quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
Treze vozes
Nesta postagem, prestarei uma homenagem a pessoas cuja voz me fascina e delicia. A maioria é de grandes intérpretes, mas não é exatamente isso que avalio aqui. Não listarei pessoas que me deixam boquiaberto pela emoção ou pela apurada técnica da interpretação, mas aquelas que me levam a pensar "como é bom ouvir essa voz" ou "poderia ouvir esse pássaro por mais cem anos". Mesmo que cantem canções pouco marcantes ou errem nas escolhas de intensidade e dinâmica, essas pessoas que homenageio contam o perdão incondicional dos meus sentidos, porque têm uma magia física no canto capaz de me capturar na primeira audição.
São elas:
Jon Anderson - Acho que ele tem o timbre de voz mais gostoso de ouvir que conheço. Canta agudo sem fazer esforço, com docilidade, com leveza. O Yes é um com ele, e nenhum sem ele, e os fãs sabem que é verdade.
Mercedes Sosa - Voz poderosa, encorpada, impactante. Difícil igualá-la porque sua interpretação sabe explorar as características de voz tão únicas que ela tem. Aliás, nunca vi ninguém imitando-a, nem para copiá-la, nem para caricaturá-la. Pena que se foi sem eu ter podido vê-la ao vivo.
Marina - Timbre mais sexy que conheço. Como ela canta mais grave e com menos intensidade, meio que insinuando as frases, a voz cai como uma luva em canções com mensagens sensuais. Atualmente, decaiu muito, por complicações nas cordas vocais, mas ainda guarda certo charme.
Karen Carpenter - Voz feminina impressionante, com belo grave e alcance notável. Excelente para as canções de amor, mas creio que talhada para qualquer tipo de música, se assim o desejasse.
Milton Nascimento - Extraordinária manutenção do timbre aveludado do grave ao falsete. Ninguém no planeta tem voz assim. Algumas canções parece que não poderiam ser cantadas por outra pessoa. Pense em alguém para fazer o que ele faz em "San Vicente". Vai pensando...
Cássia Eller - Li uma vez em algum lugar que ela tinha voz de soprano. Pelo que entendo, usava mais a região de contralto, o que mostra que sabia tirar o melhor de sua tessitura. Sem contar que manjava demais da arte, e assim fica fácil com qualquer voz.
Annie Haslam - Voz belíssima, cantou no Renaissance na década de 70 e depois não sei para onde foi. Timbre quase de cantora erudita, mas carregado de uma emoção genuína e cativante.
Grace Slick - Como cantava essa mulher! Fez a linha de frente do Jefferson Airplane. Se só tivesse cantado "White Rabbit" e mais nenhuma outra música o resto de sua vida, já estaria na minha lista.
Joan Baez - Valoriza qualquer canção com sua interpretação sempre forte. Deus lhe brindou com uma voz marcante, imponente, e ao mesmo tempo agradabilíssima.
Johnny Cash - A voz grave mais notável que conheço. Coitado do Joaquim Phoenix, que teve de interpretá-lo no cinema. Devia ter dublado. A primeira coisa que comentei quando estava vendo as cenas de ensaio das músicas foi: "Credo". Quando der, ouça como Cash canta "Hurt". Arrepia.
Jon Thor Birginson - Esse canta! Caiu meu queixo a primeira vez que ouvi esse cara. Timbre em falsete, meio infantil, meio agônico, mas muito doce. Nos últimos tempos, tem explorado mais o registro normal da voz, e não faz feio. Seu canto combina perfeitamente com o estilo viajante de sua banda e de seu trabalho solo. Queria cantar como ele.
Greg Lake - Voz perfeita do progressivo. Não aquela de agudões, berros, malabarismo, mas de colocação, respeito pelos limites de extensão, e qualidade de empostação. Muito bom no King Crimson, muito bom no Emerson, Lake and Palmer.
Carla Bruni - Nem sabia que ela era modelo quando a ouvi cantando pela primeira vez, quanto mais que viria a ser primeira-dama. Então, não é porque ela está famosa agora que a coloquei nesta lista. A verdade é que ela não tem uma grande voz, nem interpreta tão bem assim, mas escolheu um estilo sussurrado, que cai muito bem para seu timbre doce. Conheci quando fazia Francês na USP, e adorei, mas não tenho mais ouvido tanto, porque o repertório é, de fato, um pouco enjoativo.
Bom, taí. Há muitas outras que ficaram de fora, porque não quis fazer AS treze melhores, mas sim treze DAS melhores. Aceito e avalio sugestões e discordâncias.
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
Eu quero meu Camões de volta
Aquele exemplar pode ser comprado novamente com facilidade. Mas duvido que o encontre nas mesmas circunstâncias em que o adquiri, novo, por um terço do preço, numa dessas promoções espetaculares que a gente tem de aproveitar imediatamente para não se arrepender depois. O que mais me agoniava, entretanto, era perder uma edição tão bonita do meu poeta preferido. Puxa, justo Camões! Justo o cara que venho redescobrindo com os alunos, canto a canto nos Lusíadas, verso a verso na lírica, passo a passo na biografia! Justo um dos livros de que mais gostava!
Nos dias que antecederam o Natal, sonhei que tinha encontrado o livro. Geralmente, não lembro as coisas que sonho, mas essa cena ficou gravada com espantosa nitidez na mente. Senti de novo a textura do papel em minhas mãos, olhei de novo as letras miudinhas, a beleza das ilustrações, sondei de novo as possibilidades listadas nos índices. Só faltava sonhar com Papai Noel me entregando o livro em pessoa. Acho que só não rolou porque nunca fui muito ligado nessa coisa de Papai Noel.
Ainda não comprei o livro de novo. Vou esperar uma promoção como aquela (este esperar é de esperança, além de espera). Tenho fé nisso. Basta vir a oportunidade. Esse é, literalmente, meu sonho de consumo. É o que inconscientemente pedi a um simbólico "meu Papai Noel".
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Alguém pode estranhar a postagem sobre um sonho alegre e recompensador relacionado a livros, não a pessoas de meu convívio. Sustento que isso é coerente, se pensarmos a relação que mantenho com objetos de desejo.
Para mim, livros se tornam pessoas quando me acostumo com eles e quero-os do meu lado. Tenho ciúme deles, tenho uma relação que não pode ser maculada com a interferência de postits ou grifos alheios, por exemplo. Por outro lado, quanto mais conheço uma pessoa, mais entendo que ela é mais que só uma pessoa. Quanto mais me acostumo com ela, mais entendo suas necessidades, e menos faço exigências de exclusividade.
Quero que as pessoas apareçam de vez em quando porque querem, porque gostam de mim. Por outro lado, quero que os livros não desapareçam nunca, porque os quero, porque gosto deles. Livros, eu os quero só meus. Pessoas, eu as quero bem, e só.
domingo, 27 de dezembro de 2009
Deixem Tiger Woods em paz
O que penso é o seguinte: houve agressividade, rispidez, mágoa, adultério, deslealdade, decepção, incompatibilidade de gênios ou descompasso sexual? Problema do casal. Ponto final. A pessoa resolve com seu parceiro. Acabou. Não interessa e não diz respeito a mais ninguém. Isso não é notícia, não é do interesse público, não tem nada a ver com o direito à informação. Uma coisa é olhar para uma relação como parte interessada (amigo, família, padrinho) e tentar entender que realmente está acontecendo. Outra coisa é massacrar as pessoas com bisbilhotices, procurando sinais que servem tão somente a especulações e julgamentos descabidos.
A verdade é que ninguém sabe o que uma pessoa vive ou viveu em seu relacionamento amoroso, e isso não pode ser simplesmente deduzido a partir dos sinais exteriores. Houve adultério? Como posso saber se isso é um acordo a dois, uma vingança, uma escapada, ou uma profunda insatisfação interior? Como posso saber se isso não é doença, vício em sexo, incapacidade de lidar com a estabilidade? Como posso julgar o indivíduo se desconheço sua psicologia (e não se engane: o que as pessoas falam ou fazem em público NÃO É o que elas são em seu íntimo, por mais que queiramos nos iludir)? Que afirmações posso fazer acerca da intimidade de um casal com o qual não partilhei nada a não ser fotos e fofocas? Que direito tenho de avaliar um comportamento de um indivíduo quando desconheço os jogos de poder, sedução, chantagem, assédio e pressão psicológica a que ele possa ter sido submetido? Indo até mais longe: por que é necessário justificar, ou absolver, ou condenar, uma atitude da vida pessoal de alguém que não tem nenhuma relação com minha vida pessoal? Tenho certeza de que, se as pessoas soubessem um décimo do que acontece nos relacionamentos, renegariam no mínimo metade das afirmações que fizeram sobre eles.
Mas a questão é outra: as pessoas não têm de saber dessas coisas. Deixem Tiger em paz! Ele tem de jogar golfe, e nisso ele é fantástico. O resto não interessa. Não diz respeito a ninguém além dele e da mulher. Não somos nós que temos de achar certo ou errado o que ele fez; é ele, só ele. Nós, que gritamos, mentimos, traímos, forjamos cenas, omitimos verdades, inventamos, que fazemos de tudo isso um pouco, nós não gostaríamos de nos ver resumidos a esses aspectos que podemos, sem muito esforço, apontar em nosso comportamento. As coisas que fiz de errado na minha vida, ou mesmo no meu casamento, não me definem, de maneira alguma. Fui capaz de superar muitas delas, sou capaz de conviver com outras tantas, e qualquer um que procurasse projetar meu caráter a partir das falhas que apresenta erraria feio. Da mesma forma, penso que é uma hipocrisia tirar patrocínios do cara, cortar publicidades, cancelar entrevistas. Quer dizer que o homem que teve outras mulheres não tem coração nenhum? Por que as entidades assistenciais não devolvem o dinheiro que ele deu? Por que os fãs não devolvem os autógrafos e renegam todo o carinho que o golfista teve com eles no decorrer desses anos todos?
É totalmente ridículo, na era pós-revolução sexual em que vivemos, reduzir um sujeito àquilo que instâncias hipócritas definiram como sendo sua imagem pública. Acho que deve doer demais reconhecer que os indivíduos não cabem nos rótulos em que se quer colocá-los. Quando se trata de relacionamentos e seus problemas, na imensa maioria das vezes, quem fala a respeito não faz a mínima ideia do que está acontecendo, e poderia perfeitamente abster-se de emitir julgamentos. Até porque, para o universo das experiências amorosas, desregradas e anticonvencionais por excelência, esses julgamentos não fazem a menor diferença.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
Feliz Natal 2009 e Feliz Ano Novo 2010
Grande abraço, até breve.
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
Memória seletiva
Assim que comecei a sorver o líquido, constatei duas coisas. Primeiro, que aquilo era um horror, não tinha gosto nem de café, nem de shake, nem de nada que me comovesse, e ainda por cima era caro pra dedéu. Mas a segunda constatação foi a mais interessante.
Tão logo o gosto terrível da bebida da moda arrepiou meus cabelos, lembrei-me de que já havia experimentado uma vez a mesma bebida, e já tinha achado horrível. Simplesmente me esqueci disso quando comprei: que o produto já havia me decepcionado. Não sei se não achei tão ruim a ponto de gravar um gigantesco "não compre" no meu cérebro, ou se justamente achei tão ruim que apaguei a sensação relacionada àquela experiência. O fato é que só fui lembrar que não gostava daquilo quando experimentei de novo.
Sou um consumidor preguiçoso e tenho dificuldade de guardar marcas, ou associá-las a características que as singularizam. Mas nunca pensei que pudesse ser tão distraído a ponto de fazer a mesma besteira duas vezes. A verdade é que nem pensei em nada, minha preguiça me disse "vai no primeiro café que você vir na frente" e fui com tanta fé que me esqueci justamente do mais importante, que não gostava daquele. O pior é que tomei quase tudo, porque sou daqueles que, depois de pagar, não aceitam jogar nada fora. E o meu nem veio com chantilly, porque estava em falta...
Li numa página da net coisas interessantes sobre inibição latente, um processo psicológico que faz com que percebamos as coisas a nosso redor de acordo com as nossas necessidades e interesses. Seria assim: um cozinheiro, por dever de profissão, prova um determinado prato e diz, pelo paladar, quais ingredientes foram utilizados e em que proporção. Eu, que não cozinho, só como, provo um prato e não presto atenção nisso, apenas registro mentalmente se ele é gostoso ou não. Os psicólogos dizem que precisamos ter essa tal inibição latente para não pirarmos, pois é impossível lidarmos com todos os estímulos que recebemos. Por outro lado, eles também dizem que a baixa inibição latente é característica dos indivíduos criativos, tal como dos indivíduos loucos. Perfeitamente compreensível: quem vê o mundo de maneira diferente é porque recebe e responde estímulos diferentes, em função de uma experiência interior que não é a da maioria das pessoas.
Minha memória é um primor de inibição latente. Não fotografo mentalmente as coisas, não sou bom para seus detalhes, não lembro de nomes, esqueço rostos e situações com facilidade, esqueço de coisas que acabaram de me falar. Lembro somente do que os fatos e as coisas representaram para mim no momento em que os experienciei, e quase sempre fico só com essa impressão geral (bom, ruim, legal, chato...) e olhe lá. Quando se trata de consumo, então, a inibição atinge o nível máximo, porque algumas coisas simplesmente não representaram nada, ou foram tão insignificantes que nem consegui desgostar delas, ou foram tão desgostosas que eliminei da lista de relevância. O problema é que a força do marketing, aproveitando-se da preguiça mental, é capaz de driblar essa desimportância das coisas com muita desenvoltura. E lá vai o bobão aqui ser enganado de novo, com todas as armas para não ser. E o pior é que nem tenho coragem de dizer que não acontecerá uma terceira vez. Se bobear, até escrevo sobre isso de novo no blog. Às vezes, desacredito do que sou capaz...
domingo, 20 de dezembro de 2009
Frases e remontagens
Pode ser que ele acredite realmente nisso. Nesse caso, supõe-se que valorize o trabalho, o labor, a persistência. Que acredite que pode vencer, mas que isso não depende somente de suas forças. Que considere que a determinação individual e a fé são seus maiores valores, e que vale a pena ser conhecido e reconhecido como batalhador e convicto. Teríamos, então, um cidadão querendo mostrar ao mundo a forma como se consegue o sucesso, sintetizada num dito que toca as pessoas pelos princípios cristãos de humildade e trabalho que apregoa.
Pode ser, no entanto, que o indivíduo que escolheu esse lema não seja nada disso. Pode ser que seja uma pessoa consumida pela culpa de tomar atitudes erradas e comprometer financeiramente e estruturalmente sua família. Pode ser que seja alguém que tenha entregado os pontos já muitas vezes, e que procure constantemente, dentro e fora de si, motivações para continuar fazendo aquilo que precisa - mas não quer - fazer. Nesse caso, a frase estaria mais para consolo ou promessa. Não seria entendida como "eu luto", mas como "tenho de lutar, fazer o quê?"; não serviria para mostrar algo como "eu acredito no trabalho", mas sim "eu preciso acreditar e continuar no caminho, não tenho outra saída", ou "eu preciso lembrar constantemente que não posso esmorecer, mesmo que as soluções estejam obnubiladas".
Até aqui, supusemos que pessoas com diferentes experiências e motivações poderiam adotar, sem problemas de coerência ou sentido, um mesmo lema de vida. Consideremos agora uma criatura de configuração moral distinta da que atribuímos às gentes imaginárias já descritas. Consideremos alguém que não acredita no sucesso pela via do trabalho; alguém que procura tirar vantagem de todas as maneiras das situações; alguém que prefere o lucro advindo do menor esforço ao pagamento justo por seu mérito e empenho; alguém que, nas piores adversidades, pensa unicamente em salvar o próprio pescoço; alguém que não liga de fazer falcatruas e passar a perna nas pessoas se não houver o perigo de isso vir a público.
Se uma pessoa com essas características colasse no seu veículo um adesivo com a frase em questão, poderíamos pensar que se trata de uma contradição ou uma impropriedade. Mas, por absurdo que possa parecer, o lema teria exatamente a mesma função: mostrar aos outros indivíduos qual a concepção ideologicamente válida e aceita de sucesso. O que haveria de diferente, nesse caso, é que estaríamos diante do tipo mais comum de ser humano que encontramos em nossa vida social, aquele que separa com muita habilidade sua aparência para o mundo de sua conduta interior. Esse tipo de cidadão não acha que está mentindo, pois realmente crê que o trabalho duro deveria ser norma de conduta da sociedade, contanto que ele não fosse obrigado a adotá-la. E ambas as coisas convivem pacificamente em seu universo lógico, pois suas crenças e seus valores não têm necessariamente de ser coerentes com sua práticas cotidianas, podendo muitas vezes contradizê-las, quando convier. Porém, ele não pode assumir explicitamente que se julga exceção à necessidade de cumprir o que diz. Nossa sociedade aceita a hipocrisia, não o cinismo, e, ademais, faltariam argumentos éticos válidos para se justificar. Mas é bom que fique claro: um indivíduo com essas características poderia colocar desavergonhadamente a frase no vidro de seu carro, e por certo ganharia elogios e atenções dos que estão ao seu redor, sem nunca enfrentar qualquer mínimo questionamento sobre a coerência entre sua conduta ética e o lema que adota. Agiria, assim, tal como as inumeráveis pessoas que vestem camisetas com dizeres cujo sentido desconhecem porque as estampas ou cores estão na moda ou parecem simpáticas. As outras diriam apenas: "caiu bem em você".
O curioso é que, se remontássemos a frase, adequando-a à falta de caráter dessas figuras que citamos, poderíamos obter algo mais expressivo e veraz, "Vencer, sempre; desistir, talvez; lutar jamais", lema extremamente pertinente para o que presenciamos todos os dias nas nossas relações com o mundo. Essa reorganização semântica deixaria claro que o negócio é o sucesso, o dinheiro, a vantagem pessoal, e que, quanto menor o esforço para obtê-los, mais eles nos convêm. Isso diz muito sobre o que vemos na política, nas relações de trabalho, nas festas, no trânsito, nas escolas, nas conversas de bar, em vários setores de nossa civilização. Mas um lema como esse carrega o problema do escancaramento, do desmacaramento, da autoculpabilização. Uma pessoa pode pensar assim e até usar essa ideia como um gracejo no contexto de confissões infames a amigos próximos. O que ela não pode é admitir isso abertamente, declaradamente, exibidamente, porque a consciência coletiva lida muito mal com seus desejos reprimidos.
Sintetizando: se tudo fosse somente uma questão de escolha e bom gosto, a frase original seria, para quem acredita no trabalho, para quem precisa acreditar, e até para quem não acredita mas não pode dizer, a opção mais conveniente e correta, sempre; se a questão for a de interpretação, para qualquer cidadão que tivesse lido "Raízes do Brasil", "A ética protestante e o espírito do capitalismo" e um básico resumido de Freud, a frase original tenderia a soar mais como uma curiosidade cotidiana que como uma prescrição, e a frase remontada, mais como uma provocação válida que como um gracejo. Prefiro o segundo ponto de vista. Desacredito da seriedade desse tipo de lugar-comum. Para mim, os homens se revelam no que dizem justamente pelo que silenciam. Feridas expostas precisam ser curadas, e as pessoas preferem, por incrível que pareça, não mostrá-las, ou não reconhecê-las como feridas, a ter de tratá-las adequadamente. As pessoas aceitam sofrer sempre e mentir talvez, desde que não tenham de mostrar jamais.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
No show de Glenn Hughes. Valeu por ele.
Aos 35 anos, eu confesso que não consigo mais entrar nesse clima. Fui para ouvir a voz de Hughes e conferir sua técnica apurada. Isso fiz, e valeu o ingresso. Mas não pulei, não chacoalhei a cabeça, não achei graça nas pessoas caindo de bêbadas e chapadas, não tive estômago para as latinhas de cerveja nojentamente abandonadas no chão e o banheiro já mais do que asqueroso a partir da segunda metade do show. Não tenho mais esse espírito de aventura, de tolerância com o incômodo, de desencanação e mergulho na onda rock'n'roll. Para mim, foi bom poder ficar encostado na parede, mãos dadas com minha namorada, vendo o que rolava no palco e ouvindo a boa música que acontecia. Tudo o mais atrapalhava: as pessoas gritando (aliás, acho incrível alguém pagar para ver um dos maiores vocalistas de todos os tempos e ficar gritando enquanto ele canta), a fumaça assassina de narizes, o cheiro de bebida que começa a impregnar no decorrer da noite, os indivíduos que vão perdendo a noção de que você também quer ver o palco. Não sirvo mais para esse tipo de programa. Tive essa impressão no show do Radiohead e confirmo-a agora.
O que foi divertido, além de andarmos meia Faria Lima para não chegarmos atrasados, foi ter tido excelente companhia para a empresa e ter podido usufruir da beleza das músicas de cuca limpa, sorvendo cada acorde, cada agudo, cada falsete, cada solo. Saldo positivo, no fim das contas.
Só para pontuar e não ser injusto: grande show de abertura do Casa das Máquinas. Mas deviam ter tocado mais da fase progressiva deles. Seria melhor ainda.
domingo, 13 de dezembro de 2009
Microcontos, Sérgio Sant'Anna e as "grandes novidades"
Quem, como eu, teve a curiosidade e oportunidade de apreciar a força da escrita de Sérgio Sant'Anna em Notas de Manfredo Rangel, repórter, (a respeito de Kramer), de 1974, deve ter se impressionado com a maestria com que são contadas as pequenas histórias de amor presentes no conto "Romeu e Julieta", um dos 21 que compõem o livro. Se não me engano, dando uma fuçada no Google, dá para achar algumas delas.
Eu não sei bem o que é essa onda de microcontos, mas se a questão é apenas o tamanho e o poder de concisão, Sérgio é, sem dúvida alguma, o precursor mais ilustre disso. Minha dissertação de mestrado foi a respeito do Notas, e lembro bem que, ao analisar o conto que sugeri acima, cheguei a grafar essa classificação (microcontos) e mostrar ao meu orientador. Lembro de ele ter me dito para não usá-la, porque não era consagrada pela tradição, nem muito precisa do ponto de vista da terminologia. Risquei, e acabei nem aproveitando na redação final o que tinha escrito. Ficou lá, nas minhas anotações, nesses arquivos não publicados perdidos nos back-ups da vida. Como não publiquei, não posso dizer oficialmente que antecipei a configuração do gênero. Posso apenas brincar interiormente com aquela história do "tá vendo,eu já sabia!", e ficar elocubrando sobre minha dissertação ter sido mais lida se eu tivesse achado um jeito de incluir a análise do "Romeu e Julieta".
Mas não quero chamar a atenção para minhas sortudas intuições de análise, e sim para as competentes intuições de escrita de Sérgio. Que pelo menos reconheçam a primazia dele, a capacidade de buscar e enformar a concisão máxima de enredo num tempo em que nem se sonhava com internet, tuíter, e essas coisas.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Intolerância e estupidez na agressão a Vagner Love
Mas é só. Para mim, futebol é torcer, acompanhar, admirar, aplaudir, vaiar. E creio que, para qualquer ser civilizado, a experiência de torcedor não deva passar disso. Futebol não é mais importante que política, que assuntos amorosos, que educação, que questões de direito e cidadania. Futebol não é minha profissão, e não é uma paixão que sobrepuje minhas responsabilidades, ou mesmo minhas outras paixões (música, literatura).
O caso da agressão ao jogador Vagner Love, do Palmeiras, é, para mim, um claro exemplo do que acontece quando os limites da paixão pelo esporte são ultrapassados, e as frustrações cotidianas são projetadas naquilo que deveria ser apenas uma forma de entretenimento. Vagner é um ótimo jogador - e ótimos jogadores têm fases boas e ruins. Foi responsável por muitos dos gols que tiraram o Palmeiras da segunda divisão. Deve ter jogado mal, sei lá, não acompanho tanto assim o desempenho dos atletas. Mas mesmo que tivesse feito as piores partidas de sua vida, nada, absolutamente nada poderia justificar a estupidez e intolerência do comportamento dos torcedores no caso em questão. E o pior de tudo é que comentei esse caso com três pessoas diferentes, em momentos diferentes, e três vezes ouvi algo como "apanhou pouco, estava fazendo corpo mole".
Eu não sei até que ponto pode ir o ódio ou a frustração de ver meu time perder um campeonato, ou um jogador em quem eu depositava confiança perder um gol incrível ou jogar abaixo do que sabe. O que eu sei é que faz parte da minha cidadania entender que isso é só diversão, teatro, espetáculo. Nenhum jogador que atua pelo meu time tem qualquer obrigação contratual ou moral comigo; jogadores são profissionais, atuam por seus clubes e a eles devem satisfações. Não é porque eu compro camisa, vou ao estádio e sustento o mercado da bola que tenho o direito de administrar o meu clube de coração, de escalá-lo, de interferir no seu gerenciamento. Se assim fosse, não precisaríamos de técnicos, de preparadores físicos, de especialistas em futebol. Como torcedor, tenho várias formas de manifestar minha aprovação ou reprovação em relação ao que acontece em campo, ou à forma como meu clube é administrado. Posso votar nas eleições do clube. Posso escrever faixas, fazer protestos, cantar músicas. Posso reclamar de uma substituição ou da presença de algum jogador. Tudo isso está dentro daquilo que qualquer indivíduo pode fazer sem ferir as liberdades individuais dos outros, sem atrapalhar a vida de outras pessoas.
Entretanto, como torcedor, não tenho o direito de fiscalizar a vida pessoal de jogadores do meu clube. Se o jogador corresponde ou não às expectativas de atuação em campo, é uma coisa. Se ele tem uma vida noturna intensa, é outra, e ninguém tem nada a ver com isso. Se isso atrapalha o rendimento do atleta, cabe ao clube e ao técnico avaliarem e tomarem as medidas cabíveis. Ponto final. É mais do que óbvio que aquilo que acontece fora do espetáculo, fora do âmbito da partida, dos treinos, das concentrações, não é problema do torcedor. Não aceito bronca nem do meu chefe imediato quando estou em casa com minha família.
Se não tenho nada a ver com o que acontece com um cidadão em sua vida pessoal, tanto menos posso tentar agredi-lo, por qualquer que seja o motivo. Não há justificativa para uso da violência contra um indivíduo que não me agrediu. Minhas insatisfações pessoais não podem ser resolvidas por meio da violência física, e esse é um princípio básico da vida em sociedade. Não interessa se o cidadão fez ou não corpo mole, se honrou ou não a camisa, se ama ou não o clube como eu amo, se ganha exorbitâncias ou salário de fome: não tenho o direito de ofendê-lo, de agredi-lo, de ameaçá-lo. Isso é crime, isso está fora do comportamento social saudável. Ainda mais: não é inteligente, por parte do torcedor, criar esse clima de cobrança ostensiva e intranquilidade. Nem todas as pessoas reagem da mesma forma quando estão acuadas, e muitas delas, inclusive, perdem toda a motivação quando são atacadas em sua dignidade. Assim aconteceu com Edilson, que abandonou o Corinthians depois de ser agredido pela torcida, numa atitude que considero exemplar. A conivência com a violência, às vezes, é pior que a própria violência, e foi isso que me assustou ao ouvir as pessoas defendendo a imbecilidade dos torcedores que foram presos.
Por fim, quero deixar registrado que a paixão pelo futebol, que rende muito dinheiro a não muitas pessoas, tem sido usada como desculpa esfarrapada para atos covardes, injustificáveis e até monstruosos de torcedores - se é que se pode chamá-los assim - ao longo dos anos. Basta fazer uma pesquisa simples na rede: ônibus do Coritiba destruído por torcedores do Vasco, mortes que acontecem em brigas de torcida agendadas pelo orkut(!), destruição da avenida Paulista pelo vandalismo na comemoração do título da Libertadores pelo São Paulo(!), troca de pauladas e morte em final de campeonato juvenil(!). Para cada um esses casos citados, seria interessante e plenamente adequado que todos os atletas e pessoas que vivem de futebol fizessem uma greve ou paralisação de uma semana em protesto. Nem toda a alegria e tristeza que o futebol nos proporcionou nos últimos 80 anos pode justificar a morte brutal de uma pessoa, por exemplo. Infelizmente, a imprensa e as autoridades não levam esses casos tão a sério, talvez por medo de desagradar os torcedores, que são poder de consumo e possibilidade de votos. O espetáculo não pode parar; mas se ele envolve insanidade, estupidez, vandalismo, covardia, violência, ele para. Porque senão deixa de ser espetáculo e vira barbárie.
(Alguns dirão, com razão, que a sociedade do espetáculo acaba sempre sendo a sociedade da barbárie. Quero acreditar que seja possível um equilíbrio, um consenso, embora no fundo saiba que isso é uma manifestação de esperança, não uma análise racional).
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Dez razões pelas quais não leio Veja mais
O que posto abaixo carece totalmente de fontes, mas não de fundamentos. Se eu tiver um dia acesso a edições antigas, posso localizar as coisas que cito aqui. Por ora, importa-me apenas apontar as ideias gerais. Além disso, tenho outras coisas a fazer no momento. Mas retornarei a esta postagem quando der. Quem tiver uma coleção antiga da Veja e quiser me ajudar, enviando referências das fontes, terá minha gratidão sincera pelo resto de meus dias.
1) Veja tem uma linha ideológica completamente diversa da minha. Seus jornalistas políticos e colunistas estão cada dia mais claramente alinhados com o PSDB e a ideologia neoliberal, e até puxam as orelhas do partido quando ele se afasta desse ideário. Não concordo com esse conjunto de ideias, e acho que esse alinhamento, nos últimos anos, caminhou para a distorção da análise da realidade, como se pode ver nas matérias sobre economia brasileira, que muitas vezes teimam em não reconhecer que os avanços sociais foram alcançados em função da adoção de paradigmas diferentes dos fixados no Consenso de Washington.
2) Veja apoiou quase irrestritamente a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, abraçou em alguns momentos a hipótese de armas químicas em território iraquiano e comprou a ideia de que tudo isso nada tinha a ver com petróleo. A revista chegou ao ponto de, ao questionar o presidente Bush, dizer que era preciso saber se ele "mentiu ou apenas exagerou um pouco" (isso é textual, mas infelizmente não lembro em que edição li). Para ser justo, Roberto Pompeu de Toledo sempre se posicionou de outra forma em seus comentários, muito mais lúcidos que os dos outros colunistas.
3) Veja embarcou no modismo perigosíssimo que era a dieta de Atkinson, dando a essa forma amalucada de perder peso capa, destaque, e quase nenhuma abordagem crítica. Não colaborou para uma discussão científica a respeito, e pode ter influenciado muitas pessoas a cometerem terríveis gafes alimentares.
4) Veja, numa edição especial de que não me lembro o número, afirmou que os irmãos Wright eram os inventores do avião, questão extremamente polêmica e curiosamente definida em favor dos americanos - que criaram uma máquina incapaz de levantar voo sozinha - contra o brasileiro Santos Dumont - mundialmente aclamado como "Pai da aviação" e criador de uma máquina capaz de decolar com força própria, como um avião digno do nome.
5) Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo são dois dos colunistas de maior destaque de Veja. O primeiro, além de sustentar opiniões completamente contrárias às minhas - como a de que os Estados Unidos não pensaram em petróleo ao invadir o Iraque - perdeu toda a credibilidade para mim ao quebrar o off de uma de suas fontes. O segundo escreve de forma absurdamente agressiva e várias vezes irresponsável, e é declaradamente antipetista, antilulista e pró-serrista, ou que é um problema grave, pois nem tudo o que o PT faz é ruim e Serra não é nenhum primor de político. Os comentários de ambos são extremamente tendenciosos, às vezes até meio hiperbólicos e descomedidos, no caso de Azevedo.
6) Veja detonou Maria Rita numa de suas matérias de uma forma tão veemente que um leitor que nunca tivesse ouvido rádio no Brasil poderia pensar que a moça era uma cantora sem talento, pendurada na fama da mãe, a maravilhosa Elis. Goste-se ou não de Maria Rita, nem o mais ácido dos críticos poderia colocar a questão dessa forma.
7) Veja apoiou explicitamente o "não" na votação sobre o desarmamento. Visto se tratar de uma campanha política, era minimamente sensato que a revista se propusesse a examinar os dois lados da questão, ou, pela ética jornalística, que fizesse uma matéria de esclarecimento, e não um panfleto ideológico. Tudo bem que assumisse uma posição, mas o principal, nesse caso, era informar, e não convencer.
8) Ainda que Nassif possa ter comido bola num ou noutro momento - acredito que raríssimos -, o que ele expõe no Caso Veja é sério demais para não ser devidamente apurado, pois é uma investigação conduzida com o apoio de toda uma comunidade de colaboradores, com muita seriedade.
9) Veja tinha uma linha mais moderada de redação sobre política. Quem lê edições da revista na época da primeira eleição de Lula e lê as matérias de quatro anos depois verifica que a agressividade aumentou de tal forma, o tom subiu tanto, e as opções ideológicas ficaram tão explícitas que não parece se tratar do mesmo veículo de comunicação. Os textos fazem acusações pesadas e nem sempre se preocupam em documentá-las. A linguagem ficou apelativa, emocional, inconveniente para um veículo que se propõe a fazer jornalismo.
10) Essa é a mais forte de todas. Quando eu comecei a trabalhar na Prefeitura, a escola em que eu estava recebia um suplemento chamado Veja na Sala de Aula. Nessa época, houve os ataques de 11 de setembro. Veja obviamente teve matérias sobre os atentados. E o suplemento citado apontava maneiras de utilizar essas matérias nas aulas de História. Foi nele que li uma frase cujo conteúdo nunca esquecerei, embora não possa reproduzir exatemente. Algo como: mostre aos alunos que o ataque contra as torres gêmeas, nos Estados Unidos, é, na verdade, um ataque à civilização ocidental. Naquele dia, senti-me nas cruzadas, de espada na mão. Mas que fossem cruzadas contra o mau jornalismo, porque aquilo era passar de qualquer limite possível ou imaginável.
Sei que haveria mais, mas isso acho que já é suficiente. Viva a internet, viva a blogosfera.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
Quem sabe, faz ao vivo
Vi ótimos shows na minha vida, alguns muito marcantes, como os de Milton Nascimento e Ray Charles, ambos no Parque do Ibirapuera, já há alguns anos. Mas gostaria de comentar dois eventos que tive a felicidade de ver num espaço de poucos meses de diferença, e que me conduziram à reflexão do primeiro parágrafo deste texto.
Entre as bandas da atualidade, posso apontar várias de que gosto, e entre elas estão, sem dúvida alguma e em lugar especial, Coldplay e Keane. Melódicos, melodiosos, emotivos, emocionantes, esses caras sempre me pegaram com suas músicas. Numa hierarquia de gosto, eu sempre curti mais o Coldplay, sempre achei que eles tinham as composições mais viajadas e tocantes.
Entretanto, em 2008, Coldplay e Keane vieram ao Basil, e eu contava com alguns trocados a mais passíveis de alimentar a extorsão que são os preços via Ticketmaster. Comprei ingresso para os dois shows, e admito que só fui ao Keane porque minha namorada queria muito vê-los, e achei justo acompanhá-la nesse show, visto que ela me acompanharia no Coldplay, em quem a pequena não via muita graça.
Pois não é que os shows viraram minha cabeça? O Coldplay é bom ao vivo, mas não é marcante, não é empolgante, não faz a gente pirar. As músicas são excelentes, a banda é muito boa, mas é bem melhor no estúdio. Presencialmente, eles são até meio distantes, meio burocráticos. E tenho a impressão de que Chris Martin tem vocais delicados e difíceis demais para uma situação de gritaria de fãs e várias horas de palco. Já o Keane mata a pau. Tom Chaplin é o vocalista mais incrível que já vi em ação. Canta sem miséria, põe voz mesmo. E comanda o show com uma vitalidade impressionante. As músicas parecem melhores quando eles tocam ao vivo. A banda faz você esquecer de absolutamente tudo que não seja o que estão tocando. Fui com uma expectativa menor ao show deles, e saí completamente conquistado. Eles têm uma cara mais pop, menos melancólica, menos, digamos, profunda e trabalhada que a do Coldplay, e a crítica desgosta disso, no geral. Mas em situação de palco, de show, de apresentação, eles dão um banho. A empatia, a alegria, o carinho com o público são absolutamente únicos.
É verdade que travo muito mais contato com essas bandas por download e audição das canções que por apresentações. Mas a impressão do show é a que fica. O Coldplay vem ao Brasil de novo ano que vem. Não vou. Um show deles me bastou, já estou contente. Entretanto, de semana em semana invado a página do Keane no Orkut para saber quando eles voltam. É humano e saudável sempre querer reviver momentos que nos pareceram mágicos e encantadores. Essa é uma das formas que a arte tem de revitalizar pessoas como eu, que associam a música a climas, momentos, lugares, encontros, situações, pedaços da vida.
Por causa de um caldo de cana
- Não.
Costumo ser seco e direto nesse tipo de abordagem, principalmente quando percebo que se trata de intimidação. Era o caso. O olhar firme do sujeito, a postura corporal de avanço, a noção de que eu era menor, a certeza de que eu tinha dinheiro suficiente em mãos. Mas mais que isso, o discurso posterior: hoje você está por cima, amanhã está por baixo, amanhã eu posso te encontrar na rua numa outra situação, e tal. Eu podia simplesmente sair dali, ou insistir que não pagaria. Mas sinto que não consigo comunicar firmeza para as pessoas, e por isso sou abordado muitas vezes e de forma muito insistente, por pedintes, vendedores, marqueteiros, pessoas que querem que eu quebre algum galho delas, e afins. E foi o estigma dessa insegurança que me fez não querer sair de onde eu estava: era como se eu quisesse sinalizar que ele não tinha me intimidado, para dizer a mim mesmo que eu não titubeio, ou que não seria assim daquela vez. E quando o moço perguntou de novo se eu não podia pagar o conhaque dele, devolvi algo que o irritou.
- Poderia pagar seu conhaque, mas não quero e não vou.
Ele sentiu a afronta e começou a falar mais alto, mais e mais. Começou a discursar, disse que eu o estava humilhando porque ele era pobre e só queria um conhaque e ele tinha problemas com a justiça e a família e outras coisas de que não me lembro, porque naquele momento eu estava com medo e raiva eu mesmo tempo, dele e de mim, por não saber lidar com essas situações. A verdade é que fui realmente grosseiro na minha negativa, desnecessária e vinda da mais profunda incerteza em relação a conseguir me impor. Mas agora é que eu não ia pagar nada mesmo. O homem crescia para cima de mim, e agora era um jogo de forças no qual ceder, na minha cabeça, significaria aumentar as possibilidades de ser achacado por esse cara em outras oportunidades. Dessa vez, fui didático e honesto:
- Você não pediu comida, você pediu um conhaque. Eu não bebo, não pago bebida nem para mim, por que pagaria para você, que nem conheço?
Senti-me um pouco melhor, porque agora as palavras estavam bem colocadas. Mas isso funcionou só para mim. O rapaz não me ouviu. Trocou os argumentos pela ameaça pura e simples. Disse que ia pedir um conhaque e pronto. Eu reiterei que não ia pagar. Ele disse que acabaria preso se eu não pagasse o conhaque. Eu lhe disse que, se assim era, que não pedisse. E aí já era puro braço de ferro de insistência contra convicção. Então eu fiz o que devia ter feito já no início de tudo: fui sentar numas mesinhas lá no fundo do bar. O rapaz não veio atrás de mim. Passou a perturbar o balconista, a agredi-lo, xingá-lo, esmurrou o balcão, disse que queria um conhaque, e outras barbaridades mais pesadas. Conseguiu que um outro rapaz, que estava de saída, interviesse na situação, e se propusesse a pagar a bebida que ele queria. Se pagou ou não, nem sei, porque a essa altura eu já tinha tragado sem nenhum prazer o caldo e me dirigido ao ponto de ônibus, de onde nunca deveria ter saído. Fiquei lá uns minutos, esperando a chegada do transporte.
Dali a pouco chegou o rapaz do conhaque. Nem falou comigo, nem fez menção de ter me visto. Ficou lá, perguntando às pessoas que ônibus ia para o Aeroporto. Não estava nem aí para mim, pois eu já não servia para resolver nenhum problema dele. Até subir no meu ônibus, quase nem nos olhamos. De minha parte, posso dizer que não estava com medo nem com raiva. O problema não era ele. O problema era o incômodo que sinto por não saber tomar as atitudes convenientes e firmes nas relações com pessoas que me pressionam. Desse ponto de vista, devo admitir que a insistência ameaçadora daquele moço contribuiu, de certa forma, para que eu tivesse de refletir a respeito de algo que escondo até de mim mesmo. Continuei achando que não deveria pagar conhaque nenhum, mas fiquei com a sensação de que sou meio infantil às vezes, querendo provar para meu ego que sou melhor do que sou. Se eu tivesse sacado isso a tempo - e havia de ser eu na situação, porque uma pessoa dominada pelo vício não tem condições de fazê-lo - teria tomado minha garapa sem susto e sem pressa noutro lugar. Na verdade, creio que se eu conseguisse aceitar determinadas falhas de caráter que tenho, teria maior capacidade para corrigi-las ou conviver com elas. Fico com essa ideia. Página virada.
domingo, 15 de novembro de 2009
Pensando em um diálogo do filme "Olga"
Depois de tê-lo visto umas dez vezes foi que reparei em um diálogo que me pareceu o mais instigante do filme. Olga (interpretada por Camila Morgado) está supostamente indo da prisão para o hospital, dentro de uma ambulância, para dar à luz. Com ela vai uma companheira presidiária, conforme promessa do capanga de Filinto Müller, proferida publicamente diante da reação negativa dos detentos, que organizaram uma resistência à retirada da ativista. Olga pergunta à outra moça: "Você acha que o mundo quer ser mudado?". Não há resposta convincente, e Olga dá a entender que às vezes pensa abandonar a militância dentro das fileiras comunistas para ter seu filho e ser feliz com seu marido, Luis Carlos Prestes. Essa cena é muito forte, porque antecede um momento dramático e terrível, que é o envio de Olga à Alemanha nazista, de navio, numa traição da promessa anteriormente citada. Olga paga um preço alto - e cruel, e injusto - por sua luta, vindo a falecer posteriormente na câmara de gás de um campo de concentração.
Não consegui entender essa fala de Olga como um momento de fraqueza. Penso nela como detonadora de uma reflexão profunda. Qualquer um de nós, que estudamos humanidades, que temos sensibilidade de reconhecer os direitos de outros seres humanos, que acreditamos na possibilidade real de melhora das vidas das pessoas e num mundo com mais justiça social, nos perguntamos, em algum momento, se nossas convicções geram frutos, indicam caminhos, constroem soluções, enfim, se mudamos minimamente um pedacinho do mundo. Parece-me que faz todo o sentido perguntar se o mundo quer ser mesmo mudado. Sinto que tenha de admitir que a resposta é negativa: as pessoas têm enorme tendência de aceitar os sistemas em que vivem, adaptar-se a eles, julgarem-se beneficiadas e tornarem-se pouco sensíveis em relação aos excluídos em geral. A vontade de realizar mudanças e implementar sistemas mais justos não me parece natural ou inata nos indivíduos. As convenções, na maioria dos casos, vencem as revoluções, e o resultado é isso que vemos, um planeta em que há enorme concentração de recursos nas mãos de poucos e enorme controle desses que pouco têm por meio da conivência fabricada e dos instrumentos de alienação. Parece, então, que a vontade de mudar o mundo não vem espontaneamente, mas, na maioria dos casos, só depois do desenvolvimento de uma consciência crítica, e, paralelamente, de um caráter eticamente responsável.
Por outro lado, pessoas como Olga, ou Prestes, ou Chico Mendes, ou Gandhi, não conseguem ficar paradas olhando a marcha da História. Pessoas assim tendem a entrar de cabeça, a utilizar seu ímpeto de inconformismo para criar situações especiais, em que conceitos são revistos e conquistas se estabelecem. E é aí que a revolução enfrenta as convenções. E quando isso acontece - e isso só pode acontecer quando PESSOAS agem nesse sentido -, há ações necessariamente não convencionais, que incomodam, que chateiam, que soam estranhas. Acredito que, nesse momento, os revolucionários tornam-se inconvenientes. Exatamente isso: não são convenientes para a sociedade, para o poder, para os que não têm o poder mas o querem, para os que não têm o poder mas acreditam-se beneficiados por ele. E creio, sinceramente, que isso nunca vai mudar, que as pessoas que querem mudanças serão vistas como os chatos, os impertinentes, os perigosos, os estranhos.
Entretanto, tenho convicção de que nós, que acreditamos em mudanças, podemos legitimamente tentar mudar o mundo À REVELIA DA VONTADE DO MUNDO. Precisamos estar preparados para que nos estranhem, e muitas vezes nos julguem inconvenientes. Precisamos agir segundo nossas convicções ainda que elas não sejam as convicções que garantem aceitabilidade social. Seremos ridicularizados, perderemos oportunidades, teremos portas fechadas em certos círculos? Infelizmente sim. É parte do jogo. E é humano e compreensível que nos cansemos de jogar, nalgum momento, ou que recuemos, para defender aquilo que temos como sagrado e fundamental. Olga queria ser feliz, todos queremos. Olga queria sobreviver e criar seus filhos. Nada mais justo. Isso tudo, na verdade, torna sua trajetória ainda mais admirável.
Não sou Olga, não sou Prestes, sou um cidadão comum que carrega no peito sua dose de indignação. Mas é interessante ver que o dilema da manutenção das convicções pessoais reaparece em questões muito menos pungentes e desesperadoras que as vividas por essas grandes personalidades. Pequenas decisões que fazem enorme diferença, como não comer carne, ou não consumir bebidas alcoólicas, ou não carregar compras em saquinhos plásticos, ou não imprimir nada desnecessariamente, ou não usar drogas, ou não tentar obter benefícios ilícitos, transformam-se em letra morta rapidamente, porque queremos ser sociáveis, porque queremos praticidade, porque nos convêm ou até simplesmente porque ninguém está olhando no momento em que fazemos. Um vegetariano tem de se justificar o tempo todo quando vai a um churrasco. Um abstêmio pode se sentir peixe fora d'água nalguns grupos. Quem leva a própria sacola ao mercado demora mais para ajeitar as compras, e as pessoas na fila chiam. E assim vai, de forma que lidar com as próprias convicções implica lidar também com a incompreensão de muitas pessoas. Honestamente, já desisti de muitas coisas que julgava necessárias e boas porque me senti sozinho, discriminado, ou esquisito demais. Lamento ter procedido assim, mas isso não é a pior coisa do mundo. A grande derrota é quando alguém desiste de si mesmo. Essa é a pessoa, do ponto de vista da sociedade, mais conveniente de todas. Mas é a de que menos o mundo precisa.
Minha irmã disse uma vez: "Não confio em quem não fala palavrão". Achei engraçada a frase, e queria recuperar o espírito dela para o que escrevi nesta postagem: "Não confio em pessoas perfeitas". Porque elas não transformam nada. Só são transformadoras as pessoas inconvenientes, ou chatas, ou complicadas, ou que fazem alguma coisa estranha. Essas são fundamentais.
Há alguns dias, encontrei um amigo meu, César Augusto, que é dessas pessoas fundamentais. Esta postagem é minha homenagem à força de caráter que ele demonstra quando defende suas convicções. Quero aprender a ser assim.
sábado, 7 de novembro de 2009
Segundo lugar
domingo, 1 de novembro de 2009
Fafá e os bichinhos
Quando passei, hoje de tarde, pelo portão da casa de meus pais, pude avistar a Fafá deitada gostosamente em cima de uma caixa de pizza vazia. A Fafá já tem certa idade para uma gata, e criou manias e rotinas que dificilmente perderá. Nós a respeitamos como uma decana, e por isso fui incapaz de despertá-la de seu sono em pleno dia com um carinho de cumprimento. Eu invejei a Fafá, pensando comigo que gastei no começo do ano uma fortuna com uma cama nova que pudesse ajudar a diminuir meus problemas de insônia. Mas assim são os bichinhos. Admiro como eles precisam de tão pouco, e se divertem, e levam a vida adiante. Admiro como nossas relações com eles podem implicar muito mais carinho e compreensão que as que mantemos com outros primatas da nossa espécie. Seria tão mais fácil se pudéssemos pegar uns aos outros no colo e acariciar, e aninhar, e lamber, sem outra qualquer preocupação, até nos sentirmos preparados para uma nova brincadeira ou descoberta!
Tá, eu sei, é exagero. As convenções sociais são importantes e nos garantem muitas coisas, inclusive nas relações humanas. É que hoje deu de me sentir um pouco assim, carente de cuidado. Amanhã passa.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
Pastinha temática 1 - Dominação cultural
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Roberto Freire no Roda Viva de hoje
sábado, 17 de outubro de 2009
A trilha sonora da madrugada em claro
sábado, 10 de outubro de 2009
ENEMigos da própria intenção crítica
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
Nei
sábado, 3 de outubro de 2009
A intervenção cirúrgica no HU - parte 2
sábado, 1 de agosto de 2009
A intervenção cirúrgica no HU - parte 1
Para quem nunca me viu, preciso adiantar que somos bem diferentes fisicamente. Financeiramente, a diferença é abissal. Além disso, não manjo nada de carros, quanto mais carros de corrida.Por outro lado, não me consta que o Felipe tenha querido alguma vez lecionar Literatura, nem que componha canções e faça poemas. Cada um na sua, não é?
Pois é, tudo isso é fato,mas... temos uma coisa em comum. Que descobri recentemente, em virtude desse infeliz acidente que ele sofreu (aliás, que azar que o Massa deu, né?). O médico particular do Felipe é, nada mais, nada menos, que o Doutor Dino Altmann. E quem é o Doutor Dino Altmann? É o grande responsável pela retirada de um higroma linfático no meu ombro esquerdo, no ano de 1996.
Nessa época, eu estudava Filosofia na USP, e ainda não tinha engrenado no curso. Desempregado, sem namorada e deprimido com minha autoimagem, resolvi praticar um pouco de musculação. Acontece que, aos 10 anos, eu tinha feito cirurgia para tirar água de uma bolha formada a partir de um vaso linfático rompido. Criança arteira, bati o ombro numa viga de madeira e vi surgir um calombo gigantesco na minha homoplata. Levado ao hospital, sofri uma cirurgia que esvaziou a bolsa, mas não a retirou. O resultado foi que, 12 anos mais tarde, a fricção do músculo provocou novo preenchimento daquele espaço vazio. Resumindo: meu ombro ficou inchado e torto.
Como tinha direito ao bom renomado Hospital da USP, o HU, marquei uma consulta para avaliar o caso. O médico que me atendeu disse que a deformação no ombro não era perigosa para minha saúde, sendo apenas acúmulo de líquido, e que eu poderia conviver com aquilo quanto tempo quisesse pela vida afora. Disse também que seria possível fazer uma cirurgia, cuja função seria meramente estética, e que isso seria decisão exclusiva minha.
Pensei, pensei, pensei... Ia ser tudo de graça. E eu não queria aquele troço no meu ombro. E, de mais a mais, aquilo não era normal mesmo, sabe-se lá que consequências teria posteriormente.
Resolvi fazer a cirurgia. E essa decisão teve o dedo de Deus, como se verá adiante.
Havia duas datas possíveis para ir para a mesa de operação: uma nas férias que se aproximavam, outra dali a seis meses. Resolvi fazer o quanto antes porque não tinha viagem nem atividade programada. Fizemos os primeiros exames. Tomografias, chapas de pulmão. E a cada exame realizado, a cara dos médicos me parecia mais fechada.
Eu não entendia bem o que estava acontecendo, mas sentia algo estranho no ar. Em determinado momento, depois de passar por distintas opiniões de especialistas de várias áreas, um dos médicos que cuidava do meu caso afirmou:
- Ainda bem que você decidiu operar agora. Terá de ser às pressas, seu quadro se agravou muito. Você tem um higroma já de 17cm, crescendo e achatando seu pulmão.
Quem já leu "Pneumotórax", do Bandeira, pode tentar recuperar o clima daquele poema quando aparecem as pausas e o tracejado antes da segunda parte para entender um pouquinho do que eu senti ao ouvir aquilo. Posso dizer, simplificando, que tomei um susto e fiquei sem ação. Não houve tempo nem de me preparar psicologicamente: na mesma semana, estava internado para procedimento de emergência. E recebendo todas as orientações e todo o acompanhamento do então médico do HU encarregado de realizá-la: por sorte, o Doutor Dino Altmann.
Continua...
domingo, 26 de julho de 2009
Todos choram na TV
Fiquei incomodado com o fato de muitos dos programas que vi insistirem numa mesma fórmula apelativa: fazer chorar seus participantes. Na TV por assinatura, vi dois programas relacionados à aparência das pessoas, um chamado "10 anos mais jovem" e o outro "Esquadrão da moda". As meninas que protagonizaram esses programas queriam mudanças em seu visual, para parecerem mais belas ou mais sexys. São reality-shows interessantes, sem dúvida, cujos ápices são as transformações finais e o ganho de autoestima das participantes. Pergunto: nos dois casos, qual foi a reação que coroou essa mudança para melhor diante das câmeras? Resposta: o choro agradecido de ambas.
Além desses programas estrangeiros, vi os shows de auditório de Luciano Huck, Netinho de Paula, Silvio Santos, e outros de que não me lembro o nome. Em quase todos, há alguém despossuído, pobre ou desempregado solicitando algo, que lhe será dado em frente às câmeras - em troca de alguma apresentação, ou mesmo sem contrapartida - para que esse ser humano possa se sentir melhor de alguma forma. Novamente me chamou a atenção que o clímax dessa boa-vontade televisiva é, em 100% dos casos, o choro, mais ou menos contido, do beneficiado.
É impressionante o quanto o choro das pessoas comuns é explorado nos programas de televisão a que assistimos. Se é, na maioria dos casos, um choro de comoção pela conquista de algo, menos mal. Mas, depois de algumas horas na frente da tela, o telespectador fica com a impressão de que já viu aquela cena, e não poucas vezes. Será que a comoção não perde um pouco de seu efeito quando fica inserida numa lógica tão evidente, pouco criativa e previsível?
É curioso isso me incomodar, porque sou extremamente emotivo e choro com facilidade. Se o choro parece um recurso superexplorado até para alguém como eu, é porque tem havido, por certo, exagero. Creio que há outras manifestações da emoção humana tão transbordantes quanto as que tem sido exaustivamente exploradas pelos "shows da vida" que invadem nossas casas.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
Três reflexões a partir de Barry Lyndon
Com música e cenários primorosos, narra-se a pequena odisseia desse homem comum, suas aventuras, seus amores, seus desafetos, sua busca incessante de colocação. Não vou contar nada do enredo, isso é feio de fazer. Mas proponho três questões para discutir a atualidade da obra.
1) Kubrick trabalha o tempo todo com a ideia de que, para Barry, a inserção no mundo da elite europeia, ao qual aspira, depende de um esforço descomunal e de uma esperteza atenta aos vícios e concupiscências dos seus membros. Barry alcança estabilidade financeira porque se especializa no jogo de cartas e em seus truques, aproveitando-se do vício irrefreável de apostas comum a tantos nobres daquele tempo. Penso se não podemos traçar um paralelo entre esse comportamento e aquilo que vemos, por exemplo, em relação aos poderes paralelos da sociedade atual. Por exemplo, quando vemos traficantes e chefes de facções manipularem uma rede de influências que abarca advogados, juízes, policiais, deputados, empresários. Quando vemos, por exemplo, espertalhões que enriquecem com contrabando sendo chancelados, defendidos e até admirados pela alta sociedade, como no caso da Daslu. Pergunto-me se essa figura meio gatuna, meio bajuladora, meio bandida, uma espécie de penetra intocável, seria a resposta velhaca dos excluídos à hipocrisia vaidosa das elites, patente no descompasso entre o discurso de validação do poder e o violento processo histórico de consolidação dessa condição.
2) Kubrick, no finzinho do filme (isso posso contar porque não tem influência na história) coloca uma frase bonita, mais ou menos assim: "Bonitos ou feios, ricos ou pobres, bons ou maus, estes homens e mulheres aqui retratados são, hoje, todos iguais". Não sei se posso dizer que se trata da questão da morte como fator de nivelamento último dos homens. Acho que é mais que a morte: é a finitude da vida. Seja quem for, seja qual for a época em que viveu, cada ser humano é limitado por um tempo de estar no mundo, e um de seus maiores desafios é dar um sentido a essa limitação. A busca por esse sentido, que é diferente para cada indivíduo, é o que de certa forma o singulariza perante os outros. Mas, por outro lado, é também aquilo que ele tem mais evidentemente em comum com outros indivíduos, de outras épocas e lugares. Creio que, no fundo, quando nossas vidas forem olhadas da distância de séculos, pareceremos, em todas as nossas peculiaridades e escolhas, homens procurando algo, homens aprendendo a viver, homens descobrindo a si próprios. Será que essa é uma noção que não temos porque não olhamos nossas vidas de fora, nem de um tempo posterior, no qual já não estaríamos preocupados com o sentido imediato das coisas, e sim com o sentido que elas têm para o conjunto de nossa obra?
3) Barry, no filme, chega a cidades esvaziadas, onde encontra mulheres cujos maridos foram à guerra para retorno incerto. Com elas, tem relações passageiras, fugazes, desenganadas. O narrador diz que, para essas mulheres, foi necessário aprender a amar com certo despreendimento, para que pudessem tocar a vida sem a mágoa da perda (isto é uma paráfrase, mas o sentido é mais ou menos esse). Fiquei pensando se essa não seria uma reflexão sobre relacionamentos amorosos: se as formas de amar, ou aquilo que nós identificamos como amor, não dependem também, em grande medida, de nossas experiências históricas, de nossa cultura, das particularidades do tempo em que vivemos. Será que verdadeiramente compreendemos o modo de amar dos gregos, dos povos pré-colombianos, dos celtas? Se pensarmos que cada indivíduo tem uma história de vida a considerar: será que entendemos o que é o amor para outras pessoas? Se pensarmos que mesmo os conceitos têm uma história a considerar: será que isso que chamamos de amor é uma boa generalização para tantas formas diferentes de lidar com as paixões pelos outros?
Não cobro de Kubrick que essas questões sejam respondidas satisfatoriamente. Ele não precisa nem me dar pistas. Barry Lyndon tem tudo o que espero de um grande filme: ele me pede que eu reconsidere o que sou. Ele conversa com minhas inquietações.
Se você não viu, vale a pena.
segunda-feira, 6 de julho de 2009
Homens bonitos
Ocorre que os anos me fizeram descobrir que as coisas não são bem assim, que há muitas belezas possíveis para um indivíduo e - a mais encantadora das descobertas que fiz nesse sentido - que as mulheres em particular têm uma sensibilidade especial para identificar atrativos diferenciados nos homens.
Há um tempo atrás, li uma postagem do Idelber em que ele falava da beleza das mulheres de BH, comparada à aparência não destacável dos homens (na verdade, Idelber não cita esse aspecto, mas a tendência de eles serem desinteressantes no geral; eu já estive em BH, e fica por minha conta afirmar, pelo que vi, que, realmente, as mulheres de lá são muito mais atraentes que os homens, rsrs), e ressaltava que, nessa cidade, era muito comum ouvir a frase "mas o que essa mulher extraordinária está fazendo com esse zé-mané?". O texto era muito divertido, falava de homens e mulheres de várias partes do mundo. Mas, de tudo o que li, foi essa frase que me ficou na cabeça, talvez porque, no fundo, em algumas das situações por que passei, achei que ela pudesse se aplicar a mim...
Penso que essa sensibilidade diferenciada feminina que citei anteriormente faz com que a figura do homem-objeto sexual, fisicamente atraente, seja menos universalmente desejada que a da mulher-objeto sexual, com as mesmas características. Na academia que frequento, há muitos homens muito sarados, alguns com corpo totalmente trabalhado. É curioso notar que boa parte deles não faria nenhum sucesso com a maioria das mulheres do meu círculo de amizades. Qualidades como gentileza, bom gosto, erudição, delicadeza, têm muito mais condição de chamar a atenção dessas mulheres que um bíceps torneado. Sei que isso está longe de ser regra, mas percebo que há vários exemplos de homens que não são padrões de beleza mas são sempre citados como atraentes, em função de certos traços de suas imagens públicas que têm um apelo intenso, por vezes indefinível. Vou citar alguns, e vou tentar explicar o que vejo neles, que pode ser o que as mulheres veem também.
1) Ferreira Gullar. Esse homem, já na casa dos 70, é um grande poeta, um grande intelectual, mas ele tem um algo mais. Ele, falando, é muito envolvente, muito bonito. Ele deixa transbordar o sentimento do que fala. Lembro de ter ido a uma palestra que ele fez na USP. Em dado momento, ele disse que era, por sorte, casado com uma poetisa bem mais jovem do que ele. Não acho que seja sorte. Gullar encanta as pessoas com sua experiência de vida e a intensidade que emite. Talvez seja sorte dos dois. A verdade é que muitas pessoas concordam comigo nesse ponto: ele é um homem bonito, com seus longos cabelos brancos e seu rosto envelhecido, que parecem trazer ainda mais intensidade à sua figura.
2) Roger Federer. Outro dia vi Federer numa lista de homens mais elegantes do mundo. Em segundo lugar, mais precisamente. Não acho que ele seja nenhum modelo fotográfico. Se você vasculhar o tênis atual, vai descobrir corpos muito bem talhados, como o de Nadal, ou caras muito bonitos no geral, como Tommy Haas. Mas pergunte às fãs de tênis qual o tenista preferido. A resposta, aposto, será Federer. A chave desse sucesso está, acredito, no charme desse cara: ele é elegante jogando, falando, caminhando, atendendo fãs, chorando, fazendo o que quer que faça. É alguém que emana boas vibrações, que se mantém sempre sereno, que respeita os adversários e que tem uma postura absolutamente invejável para quem sofre a pressão do esporte de ponta. E é alguém que tem muito sucesso no que escolheu fazer, aspecto que, de forma alguma, pode ser considerado irrevelante. É alguém que tem elementos de sobre para ser admirado. E a admiração pode muito bem servir ao desejo, como sabemos.
3) Bono Vox. Bono tem traços de rosto superfortes, e creio que não teria tanto cartaz com as garotas se só o conhecêssemos pelas fotos. Mas Bono é extremamente carismático. É um tipão, inteligente, articulado, com um ar meio sério, meio irônico, meio misterioso. Quando ele sobre no palco, não há como desgrudar os olhos dele. Sem contar que se trata de um ser humano muito rico, cheio de ideias e boas intenções, e de um cara talentoso pra burro. Admito, ele sabe construir uma imagem bacana também, com um figurino sempre meio rebelde, e aparições constantes nos mais diversos eventos politicamente corretos. Eu acrescentaria uma outra coisa: acho que ele tem algo de intenso, de bruto, de explosivo, que também contribui para a construção de um aspecto másculo de sua personalidade.
Vou ficar com esses três exemplos, mas teria muitos outros. Em relação a estes, o que fica para mim é a noção de que, se as mulheres são, como dizem, misteriosas em seus desejos, talvez haja uma chance de homens que não são padrões de beleza terem alguma coisa mais intimamente deles e menos visivelmente de todos capaz de dialogar com esse mistério feminino.
Eu diria, assim, que a expressão que o Idelber citou como comum em BH é perfeitamente justificável em relação aos homens a que me referi. Se, para esses casos, eu ouvisse um: "Como pode aquela mulher com aquele cara?", teria como responder: "Pode, sim, meu amigo".
O machismo muitas vezes nos cega para a beleza dos outros homens, nas várias formas que ela pode tomar. Ter descoberto isso depois de adulto pode não ter sido tão grande vantagem no fim das contas, mas com certeza serve para orientar uma opção permanente pela autenticidade e pela confiança no próprio potencial, e para repensar essa paranóia coletiva da indústria do corpo perfeito.
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A Manu também leu a postagem do Idelber, e se manifestou aqui, como boa belorizontina que é. Obrigado, Manu. Seu comentário, aliás, me fez perceber que a parte final do texto, mais especificamente o vocativo "meu amigo", pode dar a entender que estou criticando o Idelber, como se ele subscrevesse o machismo a que me refiro adiante no texto. Só para não ficar parecendo outra coisa: o "meu amigo" é para o indivíduo que não se permite ver as belezas não padrão de outros homens. O Idelber, como fica bem claro na postagem, não é desse tipo, e não usa a expressão que destaquei no sentido que eu quis aproveitar aqui no blog. Para deixar isso mais evidente no texto, fiz umas alterações em azul, mantendo o original em negro, tanto quanto possível, e recuperando o que o Idelber escreveu com mais justiça e precisão.
Viva, Manu! Saúde e felicidade a minha querida amiga de BH!
domingo, 28 de junho de 2009
O povo
Mas uma frase do Paulo nas entrevistas gravadas para o filme foi o que mais me chamou atenção. Ele diz, logo no começo, alguma coisa como: "O povo todo mundo, desse eu gosto bastante. Eu não gosto do povo cada um".
Essa sacada eu achei genial, não só pelas expressões "povo todo mundo" e "povo cada um", que sintetizam com poesia os aspectos de todo e parte do conjunto dos cidadãos. O que me pegou foi a percepção de uma questão de fundo filosófico muito presente na obra de um compositor tão ligado à sua cidade. A questão é: é possível gostar do povo sem entender o que é o povo? Quando julgamos captar a "essência" disso que é o povo, não acabamos perdendo os aspectos da diversidade, da individualidade, da exceção?
Quero tentar fazer aqui, a partir desse viés de interpretação, um exercício de reflexão bem particular . Sinto que, para mim, a frase de Vanzolini poderia se inverter. Tenho dificuldade de gostar do "povo todo mundo", e facilidade em gostar do "povo cada um". Sempre fiquei ponderando, mesmo antes de estudar Filosofia, que amar a humanidade, o povo, a nação, é muito difícil, a não ser que eu amasse apenas aquilo que os simboliza. É possível, por exemplo, uma mesma pessoa chorar ao ouvir o Hino Nacional e afirmar que "lugar de nortista é fora de São Paulo". Conheci muitas pessoas assim, e tenho dúvidas se elas realmente amam a nação. O que é nação para elas? A seleção brasileira jogando, a bandeira hasteada, a palavra "Brasil"? Não deveria ser a compreensão da necessária integração cultural entre as pessoas de diferentes partes do país?
Por outro lado - e repito, isso é uma visão muito particular - acho que o preconceito, o medo, a intolerância diminuem muito, mas muito mesmo, com a convivência e a troca. Viajei ao Rio de Janeiro há dois anos, e fiquei na casa de amigos de minha família. A companhia dessas pessoas, o carinho com que me trataram, a disposição de me levarem para conhecer lugares foram coisas que fizeram com que minha impressão sobre o Rio fosse absolutamente positiva. Mas ainda assim não sei se posso dizer que "amo o Rio". Porque o Rio é imenso, tem muita gente, muitos lugares que não são tão turísticos, muitos problemas, e não sei se tudo isso está fora ou dentro de minha forma de sentir essa cidade tão complexa. O que posso afirmar com convicção é que fiz muitos amigos no Rio, e deles gosto sem reservas. Foi assim em Vitória da Conquista. Foi assim em Gramado. E isso me faz crer que tenho muito mais facilidade de gostar das pessoas quando as conheço mais intimamente do que quando nada sei sobre elas. Então, considero mais difícil para mim dizer que gosto do "povo todo mundo".
Admito ter um pé atrás em relação às generalizações. Algumas parecem-me demasiado gratuitas. Como professor, não gosto muito de falas do tipo "o aluno de hoje é assim", "o professor de hoje tem de ser assado", "a criança se comporta de forma X". Uma das coisas que aprendi em sala de aula é que, se você não quer excluir, deve tentar ver as pessoas como são, e não como deveriam ou parecem ser. Alunos são diferentes, classes também, escolas idem. Fora do âmbito profissional, também não gosto de coisas como "quem faz isso é porque é aquilo", ou "isso é coisa de x, y ou z". Toda pessoa comporta um universo de coisas interessantes (quem disse isso foi a Beatriz Bracher, numa gravação do programa Letra Livre da TV Cultura à qual tive a felicidade de assistir), e isso é o que mais me estimula a viver cercado de gente de todo a sorte.
Há uma citação do genial Mikhail Gorbachev no livro de História com o qual trabalho nas 8ªs. séries (História, Sociedade e Cidadania, de Alfredo Boulos) que gostaria de trazer como contribuição. Consta que ela tenha sido extraída do livro Perestroika: novas ideias para o meu país e o mundo:
Penso que aqui seja adequado destacar uma característica especial do
socialismo: o alto grau de proteção social. (...) Mas constatamos também que
pessoas desonestas tentam explorar essas vantagens do socialismo. Conhecem
apenas seus direitos, mas não querem saber de seus deveres. Trabalham mal,
esquivam-se do trabalho e bebem demais. Há um grande número de indivíduos que adaptou as leis e costumes vigentes para servir seus próprios interesses
egoístas. Dão pouco à sociedade mas conseguem, apesar disso, obter tudo o que é
possível dela, e até mesmo o que parece ser impossível: vivem de rendas
imerecidas.
Essa parece-me ser uma outra forma de pensar a dicotomia entre "povo todo mundo" e "povo cada um". E vê-se aqui que essa não é uma questão qualquer: determinou o fim de uma era na história de nosso tempo. O grande estadista russo percebe, com clareza, que não há um "povo geral" para ser governado, e que aquilo que foi feito pensando no benefício de todos não é, necessariamente, valorizado por cada um. Percebe, ainda, que há diferenças individuais, notadamente as de mérito e de caráter, e que é preciso governar considerando essas diferenças. Percebe, enfim, que uma das grandes falhas do socialismo foi desconsiderar os indivíduos em função do conjunto que constituem, como se esse conjunto fosse homogêneo e unitário.
Poetas são poetas porque percebem primeiro. Vanzolini canta aquilo que é comum a muitos paulistanos, e consegue descobrir expressões simbólicas eficientes para dramas cotidianos de milhões de pessoas. Suas personagens são todo mundo, mas ele sabe que não são, ao fim, ninguém em particular. Gorbachev, por sua vez, homem público, não lida com personagens de canções. Lida com criaturas concretas de carne, osso e espírito, às vezes de porco. Em sua experiência, o povo "poético" dá lugar ao povo "político", um conjunto de forças que se unem e digladiam conforme a conveniência. Eu não tenho como olhar tão de cima, como eles. Mas em minha convivência com exemplares avulsos dessa coisa chamada "povo", posso entender um pouco do sentimento que quiseram passar.