor e à paixão amorosa. O resultado interior disso sempre foi um só, no meu caso: culpa. Sensação de pequenez moral. Autopunição. Aceitação passiva das invasões e agressões alheias. Até que foi chegando um tempo em que percebi que não havia nada de exatamente errado com as coisas do coração. Que nada havia de imoral em sentir atração por uma pessoa quando ela, ou eu, vivíamos outra relação. Que nada havia de antiético em amar ou estar apaixonado por pessoas diferentes num mesmo momento da vida. Que nada havia de surpreendente em viver fases numa relação em que não havia amor nem paixão pela pessoa com quem me relacionava, embora ainda houvesse uma respeitável história a dois e uma forte expectativa de superação desse momento. Foi nesse tempo que comecei a entender que o ciúme, a possessividade, as exigências mil de demonstrações de afeto ou consideração, as obrigações "contratuais" dos namoros e casamentos, eram brinquedinhos bobos diante da magnanimidade da vida amorosa de um ser humano.
E isso me levou a mais algumas percepções.
Passei a entender, por exemplo, que não é possível saber tudo sobre uma pessoa. Mais que isso: não é saudável nem inteligente querer saber tudo sobre uma pessoa. As pessoas precisam ter um espaço insondável, surpreendente, permitido, ainda que isso nos custe uma certa insegurança e a sensação de que não podemos controlá-las. Mas a verdade é que não podemos mesmo ter esse controle, e se os sentimentos de uma pessoa apontam numa direção que não queremos, o melhor que podemos fazer é manter uma atitude de respeito e de amizade, e aprender a conviver com isso.
Passei a entender, também, que essa ideia de alma gêmea é uma analogia poética para relacionamentos que são bons e estáveis por muito tempo, mas não é condição obrigatória da felicidade amorosa. Porque tem muita gente boa no mundo. Tem muita gente interessante. Tem muita gente inteligente, brilhante, atraente por muitos motivos. Tem muita gente que nos desperta tesão. Tem muita gente que nos desperta admiração. Pode ser que encontremos, vida afora, alguém com quem nos sentimos tão bem que esse comércio de contatos e sondagens acaba inibido por uma satisfação mais ou menos constante. Mas essa não é a regra. Simplesmente porque essas coisas do coração não têm regra. Então, é possível ser feliz encontrando uma alma gêmea, assim como também é possível ser feliz vivendo diferentes relacionamentos em diferentes períodos da vida, com diferentes graus de satisfação.
Passei a entender, também, que a única coisa que realmente importa nos relacionamentos é o perdão. Se a gente levar a ferro e fogo tudo o que o outro faz, não tem relacionamento. Tem contrato, compromisso, mas ninguém vive contratualmente, as pessoas precisam de liberdade para deixar seus sentimentos fluírem. Então (pense o que quiser, querido leitor, neste ponto, mas é o que sinto, e o que verdadeiramente decidi assumir para mim), não creio mais que faça sentido ter grandes demonstrações de raiva ou frustração ou desespero quando percebo que minha companheira teve alguma atitude menos louvável na sua conduta. As pessoas guardam sentimentos contraditórios que as levam a fazer coisas que não esperávamos. Temos de perdoar isso, se quisermos ter contato com a integridade delas, se é isso que nos apaixona. Temos de perdoar pequenas mentiras. Temos de perdoar certos desequilíbrios emocionais. Temos de tolerar a possibilidade de não sermos únicos no coração de quem amamos. Temos de passar por cima de certas mancadas. Não podemos nos desesperar com as fases em que não estamos sendo atraentes para a pessoa que nos atrai. Tudo isso é parte do jogo da vida, é parte dos relacionamentos. Evidentemente, não dá para viver uma vida baseada na agressão, na mentira e no desrespeito, mas também não podemos achar que não haverá nenhum momento em que isso não venha a acontecer, em alguma medida, no nosso namoro ou no nosso casamento. E, quando isso acontece, temos de ter o preparo e a decência de não julgar o todo pela parte, de não resumir a grandeza que todo ser humano tem a sua condição de falibilidade. Se colocássemos uma lupa no coração de cada um dos mortais, qual deles restaria sem nódoa, sem maldade, sem nenhum resquício de despudor ou oportunismo? Amamos seres humanos, ou idealizações que fazemos deles? É isso: ou se aprende a perdoar, ou o amor e o relacionamento estarão fadados ao descompasso.
É até contraditório falar em perdoar quem não tem, na verdade, culpa, mas fica entendido que se trata de desenvolver uma capacidade de relevar situações, das mais contornáveis às mais delicadas.
Isso tudo implica no seguinte: respeitar as decisões do outro, e respeitar o outro independentemente das decisões. Entender que as obrigações éticas são umas, que as obrigações contratuais são outras, e que as obrigações amorosas não existem, senão não haveria amor. Entender que a única razão legítima para uma pessoa ficar com você é que ela tenha vontade, em seu íntimo, de ficar com você. Entender que ninguém é de ninguém, ainda que tenhamos a vaidade e a presunção de julgar que controlamos os sentimentos alheios. Entender que o casamento é uma escolha, o namoro é uma opção, e o amor não costuma perguntar-nos sobre nossas escolhas e opções: ele invade e fim, como diz Djavan. E que é justamente por causa dessa não-obrigatoriedade, dessa imprevisibilidade do amor, que devemos nos sentir bem com os momentos em que ele está presente, sejam eles poucos ou muitos, permanentes ou impermanentes, longos ou curtos, dentro ou fora dos casamentos e namoros.

sábado, 14 de maio de 2011

Viva a gente diferenciada!

Eu tenho um blogue semi-inativo chamado Ação Direta Inteligente. Nele, posto, de quando em quando, informações sobre protestos e mobilizações que utilizam recursos simbólicos, artísticos e estéticos para expressar as ideias defendidas. Acredito piamente que esse deveria ser o futuro de todas as manifestações políticas na era da informação. Quando aluno da Letras, nossa greve estudantil, usando desses expedientes, alcançou a mídia e a população, foi um sucesso total; quando partimos para o enfrentamento físico tradicional, perdemos força, e a paralisação teve de acabar. Eu vivenciei isso, eu vi, eu testemunhei; não restam dúvidas para mim de que o caminho é a sensibilidade, a inteligência, a criatividade.
Por essa razão, eu não poderia deixar de mencionar aqui neste blogue a imensa alegria que senti ao ver um protesto tão inteligente, sacado e irônico quanto o que aconteceu hoje, bem perto da minha casa. Eu estava totalmente por fora da discussão sobre o metrô, mas hoje, aqui na região, todos só falavam sobre isso. O "Churrascão da Gente Diferenciada" foi genial! Chamou a atenção para a violência simbólica e econômica por meio da ironia e da ocupação pacífica de um dos símbolos da elite não-diferenciada paulistana. Lamento ter sido hoje, justo hoje, que tenho de estudar para uma prova de seleção para pós-graduação na segunda-feira.
Minha posição é bastante simples, e divide-se em dois raciocínios. Primeiro: mais metrô, menos carros, mais acesso para quem trabalha na região. Segundo: administração pública de uma cidade ou de um Estado responde aos interesses da população como um todo, e, se esses interesses entram em conflito com interesses de setores, a decisão deve contemplar o bem público e o que for melhor para o maior número de pessoas possível.
Quanto ao preconceito escancarado, ao favorecimento descarado dos interesses dos ricos, à presunção cínica de naturalizar diferenças sociais e processos de exclusão, tudo isso merece um churrascão mesmo: com ironia, com gozação, com carnaval, com todos os recursos desestabilizadores do conservadorismo que põe as asinhas para fora.

domingo, 1 de maio de 2011

Acerca de uma pergunta numa entrevista pós-jogo

Final do jogo SESI contra Cruzeiro, decisão da Superliga nacional de voleibol. Giovane é o técnico do SESI.
O time do SESI é melhor que o do Cruzeiro, e, embora eu torça para o Cruzeiro, recebo sem maiores dramas a indiscutível conquista do título pelos paulistas, que, ademais, já haviam sido a equipe mais bem colocada na primeira fase. O quarto set é um verdadeiro massacre.
Todos comemoram, se abraçam, repórteres entram em quadra, puxam o Murilo para entrevistar, puxam outros jogadores, puxam o técnico. O repórter se posiciona para as perguntas. Giovane também. O repórter capricha:
- O que é mais emocionante, Giovane, ganhar a Superliga como técnico ou ganhar as Olimpíadas e o Mundial como jogador?
Eu paro. Estupefato. Não é possível que o rapaz perguntou isso. Mas perguntou mesmo. Pela cara que fez o Giovane deu pra ver que ele se atreveu.
E passam milhões de coisas pela minha cabeça.
1) A não ser que eu esteja muito enganado, é preferível ser medalhista das Olimpíadas até como gandula que ganhar a Superliga nacional como jogador. Não há comparação possível. Aliás, comparar isso seria absolutamente ridículo em qualquer outra situação, quanto mais nessa!
2) Se não estou imensamente equivocado, para muitos atletas, tornar-se técnico não é exatamente a primeira opção, mas sim a alternativa de manter-se em atividade quando a carreira declina. E a postura de técnico, inclusive em termos de envolvimento e distanciamento, é absolutamente outra, impossível de ser comparada com a de jogador em atividade.
3) Ou eu estou ficando louco ou era óbvio que Giovane acabara de vencer um campeonato longo e disputado e estava no momento de saborear a conquista. Nessas condições, não seria polido, nem oportuno, nem sequer inteligente perguntar-lhe sobre outro assunto que não se relacionasse à conquista. Na verdade, a pergunta é um absoluto contraclímax do momento emocional vivenciado pelo entrevistado. É como pegar um adolescente dançando numa festa e perguntar o que a mãe dele acharia disso.
4) Imagino que o repórter esperava uma declaração bombástica do tipo: "a emoção é a mesma" ou "a emoção é maior na Superliga". Se ele obtivesse essa resposta, ela seria evidentemente falsa e demagógica, servindo apenas para alimentar polêmica ou fazer uma manchetezinha sensacionalista. E, por outro lado, se ele obtivesse a resposta óbvia, a de que a Olimpíada e o Mundial são muito mais importantes, não teria acrescentado nada à sua entrevista. O que me leva a concluir: a pergunta ou era inútil, ou capciosa.
5) Se a pergunta era inútil ou capciosa, cabe-me perguntar: por que foi feita? Se alguém me disser que fazer perguntas capciosas é importante para o jornalismo, para satisfazer a curiosidade do espectador ou surpreender o entrevistado em algum deslize, eu mudo o questionamento: afinal, para que é o jornalismo, então? Se ele serve só para isso, não é melhor não ter?
6) O Giovane respondeu de uma maneira esperta, brilhante, sagaz. Ele disse que só não estava em quadra porque já não conseguia, caso contrário estaria também. Essa resposta matou a pau. Primeiro, porque mostrou que o repórter comparara situações profissionais incomparáveis (jogador e técnico). Segundo, porque evidenciou que os títulos como jogador são mais importantes (e assim afastou, por eliminação, a necessidade de se posicionar em relação à comparação Superliga versus Olimpíada). Terceiro, porque retomou o foco na comemoração daquele título, conquistado naquele dia. Quarto, porque, desmontou a estratégia capciosa do repórter. Quinto, porque, de certa forma, ao não recuperar os termos da pergunta, a resposta explicita que aquela foi mal feita, ou nem deveria ser feita.
7) Eu estou estudando Linguística esses dias, e, ainda com essa cena impressionante na cabeça, deparei com dois trechos de textos teóricos que me ajudaram a compreender minha indignação. O primeiro é sobre a circulação do dizer na sociedade. É assim:

"(..) em estudos recentes, tem havido a preocupação de mostrar que a comunicação rompe muitas vezes o caráter intimista de um diálogo entre o eu e o tu, aqui e agora. Nesses casos, rompe-se o dialogismo mais estreito e alarga-se a circulação do dizer na sociedade. (...)
No caso das entrevistas, na televisão ou na imprensa escrita, estabelecem-se três relações de comunicação: entre o entrevistador e o entrevistado, entre o entrevistador e o público, entre o entrevistado e o público. Em outras palavras, a relação entre o entrevistador e o entrevistado, que é a única explicitada nessa comunicação 'alargada', dependerá (...) das relações dos interlocutores com o público. Na verdade, a comunicação com o público é o objetivo primeiro da comunicação entre entrevistador e entrevistado" (FIORIN, José Luiz (org.), Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2010, p. 46).

Para mim, tudo ficou muito claro. O entrevistador, querendo empatia do público ou aprovação por uma atuação mais incisiva, fez a pergunta com objetivo de colocar Giovane nas cordas. Giovane, que sabe que é pessoa pública, que tem um público específico de aficcionados por ele, pelo vôlei ou pelo SESI, saiu das cordas com destreza e deixou claro, não para o repórter, mas para a audiência, que entendeu a armadilha e que não cairia nela.
Mas o público não é uma entidade passível de ser completamente conhecida. Na verdade, é uma entidade um tanto quanto abstrata. O público não é o índice do IBOPE, é algo complexo, variado, de difícil definição e apreensão. Quem lida com essa entidade tão complicada de conceituar tem de ter um norte, uma base, um fundamento. Na falta deste, vem à tona uma espécie de generalização, meio simplificadora, meio redutora, do que seriam os interesses da audiência. Essa imagem (considerada em sua complexidade ou simplicadora e generalizante) é o que, em Greimas, define-se como simulacro, ou seja, "representações das competências respectivas que se atribuem reciprocamente os participantes da comunicação e que intervêm como algo prévio, necessário a qualquer relação intersubjetiva" (FIORIN, José Luiz (org.), Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2010, p. 46). O repórter forma mentalmente um simulacro do espectador, e isso guia a formulação de sua pergunta. O simulacro, nesse caso, é uma imagem negativa, aética, de mediocridade, como se o público estivesse ali para cutucar Giovane, e não para compartilhar a alegria da conquista. O entrevistado também trabalha com um simulacro de seu público, bem mais positivo. Ele entende que não é oportuno fazer comparações com outras conquistas, e, ao mesmo tempo, que é necessário ser polido e reencaminhar a entrevista que está sendo realizada, em respeito a quem o acompanha pela televisão.
Eu não trabalharia com uma imagem negativa de público, se fosse o entrevistador. Ou seja: eu não teria feito aquela pergunta. Por outro lado, se há orientação explícita ou implícita dentro do jornalismo para uma atuação tão desrespeitosa em relação ao espectador, quase o chamando de idiota, eu fico achando que algo no jornalismo se perdeu. E se essa orientação estiver correta em sua construção do simulacro da audiência, só me resta rezar.

terça-feira, 8 de março de 2011

As perguntas certas

Às vezes eu aparecia em casa com uma novidade amorosa, e as pessoas, como bem se sabe, logo espalhavam aos quatro ventos. Eu era tímido e sensível, e, por consequência, muito recatado em relação aos meus relacionamentos. Meus amigos não eram nada disso. Fazia parte da masculinidade falar e falar e falar, e contar vantagens tanto quanto possível. Então, pode-se imaginar o rol de perguntas que eram constantes nessas situações:

- E aí, já comeu?
- Ela é gostosa?
- Ela tem um bundão? Ela tem peitão?
- Ela faz de tudo?
- Ela tem ciúme de você?
- Ela se veste bem?
- A família dela aceitou normalmente? A família dela é liberal?
- Ela tem grana?


E outras afins, que durante algum tempo acreditei serem uma forma razoável de medir as aspirações em relação a uma garota.
Acreditei, mas no fundo nunca aceitei. Algum anjo torto me fez diferente, e a verdade é que nunca me fizeram as perguntas certas, que não eram essas. As perguntas certas, que ninguém me faria, eram as que eu, no fundo, me fazia todas as vezes, porque nunca gostei realmente de "garotas", e sim de mulheres. Eu queria que me perguntassem:

- Como ela trata você? Como um namorado, um bibelô, ou um ser humano, digno de elogios e broncas?
- Ela se dispõe a dividir coisas, opiniões, a conceder, a ser razoável?
- Ela trabalha em algo admirável, construtivo, bacana? Ela defende causas nobres, luta por pessoas indefesas, protege seus familiares e dependentes?
- Ela acredita em seu próprio potencial como pessoa, e em sua personalidade, mais que em sua imagem pública, para ser atraente?
- Ela é carinhosa? Ela aceita que você seja carinhoso?
- Ela compreende quando você chora, e sabe acalmar quando você se enerva?
- Quando ela quer alguma coisa, ela vai atrás, ou fica esperando você descobrir que ela quer?
- Quando ela gostou de você, ela teve a firmeza de assumir isso sem joguinhos?
- O que ela faria se você não manifestasse interesse a princípio? Desisitiria, ou insistiria?
- O que ela faria se não tivesse interesse em princípio? Esnobaria, ou seria clara, sincera e, ainda assim, delicada?
- Você sente que poderia perdoá-la por qualquer coisa que ela fizesse, sem ressentimentos?
- Você deixaria de fazer algo muito estimulante para não magoá-la, não porque sinta que ela descobriria, mas porque sente que ela não merece?
- Ela é capaz de encarar fases ruins? De manter um laço de ternura e respeito com você mesmo quando o sexo, o stress cotidiano e a rotina tornaram-se problemas?
Por fim, a maior perguntas de todas: - Você teria vontade de ter filhos com essa mulher?


Não, ninguém entenderia isso. E ninguém entenderia que essas perguntas não implicavam, em nenhum momento, um vínculo institucional, como o casamento, ou sequer a busca disso. Porque o amor, a admiração, a percepção de que alguém é especial, independe da sorte de ter essa pessoa a seu lado. Uma grande mulher não precisa gostar de você, ela só precisa ser o que é, com integridade. Se eu tivesse levado a sério as perguntas certas; ou melhor, se eu simplesmente tivesse conseguido formulá-las conciente e explicitamente, teria sido muito mais homem, e muito mais digno das mulheres que me amaram e que eu amei no decorrer da minha vida. Hoje, arrogo-me a intenção de transformar esse "se" em "sim", manter-me amando apesar de meus erros, e ser digno do amor de quem sempre esteve ao meu lado.
Hoje é o Dia Internacional da Mulher, e eu gostaria de deixar claro, nesta postagem, o quanto admiro, amo e respeito as mulheres de minha vida (minha esposa, minha mãe, minha irmã, minha sobrinha), as mulheres que conviveram comigo e as mulheres em sua generalidade, para além dos meus interesses imediatos ou da função que o mundo - ainda machista - lhes atribuiu.

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Homenagem mais bela e tocante é a do meu amigo Flávio Mello, nesta indefectível postagem.
Vale conferir.

domingo, 6 de março de 2011

Cuidar de mim

Venho cumprindo rigorosamente uma das decisões de ano novo que estariam, noutros tempos, fadadas ao esquecimento: cuidar da minha saúde.
Em anos anteriores, minha insaciável necessidade de aprovação externa fez com que eu tentasse abraçar o mundo com as pernas, e todos sabem que o preço disso costuma ser dramaticamente alto.
Resolvi, então, mudar de rumo. Venho me alimentando melhor, evitando trash food e investindo em refeições no lugar de lanches.
Venho frequentando com assiduidade a academia de musculação, sem pressa de resultados, porque não tenho mais 20 anos, e porque sei que minhas belezas vêm de fontes diversas, às vezes invisíveis.
Tratei de fazer alguns exames preventivos de problemas que volta e meia reaparecem. O primeiro resultado foi animador: não tenho mais cálculos renais a eliminar, o que mostra que o novo hábito de beber líquidos constantemente deu resultado. O segundo foi engraçado: pensei que tinha um monte de verrugas novas, mas na verdade são erupções de pele que aparecem em pessoas que engordam muito (o médico precisava ser tão claro? ;-)). Nada que um tratamentozinho não resolva, ainda que implique em dez dias sem perder calorias na esteira, já que a área envolvida localiza-se entre as coxas. (Aproveito esse tempinho que sobrou para atualizar o blogue.)
Decidi, também, não fazer nenhuma loucura profissional. Limitei as aulas noturnas a três dias por semana, vou fazer os estágios que devo na Uninove na medida do possível e vou me permitir cortar ou adiar tudo o que interferir diretamente em minha saúde.
Esses dias, alguém me disse algo bacana. Disse que ter quarenta anos hoje equivale a ter vinte em outros tempos, porque as pessoas chegam mais inteiras a esse período da vida, e podem, com a estabilidade profissional, empreender iniciativas até então podadas pela falta de dinheiro ou por outras urgências. Gostei muito desse raciocínio. Caiu como uma luva neste que vos escreve, que vai publicar um tão sonhado livro nos próximos meses e planeja construir, finalmente, um trabalho musical consistentemente produzido.
Eliminadas as pressões da busca do sucesso a qualquer preço, da insegurança em relação aos próprios potenciais, da necessidade de aprovação social explícita, da instabilidade emocional interior da juventude, parece que tudo começa a se encaixar na mente da gente, e os passos são menores, mas mais firmes e calculados. O saber acumulado, a saúde física, a confiança na capacidade profissional e o autoconhecimento somam-se, formando um todo maior que as partes. Tenho vontade de fazer muitas coisas boas, não somente porque sejam boas para mim, mas também porque são boas em si mesmas. Posso aturar fases mais difíceis e tarefas menos gloriosas, porque não preciso mais brigar com o que a vida me oferece. Enfim, quero estar melhor comigo mesmo, e romper em definitivo os contratos com as expectativas dos que não sabem quem realmente sou.
Tenho o compromisso de terminar 2011 inteiro, por dentro e por fora. Já consegui a sexta parte disso. E foi muito bom.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Tempestades

Na minha religião, as tempestades são respeitadas. Quando os primeiros estrondos surgem depois do céu escurecido, preparo-me para um recolhimento espiritual. Desligo todos os aparelhos eletrônicos, todas as lâmpadas, todas as invenções humanas que utilizam eletricidade. Bem sei que a ousadia de mantê-las ligadas pode ser punida com a raiva divina, capaz de ceifar suas vidas úteis de forma definitiva. Dentro de mim, desligo também uma série de coisas. O choque constante e violento da água contra as janelas fechadas deve ser ouvido com atenção, em tudo o que tem a dizer. Os raios e os trovões merecem ser observados e ouvidos, mas sem que percebam. O medo de ser atingido deve levar a uma imobilidade física catártica. Só é possível sentir os arrepios de susto depois dos relâmpagos se nos mantivermos silenciosamente atentos, deitados ou sentados, desprovidos de qualquer intenção posterior (seja sair, lavar louça, ler, ver televisão) ou incômodo anterior (seja culpa, ansiedade, raiva, tédio). É preciso abandonar a mente ao temor primitivo de nossos ancentrais nas cavernas. É preciso pensar que nossos escudos de proteção (o teto, as paredes, os para-raios) poderiam, como todas as criações da espécie humana, falhar diante da perene demonstração de força dos elementos. Só quem compreende misticamente o sentido da tempestade é capaz de beber desse estranho e belo medo entranhado no inconsciente coletivo, poderoso como o que sentimos ao imaginar os piores vilões, os maiores heróis, e os deuses em fúria.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Trote

Quando era criança e meus amigos me chamavam para jogar bola, bolinha de gude ou taco na rua, não foram raras as vezes em que preferi ficar em casa, isolado de todos, lendo. Para algumas coisas, acho que sempre fui uma alma velha; a idade madura, na verdade, não foi mais que o reconhecimento de uma identidade que, por vezes, neguei.
Talvez seja essa falta de espírito de adolescente a grande razão de meus fracassos na juventude e minhas conquistas na maturidade. Mas isso é questão para uma postagem mais longa. O que me importa, aqui, é revelar como essa tendência`prematura à seriedade e ao comedimento sempre me impediu de dar aval a um dos ritos de passagem de nossa sociedade.
Critiquem-me, discordem, vituperem, riam de mim, pouco importa. Serei sincero: sempre achei o trote uma babaquice. Nunca entendi, nunca vi graça, nunca quis fazer com os outros. Para mim, a única coisa que ele representava era a possibilidade de exercitar preponderância física e psicológica sobre um grupo de novatos, e, não raro, de descarregar instintos mais violentos. Talvez eu tenha me divertido com uma ou outra situação, mas aquilo nunca foi importante para mim.
Fui "trotado" três vezes: quando entrei na escola técnica, quando entrei na Filosofia da USP e quando retornei à USP para fazer Letras. A terceira não conta, porque os veteranos praticamente nada fizeram comigo, visto que eu tinha mais tempo de Universidade que a maioria deles e aquilo não era exatamente um ingresso para mim. Mas eles pintaram meu braço, numa estúpida concessão que fiz, apenas para parecer menos antipático. A segunda foi estimulada por uma ex-namorada, que me levou aos veteranos de Filosofia e Sociais. Fui para casa todo pintado, para não ter de contrariá-la e parecer menos ranzinza do que sou; outra vez, fui bobo. O primeiro trote era bem mais violento e invasivo. Além de me pintarem, jogaram um creme(?) metálico no meu rosto, que causou irritação na pele por alguns dias. Dessas experiências, que vivi de forma submissa e passiva, não tirei nada, nem em termos de integração com os veteranos, nem em termos de satisfação pessoal por participar da brincadeira.
Sou muito chato, admito. Não bebo, sou tímido e abomino atitudes invasivas e ameaças. Para mim, trote não serve para nada, só para encher o saco, e me deixar com raiva por não ter enfrentado com coragem a intimidação que sofri. Mas esta não é uma posição apenas em relação à minha vivência de trotes. Eu não vejo graça neles em absoluto. Hoje, vi trotes sendo aplicados na USP, no Mackenzie (em frente à minha casa) e no caminho do ônibus que tomei à tarde. A mesma coisa de sempre. Calouros intimidados, alguns poucos se divertindo, voltando para casa cobertos de tinta e sem descobrir nada de novo, produtivo ou interessante sobre a graduação em que acabavam de ingressar. Veteranos usando os mais novos como marionetes de espetáculos cretinos e constrangedores. Honestamente, fiquei chateado com aquilo. Vinte anos de universidade e as pessoas ainda não conseguiram criar uma recepção que não passe por essas brincadeiras surradas.
Respeito as pessoas que gostam do trote e entendem que ele representa uma perspectiva de integração e uma forma de tornar marcante o primeiro contato de um estudante com sua nova casa. Sinceramente, acho que há muitas experiências que são positivas em relação a isso, e conheço gente que gostou de levar trote e gosta de aplicá-lo. Mas isso depende de uma certa disposição de espírito para a novidade e uma certa tolerância com a brincadeira que, definitivamente, não possuo e nunca possuí. E respeitar a posição alheia não significa concordar com ela.
Eu passei pelos meninos hoje com vontade de ter em mãos um pano ou guardanapo qualquer e uma garrafa com água, para ajudá-los a limpar a sujeira que ficou sobre seus corpos. Pensei que, se fosse uma pessoa corajosa, sabotaria o trote da FFLCH oferecendo condições para os calouros se limparem e voltarem para casa com a aparência que quisessem voltar. Como não tenho essa coragem toda, limito-me a manifestar minhas discordâncias neste espaço protegido da internete. Mas, pelo menos, tenho coragem de admitir que sou um careta conservador em relação a recepções de calouros. E que, se nunca consegui relativizar essa opinião, foi simplesmente porque nunca quis, e nunca ninguém me convenceu a querer.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Torcer, acompanhar, apreciar

Dividi algumas opiniões no Facebook com um amigo meu sobre o Australian Open. O mais bacana desse nosso diálogo internético foi que ninguém ficou agitado, defendendo um ou outro atleta, fazendo bravata ou exagerando observações. Parece-me que ambos queríamos ver bom tênis, esporte bem praticado, jogadas disputadas, enfim, algo que valesse a pena curtir na madrugada.
Eu fiquei pensando comigo mesmo, depois, se não seria esse o jeito certo de torcer. Então concluí que não se trata de certo e de errado, não se pode predeterminar como as pessoas devem "sentir" um espetáculo esportivo. Trata-se, na verdade, de entender as formas de envolvimento do espectador.
Acho que a própria palavra "espectador" no lugar de "torcedor" já antecipa um pouco meu raciocínio. É que eu acredito que algumas pessoas, quando estão vendo futebol, vôlei, F1, basquete, hóquei, etc., torcem, ou seja, escolhem um lado e vibram com jogadas que beneficiam o lado escolhido e com jogadas que prejudicam o adversário. Esse comportamento é característico do torcedor fanático, das torcidas organizadas, do sujeito que "veste a camisa", simbolicamente ou literalmente. Há gradações, evidentemente, que vão do cara que não usa uma camiseta verde por ser corintiano até o sujeito que nem torce tanto assim e quando vê que seu time está perdendo, já se desinteressa. Mas acho que é possível identificar o comportamento geral do torcedor como de um espectador que tem alterações emocionais mais fortes conforme seu time/atleta de coração aproxime-se ou distancie-se da vitória.
Nem todo mundo é assim. Existem também pessoas que gostam de um clube, de um atleta, de uma equipe ou seleção, mas não consideram importante nem prazeroso ter reações emocionais fortes. Torcem para o Corinthians, o São Paulo, o Flamengo, o Santos, o Cruzeiro, mas não vestem camisetas do clube, não compram chaveirinhos, não sabem quais são as chances de título, não se inscrevem no tuíter, nem nada. Essas pessoas não se enquadram no comportamento anterior. Elas acompanham um jogo de futebol ou vôlei ou basquete até onde têm paciência e consideram produtivo, mas podem perfeitamente ser interrompidas por telefonemas e chamados, ou simplesmente ir fazer outra coisa.
No mesmo balaio desses "torcedores mornos", eu incluiria aquelas pessoas que não têm uma equipe de coração específica, ou um atleta que admirem em especial. Comportam-se como o gremista assistindo a um jogo da terceira divisão de Pernambuco: apenas observam o que está acontecendo, gostam de uma ou outra jogada, pegam no sono quando a coisa está muito feia. Não assistem ao espetáculo esportivo para torcer para um lado, mas sim para acompanhar alguma narrativa que faz algum sentido no meio do vazio do não-fazer-nada (mais ou menos como os que veem os capítulos intermediários e sem peripécias de novelas e seriados). Esse comportamento geral eu classificaria como o do "acompanhador": ele segue a narrativa do jogo, do desempenho da equipe, das conquistas/derrotas de um atleta, mas isso não o mobiliza emocionalmente a ponto de colocá-lo em estado de tensão, ou de fazê-lo vibrar emocionalmente fora do que lhe é comum.
Por fim, acho que há um terceiro comportamento geral em relação a espetáculos esportivos. Esse comportamento pode aparecer tanto no torcedor como no "acompanhador", mas precisa de uma brecha: no caso do primeiro, precisa de menos fanatismo e envolvimento emocional; no caso do segundo, precisa de mais investimento de atenção e maior atribuição de importância ao espetáculo. Trata-se da apreciação (apreciar é, etimologicamente, "colocar preço em", ou seja, atribuir valor a), forma de se relacionar com o acontecimento esportivo que implica reconhecimento de aspectos estéticos e poéticos no desenvolvimento do mesmo.
Apreciar um jogo de futebol é diferente de torcer. Quando simplesmente torcemos, podemos odiar Zidane, porque seus gols nos derrubaram numa final de Copa do Mundo. Quando apreciamos um jogo de futebol, somos obrigados a reconhecer a beleza e o talento de Zidane, mesmo que ele vista a camisa adversária. Assim também ocorre em outros esportes. Podemos torcer para a Rússia, mas temos de aplaudir o Dream Team. Podemos torcer para Ben Johnson, mas não é possível aplaudi-lo por vencer dopado. Quando apreciamos um espetáculo esportivo (e é por isso que gosto de usar a noção de "espetáculo"), é porque valorizamos a história daquele esporte, a competição dentro das regras, a inteligência de procurar estratégias, o empenho de se dedicar até o último momento, a decência de proporcionar a quem pagou ingresso ou faz parte da plateia eletrônica civilidade e respeito em relação ao adversário.
Apreciar também é diferente de meramente acompanhar. Quem meramente acompanha, cria uma certa distância do espetáculo, perde determinadas concentração e capacidade de observação que são próprias de quem está envolvido com o que vê. Podemos acompanhar o Brasil na Copa do Mundo por n razões, mas, se realmente apreciamos o futebol como espetáculo, não nos desinteressamos imediatamente após a eliminação. Ainda persistimos como espectadores para ver gols bonitos, jogadas empolgantes, nós táticos. E principalmente para ver talento, venha de onde vier (Messi, Cristiano Ronaldo, Zidane, Maradona..).
Creio que a apreciação, como é menos irracional que a torcida, não seja tão conveniente à forma como o esporte, em geral, é vendido na sociedade do espetáculo. A apreciação não fideliza o cliente em relação à marca. O cliente torna-se questionador: "sou corintiano, mas o futebol que meu time joga não vale pagar 500 reais num ingresso"; "gosto do tênis do Murray, mas Djoko mereceu vencer"; "o nado de Ian Thorpe é mais bonito que o de Phelps, mesmo que este último seja realmente invencível"; "ganhamos a Copa do Mundo em 94, mas o futebol da seleção de 82 era mais vistoso". E o cliente questionador quer qualidade, não preenchimento de suas angústias emocionais. Talvez seja por isso que nunca me dei bem com o estilo Galvão Bueno de narrar, nem com a obrigação de entregar-se de corpo e alma a um time só (comprei, por achar bonitas e coloridas, camisas de vários times diferentes de futebol), nem com a falta de educação de algumas hordas estúpidas que agridem verbalmente ou fisicamente os atletas, e muito menos com a transformação do esporte em palco alegórico de disputas políticas e babaquices nacionalistas. Talvez seja por isso que eu e meu amigo pudemos comentar, com equilíbrio e bom humor, tantos jogos bonitos, que vimos por serem bonitos, acima de tudo.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

É preciso ler racionalmente as tragédias

Venho acompanhando pela televisão e pela internete a terrível situação das cidades serranas do Rio de Janeiro, de vários bairros da minha cidade, e de várias localidades pelo Brasil afora que sofreram com as chuvas de janeiro. O que tenho visto e ouvido é sempre muito triste, porque as perdas humanas e materiais foram muito grandes.
Nesses momentos em que vemos pessoas perderem seus entes queridos, suas casas, seus pertences, ficamos com um sentimento de injustiça, de comiseração, pensando que as coisas poderiam e deveriam ser diferentes. Isso é natural do ser humano de bom coração, que desenvolve uma das emoções mais fundamentais para a sobrevivência social de nossa espécie, que é a compaixão.
Mas este momento é muito delicado, e a compaixão precisa se transformar em ação efetiva. E quando as emoções precisam se transformar em ações efetivas, entra o elemento racional, para organizar e tornar produtivos os investimentos de energia que estamos dispostos a empregar para minimizar esse tipo de tragédia.
Nesse momento de racionalidade, de tentativa de entendimento, de utilização da inteligência do homem para o bem do próximo, não podemos deixar que as emoções travem a lucidez, porque isso só pioraria a situação. É preciso que a compreensão dos fenômenos que causaram essas tragédias seja lúcida, transparente, minimamente desapaixonada. E o que me preocupa é que não tem havido discussão lúcida na mídia, que é a principal fonte de informação e orientação sobre os acontecimentos que se sucederam.
O que tenho visto na mídia é a substituição da lucidez por uma indignação seletiva, quando não pela simples histeria de procurar culpados pelas desgraças. Qualquer pessoa de bom senso entende que apontar culpados não contribui. Apontar culpados pode funcionar como um fator de alívio para as pessoas indignadas e chateadas com o que aconteceu; os bodes expiatórios sempre têm uma função de catalisadores da raiva e agressividade coletivas. Entretanto, obviamente acaba se tornando uma forma de compreender menos, de entender mal. Canalisar agressividade nada tem a ver com analisar racionalmente um problema e procurar paliativos, soluções e medidas eficientes.
Uma tragédia não começa no dia em que cai sobre tudo a sua volta. Ela é resultado de anos e anos de erros, de imperfeições, de problemas, que criam uma situação perigosa. Essa iminência do perigo alia-se a circunstâncias desfavoráveis em determinados momentos, e aí é que explodem os problemas graves. Mas é preciso que fique claro que uma destruição de tal extensão NÃO PODE SER OBRA DE UM ÚNICO FATOR ISOLADO. Ou são considerados os diversos fatores que levaram ao problema, ou o problema nunca será sanado nem minimizado. Quando as pessoas insistem em apontar para um fator isolado, por questões morais, políticas, ideológicas, elas estão, na verdade, atrapalhando a busca de soluções.
Vejo e ouço pessoas falarem das responsabilidades dos governos federal, estadual, municipal. Ok. É um fator a se observar. MAS NÃO É O ÚNICO. Não se resolvem problemas de infraestrutura das cidades apenas com investimentos em prevenção de tragédias, e isso por vários motivos. Em primeiro lugar, porque não é uma questão de quantidade de dinheiro investido em um período específico, mas de projeto a longo prazo, focando exatamente o problema a ser solucionado. Em segundo lugar, porque não é possível prever com toda essa exatidão qual seria exatamente o problema a ser solucionado; há certa imprevisibilidade nas tragédias naturais, que podemos minimizar com a tecnologia, mas ainda não conseguimos, nem nos países mais avançados do mundo, eliminar por completo. Em terceiro lugar, porque mesmo os investimentos em prevenção de tragédias são paliativos num contexto mundial de mudança climática constante e grandes alterações regionais. Em quarto lugar, porque há problemas estruturais que são mais profundos. São Paulo, minha cidade, é um exemplo disso. As enchentes continuarão infelizmente acontecendo por muito tempo, seja qual for o investimento do Estado ou da Prefeitura, porque a cidade foi construída de forma desordenada, sem um plano que previsse situações como as que temos vivido. Não se pode dizer que uma ou outra administração específica, ou mesmo que o Estado apenas, sejam culpados de um fenômeno cultural complexo, a saber, a ocupação anárquica da área e o crescimento sem planejamento da metrópole. Por fim, algo que é óbvio, embora o óbvio pareça às vezes uma ofensa a certas inteligências: soa completamente absurdo pensar que qualquer governante queira que essas tragédias aconteçam, ou que não queira evitá-las. Há erros, há opções discutíveis, mas não dá para imaginar uma insensibilidade tão monstruosa por parte dos nossos representantes de, intencionalmente, deixarem acontecer as perdas que vêm acontecendo.
Vejo e ouço pessoas falarem sobre a responsabilidade dos próprios habitantes que moram nas áreas alagadas. Ok. É outro fator a se observar. Ressalva-se, apenas, que é preciso verificar se foram somente residências em áreas consideradas de risco que foram atingidas, ou se os problemas foram tão graves que atingiram locais impensáveis. Mas, voltando às áreas perigosas, é certo que construir uma casa numa região de risco é, de certa forma, assumir esse risco para si e para a própria família. Mas a questão não se resolve assim, apontando as pessoas como algozes de si mesmas. Ao que me conste, ninguém quer morrer, nem perder suas pessoas amadas. É preciso saber por que as pessoas estavam nessa condição de risco. Será que todos têm alternativas? Será que todos têm informação, orientação? Será que as desocupações necessárias para salvar a vida de muitos foram barradas por serem inconvenientes politicamente? Será que os técnicos encarregados de liberar as autorizações para as construções foram profissionalmente corretos? Será que os projetos de tirar as famílias das áreas perigosas não feririam interesses econômicos de empresas, especuladores imobiliários, e até das próprias famílias? Todos esses são fatores a se considerar, antes que se aponte para a vítima como ÚNICO CULPADO de sua queda. E mesmo que se constate que houve imprudência por parte da vítima, isso nos impede, enquanto seres de mesma condição humana, de querer ajúdá-la, orientá-la, zelar por seu bem-estar? Isso nos desobriga de repensarmos as condições em que tudo aconteceu? Isso nos oferece justificativa para não nos comovermos com a situação em que as pessoas ficaram? (Sempre lembrando que é preciso saber se só pessoas em áreas consideradas de risco foram atingidas, ou se a extensão das perdas atingiu também quem estava em locais até então considerados seguros).
E há muitas outras coisas a se considerar. Há que se considerar até que ponto as mudanças climáticas que vivenciamos não são responsabilidade da humanidade como um todo, por suas opções antiecológicas. Há que se considerar a ação individual ética de cada um, ou seja, até que ponto o lixo que o indivíduo joga no bueiro achando que nada vai acontecer não se transforma em uma parte do problema mais amplo, ainda que seja uma pequena parte. Há que se considerar se o estilo de vida das pessoas, que é suicida em vários aspectos, como no trato da própria saúde, não precisa se tornar mais respeitoso em relação aos riscos em que são colocadas as próprias pessoas e as que as rodeiam: até que ponto vale a pena economizar para ter celular, roupa bonita, carro, e colocar em risco a própria integridade física - seja por tragédias naturais, ou tiroteios, ou mesmo por desatenção em relação a outros aspectos práticos da vida?
Sem considerar com muito cuidado, com muita lucidez, com muito carinho, todos esses fatores, e sem avaliar como cada um deles poderia ser minimizado para que novas tragédias não venham a acontecer, não chegaremos a nenhuma conclusão produtiva. O que teremos é demagogia, histeria, sensacionalismo.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

As subcelebridades e o nada

Numa entrevista com o professor Maurício Tavares, da UFBA, vi cunhada a expressão subcelebridade.
Adorei.
Há tempos venho me perguntando qual o interesse que certas figuras despertam na mídia, e o porquê desse interesse. Lança-se um cantor ou uma cantora qualquer, e ele rapidamente é alçado ao estrelato, ganha manchetes, factóides, destaque, enfim, um enorme espaço nos veículos de comunicação. Um espaço que é caro, que é importante, que influencia cabeças e que tem um significado coletivo muito arraigado na população.
Pois é, aí você vê o trabalho desse cantor ou cantora, e não consegue identificar nada de aproveitável. Você pesquisa sobre a vida desse cantor ou cantora, e não encontra nada: ou ele ainda nem viveu direito, ou sua experiência em nada difere dos milhares de outros na mesma profissão. Você lê entrevistas ou testemunha aparições televisivas desse cantor ou cantora e continua na mesma: nada acrescenta, nada traz de novo, nada traz de interessante, positivo, edificante ou mesmo contestador. Por fim, você fica como eu, se perguntando o que é que as pessoas viram nessa figura.
E assim acontece com cantores, cantoras, atores, atrizes, apresentadores, apresentadoras, modelos, artistas de todo o tipo.
E o que é pior é que isso começa a acontecer com pessoas que não têm nenhum trabalho, nada a apresentar, nenhum talento. Não cantam, não atuam, não sabem nada em profundidade, não apresentam ideias novas nem trabalhos artísticos consistentes. E ganham uma parcela do espaço midiático.
E o que é pior ainda é que essas pessoas sem nenhum talento se metem a cantar, atuar, apresentar-se. E por quê? Porque a mídia apostou durante anos em cantores, atores, apresentadores sem talento nenhum. Então é possível nivelar-se a essas celebridades midiáticas atuais partindo do zero, porque elas praticamente nunca saíram do zero. É óbvio que ninguém aqui está falando de cantoras de verdade, como Maria Rita, por exemplo. Mas a Maria Rita não é o que é por ser celebridade, porque NÃO PRECISA SÊ-LO SE NÃO QUISER, porque não depende disso.
Mas há uma situação ainda pior, ainda mais tosca e vergonhosa para nossa sociedade, que é quando algumas pessoas que não têm nenhum talento ganham espaço na mídia, esse espaço tão importante na formação dos jovens, para exibir exatamente seu vazio, sua falta de talento, seu "nada" pessoal. Ou seja, quando a pessoa vira celebridade porque é burra, porque é incapaz, porque é bizarra. Chegamos ao cúmulo de vibrar com a falta de talento, a estupidez e a incapacidade.
Mas talvez haja algo ainda pior, que não merece muito comentário, que é quando uma pessoa que não representa nem acrescenta nada ganha esse espaço da mídia fazendo... nada. Os fotógrafos esmeram-se em tirar fotos da pessoa fazendo... nada. As revistas trazem manchetes sobre a pessoa fazendo... nada. Você lê uma chamada na internet, ou um anúncio numa coluna de revista de jornal sobre a pessoa fazendo... nada.
É claro que surgem milhões de pessoas que decidem, de uma hora para outra, que, se não é preciso fazer nada para ganhar dinheiro e ser reconhecido, elas também podem. E essas pessoas aceitam qualquer coisa que se lhes dê, aceitam fazer qualquer papel, aceitam qualquer enrascada ou armadilha para conseguirem atingir esse nível ideal de inutilidade premiada. Isso só pode ter um nome, que o Maurício Tavares usa muito bem: subcelebridade.
É claro, também, que figuras como essas dependem muito mais do investimento midiático, da compra de espaços de aparição pública, das mentiras criadas em torno de sua vida, que da produção de algo com qualquer valor social ou estético.
Mas, voltando ao segundo parágrafo, eu me pergunto: esse espaço da mídia, que é caro, importante, influencia cabeças, tem um significado coletivo; esse espaço que guia, manipula e pauta a opinião pública; esse espaço que tem função educativa, política, ética; esse espaço pode ser ocupado pelo nada?