quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Memória seletiva

Hoje, enquanto esperava minha mulher finalizar as compras de Natal, fiquei fazendo nada na Saraiva do Shopping. Enquanto não fazia nada, deu tempo de ler "Relato de um certo oriente", do Milton Hatoum (ótimo), algo sobre figuras de linguagem, e as orelhas de uns livros de poesia. Como estava com sono, me rendi à publicidade do café Starbuck, grandão e chamativo, que se vende lá dentro. Pedi um Frapuccino Mocha do maior, porque o sono era bravo.
Assim que comecei a sorver o líquido, constatei duas coisas. Primeiro, que aquilo era um horror, não tinha gosto nem de café, nem de shake, nem de nada que me comovesse, e ainda por cima era caro pra dedéu. Mas a segunda constatação foi a mais interessante.
Tão logo o gosto terrível da bebida da moda arrepiou meus cabelos, lembrei-me de que já havia experimentado uma vez a mesma bebida, e já tinha achado horrível. Simplesmente me esqueci disso quando comprei: que o produto já havia me decepcionado. Não sei se não achei tão ruim a ponto de gravar um gigantesco "não compre" no meu cérebro, ou se justamente achei tão ruim que apaguei a sensação relacionada àquela experiência. O fato é que só fui lembrar que não gostava daquilo quando experimentei de novo.
Sou um consumidor preguiçoso e tenho dificuldade de guardar marcas, ou associá-las a características que as singularizam. Mas nunca pensei que pudesse ser tão distraído a ponto de fazer a mesma besteira duas vezes. A verdade é que nem pensei em nada, minha preguiça me disse "vai no primeiro café que você vir na frente" e fui com tanta fé que me esqueci justamente do mais importante, que não gostava daquele. O pior é que tomei quase tudo, porque sou daqueles que, depois de pagar, não aceitam jogar nada fora. E o meu nem veio com chantilly, porque estava em falta...
Li numa página da net coisas interessantes sobre inibição latente, um processo psicológico que faz com que percebamos as coisas a nosso redor de acordo com as nossas necessidades e interesses. Seria assim: um cozinheiro, por dever de profissão, prova um determinado prato e diz, pelo paladar, quais ingredientes foram utilizados e em que proporção. Eu, que não cozinho, só como, provo um prato e não presto atenção nisso, apenas registro mentalmente se ele é gostoso ou não. Os psicólogos dizem que precisamos ter essa tal inibição latente para não pirarmos, pois é impossível lidarmos com todos os estímulos que recebemos. Por outro lado, eles também dizem que a baixa inibição latente é característica dos indivíduos criativos, tal como dos indivíduos loucos. Perfeitamente compreensível: quem vê o mundo de maneira diferente é porque recebe e responde estímulos diferentes, em função de uma experiência interior que não é a da maioria das pessoas.
Minha memória é um primor de inibição latente. Não fotografo mentalmente as coisas, não sou bom para seus detalhes, não lembro de nomes, esqueço rostos e situações com facilidade, esqueço de coisas que acabaram de me falar. Lembro somente do que os fatos e as coisas representaram para mim no momento em que os experienciei, e quase sempre fico só com essa impressão geral (bom, ruim, legal, chato...) e olhe lá. Quando se trata de consumo, então, a inibição atinge o nível máximo, porque algumas coisas simplesmente não representaram nada, ou foram tão insignificantes que nem consegui desgostar delas, ou foram tão desgostosas que eliminei da lista de relevância. O problema é que a força do marketing, aproveitando-se da preguiça mental, é capaz de driblar essa desimportância das coisas com muita desenvoltura. E lá vai o bobão aqui ser enganado de novo, com todas as armas para não ser. E o pior é que nem tenho coragem de dizer que não acontecerá uma terceira vez. Se bobear, até escrevo sobre isso de novo no blog. Às vezes, desacredito do que sou capaz...

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