sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O ano que se vai

Em 2010, eu me mudei para uma casa minha e de minha mulher, no centro de São Paulo. Descobri alguns limites (físicos e psicológicos) importantes. Superei dois cálculos renais de 15mm, não sem muita luta, dor, e apoio de quem me ama. Ministrei o melhor curso de minha vida, Literatura Portuguesa 1, com foco em Camões. Descobri que posso cantar, e que tenho escritos publicáveis. Fiz uma disciplina sobre canção popular com Luiz Tatit que mudou tudo o que eu pensava sobre música popular. Divorciei-me oficialmente. Terminei todas as disciplinas EAD do curso de Pedagogia da Uninove, mas não consegui terminar todos os estágios, nem o TCC. Cuidei de seis disciplinas em plataforma EAD na FIP, e aprendi um pouco mais sobre essa modalidade de ensino.
Algumas coisas também ficaram para trás. O ano de 2010 foi meu último ano de trabalho na EMEF Dona Chiquinha Rodrigues, e meu último ano de residência no Campo Belo, alojado pelo inesquecível Senhor Alberto.
Algumas coisas que ainda não colhi em 2010 esperam-me em 2011. Continuarei meus estudos sobre canção, almejando doutorado. Esperarei algumas chamadas de concursos realizados. Resolverei minhas pendências com a Uninove e conseguirei minha terceira graduação. Tenho, ainda, muitas expectativas em relação a novas perspectivas profissionais, e em relação à pós graduação em CIEJA, que inicio em fevereiro.
2010 foi um ano de muita sementeira, muita espera, e também muito sofrimento. Para um batalhador, como eu, teimoso, insistente, sempre apto a ir até o fim em todos os assuntos da vida, foi um ano de incomparável aprendizado. Mas eu quero mais e melhor. Dos frutos que sei que colherei em 2011, ainda extrairei sementes para novas sementeiras.
A grande lição de 2010 foi: cuide bem de si mesmo, pois isso depende mais de você que de qualquer outra pessoa. Se eu não cuidar de mim, não posso cuidar de mais ninguém.
Que venha 2011. Eu me sinto pronto. Não por ter todas as armas, mas por estar apto a aceitar todos os fados.
Feliz ano novo a todos os meus leitores.

Feliz 2011

Feliz 2011 a todos.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Índice da série "Balanço da eleição"

Acabo de finalizar a série de postagens "Balanço da eleição". Para que não seja lida de trás para frente, esquematizei a sequência correta, já linkada, para quem tiver a disposição de acompanhar o raciocínio até o fim. Sei que o assunto já deu, mas acho que o esgotamento possibilita, no fim das contas, uma análise mais lúcida, menos apaixonada do que ocorreu. Segue a lista das postagens, conforme o prometido no plano, há mais de mês. Para ler, basta clicar em cima:

1) a campanha do medo;
2) a campanha da mídia;
3) o menosprezo do adversário;
4) a ausência geral de programas;
5) a questão do aborto;
6) as derrotas da democracia;
7) as pesquisas;
8) o presidente Lula;
9) a religião e o estado laico;
10) as escolhas que fiz e por que as fiz.

Em outro blogue: o caso da bolinha de papel.

Obrigado a todos pelas leituras.

Balanço da eleição -10 - As minhas escolhas

Eu sempre voto, pois creio que, por mais defeitos e imperfeições que carregue, a democracia não é uma farsa. Ela pode ser insuficietne, excludente, cheia de problemas, mas ela é sempre um indicativo mais seguro e honesto que as outras formas de representação. Por isso, não voto nulo, e também tenho consciência de que faço uma escolha entre as possibilidades oferecidas, e não uma adesão cega a uma ideologia. Posso criticar quem ajudei a eleger, sem problemas. Faz parte do jogo.

Para deputado estadual, votei em Eduardo Amaral, do PSOL, porque o conheço muito bem (fui seu colega na Faculdade de Filosofia) e sei de sua defesa apaixonada pela educação pública, gratuita e de qualidade. Sei também que ele faria oposição consciente e consistente à gestão Alckmin nessa área (eu já tinha bem claro que Alckmin seria eleito). Votei na pessoa, com ressalvas em relação ao partido, e ele não se elegeu.

Para deputado federal, votei em Ivan Valente. Também um coerente defensor da educação, Ivan fez um bom papel na última legislatura, e achei que ele merecia um segundo mandato. Eu tinha dúvidas sobre a eleição de Dilma, então achei que um deputado do PSOL seria oposição em qualquer circunstância, e a causa da educação não estava bem representada em nenhuma das candidaturas com chance de vitória. As mesmas ressalvas ao partido que fiz no caso do Eduardo valem para o Ivan, que conseguiu se eleger.

Para governador, votei em Aloísio Mercadante, porque representava uma possibilidade de rompimento com a sequência de governos tucanos em São Paulo, que, para mim, já esgotou sua viabilidade. Não gosto do que Aloísio pensa em relação à educação, aprovo sua visão de segurança pública e tenho ressalvas ao PT paulista, que não se estendem ao PT nacional. As outras opções, considerei-as incógnitas políticas: Skaf e Russomano (este último, sem chance, por estar na legenda de Maluf). Aloísio não foi eleito.

Para senadores, votei em Marta Suplicy, por suas ideias sempre arrojadas e por ter gostado de sua atuação como prefeita, e em Marcelo Henrique, do PSOL, por exclusão e quase como um voto na legenda. Excluí da lista Aloysio, por ser tucano, Quércia (descanse em paz), pela administração questionável, Tuma (descanse em paz), por discordâncias fundamentais, e Netinho, embora fosse o segundo nome da coligação do PT, por considerá-lo fraco como artista, como figura pública e, principalmente, como vereador, sendo sua candidatura mero oportunismo eleitoral do PC do B. Sobrou votar na pequena esquerda, e entre PCO, PSTU, PV e PSOL, fiquei com o último. Ok, PV não é de esquerda, não nesse momento, concedo. Marta foi eleita, Marcelo Henrique, não.

Para presidente da República, votei em Dilma Roussef, porque estava satisfeito com o governo Lula e não via perspectivas reais de continuidade com melhoria nem em Serra, nem em Marina. Admiro Marina como figura pública, mas considerava impossível que ela governasse com a configuração de Congresso que se desenhava, e tinha sérias dúvidas sobre a formação de sua equipe, que, no final, é quem governa. Não considerei a hipótese de votar em José Serra porque, a despeito de respeitá-lo como figura pública e político tarimbado, entendi que sua coligação abrigava o que havia de pior e mais atrasado no conservadorismo brasileiro. Dilma foi eleita.

Não me arrependo de nenhum voto, porque papai dizia que só devemos nos arrepender do que não fizemos. Mas não estou seguro de nada, e entro em 2011 como um genuíno cidadão brasileiro, apto a cobrar resultados e exigir o cumprimento das plataformas dos nossos representantes. Espero poder continuar contribuindo com a democracia mesmo depois do final das eleições.

Balanço da eleição - 9 - A religião e o Estado

A dois dias da vitória de Dilma Roussef, quando a eleição encaminhava-se já sem grandes sobressaltos para a confirmação do que as pesquisas vinham apontando nas semanas anteriores, uma orientação do papa Bento XVI indicava ser legítimo à Igreja intervir em questões políticas, guiando o voto dos fiéis. Não sou Católico, embora tenha passado por quase todos os sacramentos, e considero legítimo, sim, que as Igrejas, enquanto instituições religiosas, se pronunciem sobre os assuntos que entenderem importantes do ponto de vista da fé. Mas uma coisa me incomodou muito, muito mesmo.
O grande debate do início do segundo turno da eleição foi a já aqui analisada questão do aborto. E, dentro desse debate, víamos as instituições religiosas pronunciarem-se de forma taxativa e absoluta, por meio de seus líderes locais, dizendo que candidatos X ou Y não mereceriam o voto por se colocarem em posição não taxativa ou dúbia em relação a essa questão. Vejo desequilíbrio nesse caso. Isso não é orientação. Orientação seria pedir para que os devotos considerassem também essa questão na hora de votar. Definir para o devoto em quem ele deve votar é fazer propaganda política, é tomar partido explícito e justificar por razões de fé.
Mas esse desequilíbrio do líder parece-me ter uma raiz no desequilíbrio psicológico da sociedade em geral. Não considero normal que uma pessoa, por mais fé e devoção que tenha, defina seu voto pela fala de um padre ou de um pastor. É claro que ninguém se considera em condições de debater com Deus, mas considerar os líderes religiosos como infalíveis e inquestionáveis representantes de Deus na Terra é assustador numa sociedade democrática e pluralista. Até porque, dentro das mesmas Igrejas, diferentes pastores e padres fazem diferentes pregações, abordam diferentes temas, têm diferentes visões de mundo.
Parece-me, entretanto, que esta eleição revelou à sociedade civil seu inimigo ideológico mais nocivo: o fundamentalismo religioso. Enquanto ele foi utilizado para arrancar dinheiro de fiéis, ou garantir presença em grandes eventos, ou realizar grandes intervenções coletivas, ele não pesou politicamente, não incomodou, permaneceu como uma incógnita. Mas, convocado pela campanha de Serra, esse modo doentio de encarar a realidade revelou ser a visão de mundo de milhões de brasileiros, em várias partes do país. A relevância política do fundamentalismo religioso poderia ser encarada como mais uma das forças de mobilização da sociedade, mas existe algo nela que me incomoda em particular, que é o fato de que a palavra religiosa dos líderes não é alvo de crítica, especulação, debate, ou contestação possível.
A intervenção do papa Bento XVI é, na verdade, correspondente às dos pastores evangélicos em suas áreas de influência, com a diferença de que o Catolicismo é mais centralizado. E ela se dá num contexto histórico específico: a Igreja Católica está se aproximando do fundamentalismo e está disposta a exercer maior influência política nos países em que predomina. Essa é uma equação tão perigosa quanto a associação de quadros dos partidos às igrejas evangélicas, resultando, como se sabe, em dúzias de concessões de rádios e emissoras de TV para as mesmas.
Eu acredito em Deus e considero Jesus Cristo a figura mais fascinante da Humanidade. Posso discutir minhas crenças e meus valores relacionados ao que tenho de mais místico, sem nenhum problema. Mas entendo, perfeitamente, que a religião oferece-me uma visão alegórica, incompleta, necessariamente parcial da realidade. A religião não é o arbítrio, a religião não é a verdade. Podemos nos conduzir por ela, mas ainda seremos nós os condutores, e ela, o instrumento. O fundamentalismo religioso tira do indivíduo sua responsabilidade sobre o mundo e sobre si mesmo, porque lhe oferece escolhas prontas, e não elementos para que ele as realize.
Nesse contexto, combato, em nome da democracia, todo e qualquer tipo de fundamentalismo religioso, e toda ação que se encaminhe para isso. Assim como considerei suja e inconsequente a campanha que demonizava Dilma como abortista e Temer como anticristo (o fundamentalismo tem muito de imbecil, como nesse caso), considerei inoportuna a intervenção de Bento XVI. Ele poderia ter dito isso depois da eleição, ou bem antes dela. Não foi coincidência, foi uma tentativa de medir poder. Eu posso criticar o papa porque não sou católico, e não sou candidato a nada neste Brasil majoritariamente católico, mas acho que as palavras do católico presidente Lula são perfeitas como resposta: "o Brasil é um Estado laico". E tem de ser um Estado laico. E num Estado laico, as Igrejas são respeitadas, têm liberdade para suas pregações e seus ensinamentos. O Estado respeita a religião.
Por isso, a contrapartida precisa ser verdadeira: a Igreja precisa respeitar o Estado. Precisa respeitar os processos democráticos, que implicam divergências, debates, convivência de opiniões contrárias. Se a Igreja quer contribuir com o jogo democrático, e, em consequência, com o Estado, pode adentrar nesse campo para oferecer subsídios às divergências, aos debates, às opiniões que se contradizem. Se a Igreja, entretanto, entende que deve entrar no jogo com as cartas marcadas, aproveitando-se da liberdade que tem em relação ao Estado para diminuir o espaço do embate de ideias, creio que presta um desserviço à democracia, e desvia-se de sua função precípua, que é a condução da humanidade por um caminho mais digno e edificante.

Balanço da eleição - 8 - O presidente Lula

Escrever um texto sobre o peso do presidente Lula na eleição de 2010 seria chover no molhado. Lula foi a eleição. Mesmo considerando todos os méritos de Dilma Roussef, e não são poucos, sem o apoio e a participação do presidente na campanha ela não teria a mínima chance contra José Serra. Dilma não era conhecida, não era uma figura popular e, como Serra, não transparecia aquele carisma que é a marca inegável do atual presidente.
A alguns dias do primeiro turno, Mônica Waldvogel (vídeo editado aqui, o não editado é encontrável também) entrevistou dois cientistas políticos conceituados, perguntando a eles quais seriam as estratégias da candidatura Serra para evitar a derrota. Eles não sabiam dizer, e consideravam improvável um resultado que não fosse a vitória de Dilma. Mônica chegou a se irritar com o que afirmavam os especialistas, mas eles faziam, ali, seu papel de intelectuais: analisando os fatos, a verdade é que o apoio de Lula definiria a eleição. Mesmo nos momentos iniciais do segundo turno, quando o jogo parecia ter embolado, não houve nenhuma diferença entre Serra e Dilma que indicasse qualquer outro resultado que não a vitória da ministra.
Quem deu a resposta que Mônica queria foi a equipe de campanha de Serra. Era preciso atacar Dilma, e tomar cuidado para não atacar Lula. A tática funcionou. A figura de Dilma, descolada da de Lula, passou a ser sistematicamente atacada no ethos, no caráter, na essência. O golpe foi forte e baixo, como sabemos, e, associado ao crescimento da não-atacada Marina, construiu as condições para o segundo turno.
Mas no segundo turno, Lula engajou-se ainda mais, ganhando as ruas com sua candidata, atacando Serra no caso da bolinha de papel, mostrando-se o grande fiador de sua criação. Serra ficou de mãos atadas, pois não poderia apresentar-se como adversário de uma figura com tamanha aprovação popular.
A associação de Dilma com a continuidade da gestão de Lula era tão evidente que a vitória da ex-ministra foi concomitante ao atingimento dos mais altos índices de aprovação por parte de Lula. Expondo-se publicamente, aparecendo na campanha, Lula se tornou ainda mais popular.
É impossível não considerar Lula como o grande vitorioso da eleição. Fernando Henrique Cardoso conseguiu duas vitórias contra Lula, mas Serra fez de tudo para se desvincular de sua imagem quando disputou as eleições pelo PSDB. FHC não tinha condições políticas de fazer seu sucessor, e isso era decorrência dos problemas de administração no seu segundo mandato. Lula, pelo contrário, fez sua sucessora, e fez isso com alguém que não tinha, em 2010, nem um décimo da popularidade que Serra já tinha em 2002.
Se quisesse, Lula conseguiria um terceiro mandato. FHC mudou a Constituição e fez uma série de desastrosas negociações para conseguir seu segundo mandato, que acabou manchado pelos compromissos políticos assumidos para obtê-lo. Lula, ao contrário, tinha o trabalho de negar que pensava em mudar a Constituição e candidatar-se mais uma vez para uma vitória certa, possibilidade que era aventada por pesquisas que indicavam que a maior parte da população tinha esse desejo. Inteligentemente, e com a preocupação de consolidar as instituições democráticas, Lula preferiu o caminho da construção paulatina de um sucessor. Os tucanos não acreditavam nessa aposta, e declararam, várias vezes, que Dilma não poderia vencer um político já tão conhecido e tarimbado como José Serra. Dilma não poderia, evidentemente, mas Lula pode. E venceu.
Esta foi a primeira eleição direta, desde o fim do regime militar, em que o nome de Lula não aparecia na cédula. Mas, depois das derrotas para Collor e FHC, e das vitórias sobre Alckmin e Serra, parece que a candidatura Lula se tornou permanente, vitalícia, sendo apresentada como dele mesmo ou como de um representante de sua forma de governar. Em 2014, saberemos se essa perspectiva se consolida, ou se o povo esquecerá os 87% de aprovação de seu líder mais carismático.

Balanço da eleição - 7 - As pesquisas

Um dos temas mais comentados durante toda a eleição foram as discrepâncias de números entre as principais pesquisas de opinião, o IBOPE, o Datafolha, o Sensus, o Vox Populi. Muitos dilmistas achavam os números do Datafolha e do Ibope incoerentes com a ascensão da candidata petista, mostrando saltos bruscos e vertiginosos. Os serristas consideravam o instituto Sensus e o Vox Populi como sem credibilidade, especialmente o último, por ter sido o que mais distante ficou do resultado de urna do primeiro turno.
Vamos aos fatos. O primeiro turno apresentou, em seu final, um quadro de queda da candidatura Dilma e de ascensão da candidatura Marina. Esse quadro se acentuou nos últimos dias, e os institutos mostram tendências, não resultados efetivos. Todos os institutos mostraram essa tendência, embora nenhum deles tenha conseguido prever onde ela acabaria. No resultado final das urnas, houve uma surpresa, mas nada que não estivesse sendo detectado, inclusive como possibilidade real, pelas pesquisas.
Muitos aproveitaram esse momento para desqualificar e vilipendiar os institutos de pesquisa. Curiosamente, uma semana depois, estavam os dois lados da briga lá, em frente à telinha, esperando ansiosamente as novas informações advindas das fontes que desqualificaram.
O segundo turno mostrou um índice de acerto muito maior das pesquisas. Umas acertaram em cheio, outras dentro da margem de erro. Institutos de pesquisa vendem credibilidade, e não podem errar de forma grosseira em hipótese nenhuma. Pode ser que uma ou outra pesquisa tenha tido um acerto aqui, ou um erro ali, mas os institutos não podem manipular tão descaradamente a informação, sob pena de perderem o cliente, que quer dados confiáveis.
No geral, os institutos acertaram, como era de se esperar. Na maioria das vezes, eles acertam.
O que me chamou a atenção, entretanto, foi a exagerada relevância dada pela mídia e pelas equipes e apoiadores dos candidatos às pesquisas de opinião. Os marqueteiros pautaram nelas a propaganda política, inclusive as guinadas ideológicas, o que eu considero absurdo. Pesquisas indicam tendências, mas candidatos não são meros produtos do mundo do espetáculo. Há muito mais em jogo que a adequação aos padrões psicológicos imediatos do inconsciente coletivo. Dois anos antes da eleição, a Folha publicava pesquisas com José Serra na frente. Que importância tem a posição de um candidato numa pesquisa realizada dois anos antes da eleição? A um mês da eleição, Dilma estava com o dobro dos votos de Serra nas pesquisas, e o PT considerava a eleição ganha. Quem pode vencer uma eleição um mês antes? E, acima de tudo isso, que raio de postura política é essa que não confia nos próprios valores, tentando reencapá-los cada vez que um sinal de derrota é evidenciado?
A única pesquisa que tem valor definitivo é a da urna. As outras receberam mais atenção que essa, injustamente.

Balanço da eleição - 6 - As derrotas da democracia

As postagens anteriores já apontaram alguns dos fatores que considerarei como problemáticos para as instituições democráticas, dentre eles a cobertura tendenciosa da mídia, a exploração fundamentalista de questões importantes, a ausência dos planos de governo, a agressividade desenfreada no lugar do debate de propostas. Quero ressaltar, entretanto, que o próprio fato de conseguirmos eleger, por decisão soberana, um presidente da República pela sexta vez seguida é notável, dada a nossa extensa lista histórica de ditaduras e eleições com cabresto. No saldo geral, é evidente que a democracia venceu. Mas creio terem havido algumas baixas nessa batalha.
Além das questões que citei no parágrafo anterior, creio que saímos desta eleição com um vazio de pautas. Há duas tendências hegemônicas na política brasileira: o lulismo-petismo, e a tucanagem. Ambas amadureceram politicamente e construíram seus espaços, maiores ou menores conforme a oportunidade. Entretanto, ambas as tendências são muito mais estruturas de agrupamento ideológico para manutenção do poder que correntes de sensibilidade política, ou algo que valha. Elas digladiam-se entre si, mas não por ideias, propostas, busca de pontos em comum, convicções. Soninha saiu do PT e apoiou Serra para presidente; mudou radicalmente de lado sem maiores consequências, em menos de dois anos. Gabriel Chalita fez o caminho inverso: pulou do PSDB para a campanha de Dilma, chegando a ajudá-la na questão do aborto. Roberto Freire, uma das mentes mais lúcidas do comunismo brasileiro, descambou para um antilulismo estranho, tosco, infeliz. É perfeitamente possível que as pessoas mudem de opinião, mas é curioso notar como elas pulam livremente de um lado para o outro sem pudores ou tempo de maturação/adaptação. Para mim, isso é sinal de que qualquer um dos lados pode abrigar e acomodar o discurso de Soninha, de Chalita, de Freire, exatamente porque não há convicção programática, política ou ideológica nem no bloco lulista, nem no antilulista. Os blocos são grandes guarda-chuvas políticos, e não agrupamentos por valores e modos de compreender o mundo. Evidentemente, há diferenças, e elas não são poucas nem desprezíveis; mas há, também, muitas semelhanças, há consensos possíveis, há valores em comum. Há muita coisa que às vezes pode até ruir em função das rusgas e trincheiras pelo poder.
Eu espero há tempos uma terceira via, uma uma via alternativa, um projeto novo de poder e de sociedade, que possa mostrar-se digno da confiança da população. Marina pareceu a muitos essa alternativa, mas ela ficou no meio termo, acenando ora para um lado, ora para o outro, e não chegou a apresentar algo efetivamente novo. Até porque, vencendo, ela teria de compor com essas tendências hegemônicas, e seria muita cara de pau negá-las completamente nessas condições. O PSOL tem quadros interessantes, mas seu programa ainda não me convenceu por completo.
Enfim, torço para que os próximos anos vejam o surgimento de novas forças políticas e o crescimento de partidos com propostas inovadoras. Porque senão, a julgar por esta eleição, os debates serão ainda mais pobres em matéria de ideias. E democracia, para mim, é muito mais a possibilidade de existência de minorias que a garantia da vitória das maiorias.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Balanço da eleição - 5 - A questão do aborto

Aproveitando a (já comentada) ausência do programa partidário petista como projeto de governo, o final do primeiro turno assistiu a uma das mais bem montadas armadilhas políticas de que já tive conhecimento. Trata-se da questão do aborto.
Para explicar o porquê de considerar essa questão uma armadilha política, tratarei do assunto com um pouco mais de abrangência, explicitando minha posição íntima, minha posição de cidadão, minha compreensão da profundidade da questão, a posição dessa discussão no debate político e as razões pelas quais considerei a forma como esse debate foi conduzido uma leviandade eleitoral.
Em primeiro lugar, explicito minha posição particular. Não sou a favor do aborto por convicções religiosas e filosóficas, e por experiências que tive em minha vida, que sempre me indicaram que a interrupção da gravidez devesse ser a última opção. Acho que não preciso entrar em detalhes nesse caso.
Em segundo lugar, explicito minha posição como cidadão. Sou a favor da descriminalização do aborto até o quarto mês da gravidez. Explico. Minhas convicções particulares, exatamente por serem particulares, não podem ser estendidas para toda uma sociedade. As mulheres abortam por inúmeras razões, desde econômicas até físicas. Não é possível estabelecer, para cada caso, uma lei específica, que diga respeito à situação em questão. Além disso, é preciso ser razoável. O aborto já é ilegal e continua sendo praticado. Não é a permissão ou proibição da lei que mudará a prática do aborto na sociedade. Mas a proibição tem grandes desvantagens, como o despreparo dos hospitais para atender às mulheres que abortam, o estabelecimento de níveis diferenciados de assistência para mulheres pobres e ricas, a impossibilidade de atuar sobre o grande número de complicações pós-aborto que costumam ocorrer, a impraticabilidade de uma oferta de assistência educacional e financeira do estado para as mulheres que manifestassem dúvida em realizá-lo. Por tudo isso, e por entender que a descriminalização é, na verdade, uma forma de salvar vidas (de mães e filhos), porque permite maior atuação do Estado, creio que esta seja a melhor saída nos dias atuais.
Devo deixar claro aqui, ou, no caso de já estar claro, devo explicitar com mais ênfase que não sou abortista por convicção, mas acredito que o aborto seja muito mais um problema de saúde e educação que de legislação criminal.
Em terceiro lugar, é preciso compreender que essa é uma questão muito profunda e delicada. Alguns pontos precisam ser discutidos quando se fala de aborto, e esses pontos tendem a ser pouco pacíficos. Alguns deles: o que é o direito à vida e até onde ele pode ser estendido? O que é o direito da mulher sobre seu próprio corpo? Qual a obrigação do Estado diante da iminência do nascimento de um novo cidadão? Por que o aborto é uma prática social tão disseminada? Quais são as ações educacionais que devem ser tomadas para garantir uma decisão esclarecida das mulheres? Quais são as ações que devem ser tomadas para garantir o aborto, caso seja legalizado, como direito para as mulheres que querem realizá-lo? Instituições vinculadas a grupos religiosos podem se recusar, por princípios éticos, a realizar abortos em hospitais que financiem? O Estado é laico mesmo quando a sociedade é religiosa? O código de ética dos médicos garantiria o direito dos mesmos a fazer ou não fazer a intervenção abortiva?
E haveria mais uma penca de perguntas a se fazer, porque há muitos problemas envolvidos. Essa questão exigiria um amplo debate nacional, uma mobilização permanente de vários setores da sociedade, uma disposição de ouvir religiosos e laicos, esquerdistas e direitistas, engajados e alienados, e tentar encontrar soluções, se não consensuais, pelo menos mais abrangentes. Não seria possível reduzir uma discussão tão profunda e importante a uma questão legal, e muito menos querer encontrar uma solução definitiva levantando-a como bandeira no meio de um debate polarizado e programaticamente pobre como foi o do pleito presidencial.
A última afirmação requer certo cuidado no texto. Alguém poderia contra-argumentar: "mas o aborto é uma questão social importante, e devemos saber o que os candidatos pensam a respeito". Não tenho dúvidas disso. O problema é que a questão do aborto não foi apresentada como um tópico de discussão entre outros, mas sim como uma questão resolvida, encerrada e evidente por si mesma, por meio da qual se distinguiriam as pessoas do bem (contrárias ao aborto) e as do mal (favoráveis). Foi uma questão usada pelas linhas auxiliares do candidato Serra para demonizar a candidata Dilma Roussef.
Essa utilização de um tema como definidor dual do caráter dos seres humanos como alinhados ao bem ou ao mal pode ser tranquilamente associada ao grande câncer dos tempos modernos: o fundamentalismo. É notoriamente fundamentalista a abordagem utilizada para a questão do aborto. Só é do bem, só é bom, só tem caráter, coração, decência, quem for explicitamente contra. Tanto é que Dilma, percebendo a enrascada em que a haviam enfiado, declarou-se contra, assinou documentos mostrando que era contra, posicionou-se contra, e ainda foi cobrada... por ter mudado de ideia! O fundamentalismo é assim: ninguém pode mudar de ideia, ninguem pode titubear, ninguem pode dizer que não tem posição definida. Nenhuma posição é legítima se não for a que o fundamentalismo considera legítima.
O leitor deve se lembrar do horror que eram os e-mails antiabortistas. Eram uma ramificação religiosa da campanha do medo, utilizando tons ameaçadores, fotos repugnantes, imprecações desmedidas. É assim que se deve discutir uma questão de saúde pública, que envolve vidas, posturas, opções?
Dito isso, exponho o que coloco em quarto lugar na sequência do texto. Creio que o debate político deve tratar de questões como aborto, eutanásia, suicídio, depressão, síndrome do burnout, e outras, sim. Mas creio que deva tratá-las como questões de saúde pública, em princípio, e de interesse social, em um segundo momento. Esta não pode ser uma questão de sim e não, de certo e errado, de puros e impuros, ou de qualquer radicalização que a desfigure. As pessoas precisam conhecer argumentos, números, conjunturas, ideias diferenciadas, projetos de melhorias para a área da saúde. A razão precisa sobrepor-se ao medo nesse caso. Uma eleição presidencial não é um plesbiscito. Uma questão como a do aborto não seria resolvida, jamais, pela eleição de Serra, Dilma ou Marina, longe disso. Essa questão deve estar atrelada a uma política de saúde e assistência social, que oferece muito mais resultado que uma mudança na lei.
Concluo, então, argumentando pela leviandade do que aconteceu na última eleição. A questão foi apresentada de forma leviana, como já resolvida, e como definidora do caráter moral dos candidatos. A questão foi discutida de forma leviana, porque causou estrago nas pesquisas, e porque proporcionou mais respostas vazias que indagações pertinentes. A questão atacou a democracia de forma leviana, ao invocar o fantasma do fundamentalismo religioso e dos radicalismos de direita, adormecidos no inconsciente coletivo do brasileiro. A questão saiu da mídia de forma leviana, quando a eleição acabou, como se sua importância dissesse respeito apenas à possibilidade de influenciar um resultado de urna.
A presidenta Dilma Roussef conseguiu uma grande vitória nas urnas, apesar de ter sido colocada em xeque por essa armadilha eleitoral. Entretanto, sua vitória não apaga a tremenda derrota da sociedade civil ao ver uma questão como essa ser tratada de forma tão baixa e perigosa. O posicionamento cuidadoso e temeroso de Dilma durante a campanha é índice claro dessa derrota.

Balanço da eleição - 4 - A ausência dos programas de governo

Outra das características fortes do pleito presidencial de 2010 foi o debate sem pauta. Nós não tivemos acesso aos planos de governo, mas sim às listas de intenções políticas de cada pleiteante. Talvez em função da polarização partidária, talvez em função do medo de fechar questão em pontos polêmicos, a verdade é que se se perguntasse a um petista, um tucano ou um verde, mesmo a poucos dias da eleição, quais eram as propostas efetivas para áreas como Educação, Saúde, Energia, Desenvolvimento Urbano, ninguém sabia dizer.
Essa falta de programa oficial, ou de pauta clara de opções administrativas e políticas, foi marca de todas as candidaturas. Os eleitores sabiam mais ou menos de que lado estava cada um dos atores, mas quase ninguém poderia dizer que implicação isso teria em questões específicas, porque as propostas, quando haviam, eram tão gerais que abrigavam também seus contraditórios. Dizer que a educação é prioridade, todos disseram, por exemplo. José Serra prometeu um milhão de vagas nas Escolas Técnicas. Mas o eleitor não ligou para isso. Por quê? Por várias razões. Em primeiro lugar, por conhecer gestões tucanas anteriores e saber que o investimento em educação nunca foi tão vultoso (na gestão FHC, por exemplo, as técnicas estavam sucateadas). Em segundo lugar, por estar habituado a promessas que não se cumprem, ou se cumprem pela metade, ou são esquecidas, sem cobrança alguma nem por parte da sociedade nem por parte da mídia. Em terceiro lugar, porque a proposta é vazia: criar vagas como? Onde? Ampliando ou construindo novas unidades? Contratando mais professores pelo mesmo salário ou flexibilizando direitos para contratar mais por menos? Não é uma questão que se resolva simplesmente com uma declaração de intenções. É preciso explicitar caminhos. Ampliar as escolas técnicas é, sem dúvida, importante, mas seria prioridade em relação, por exemplo, à formação de professores em universidades públicas, ou à erradicação do analfabetismo funcional nas escolas fundamentais? Ou haveria verba para fazer as três coisas ao mesmo tempo? Decisões implicam ganhos e perdas, sempre, e é preciso que ambos estejam claros para o eleitor. Quando não estão, surge o contraditório: quem defende a Educação pode investir em escolas técnicas e não investir em ensino fundamental? Pode abrir um milhão de vagas e não valorizar profissionalmente o professor?
Esses sinais dúbios foram captados pelo eleitor, que entendeu sagazmente que os candidatos tinham medo do compromisso político. Obama, quando candidato à Presidência dos Estados Unidos, defendeu aberta e publicamente reformas no sistema de saúde, que eram e são polêmicas, e que custaram ataques e ofensivas à sua credibilidade. Ele sempre deixou claro quais seriam essas reformas, o que visavam, a quem atingiriam e de que forma julgava que devessem ser feitas. Uma postura como essa custa alto politicamente, mas oferece ao cidadão a segurança de que se sabe com quem se está lidando.
Creio que nem Dilma, nem Serra, nem Marina, nem Plínio conseguiram oferecer uma pauta mais detalhada, um programa de governo mais explícito em pontos fundamentais. Marina, na reta final, teve mais clareza de posicionamento que os outros, mas mesmo assim o eleitor tinha dúvidas, pois seu partido, o PV, por vezes sinalizava programaticamente ou politicamente na direção oposta à da ex-senadora. Plínio falou de operários, camponeses, tansformações políticas, mas a verdade é que não teve tempo para detalhar como seria um governo de classes populares no contexto atual do planeta. Dilma não tinha programa de governo detalhado, pronto ou definido até o segundo turno; se tivesse, não teria caído na armadilha eleitoral do aborto. Visão administrativa ela obviamente, como cabeça do governo Lula, tinha e tem, mas uma coisa é saber governar, outra é saber convencer a população disso. O PT, embora tenha vencido a eleição, não deu a importância devida a esse contrato programático do governante com o governado, que é um lastro de confiança republicano, e que deveria pautar definitivamente as escolhas políticas que fazemos.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Balanço da eleição - 3 - O menosprezo do adversário

Na comunidade "Brasil" do orkut, em dezembro de 2009, um gaiato resolveu comemorar a imensa dianteira que o candidato José Serra tinha nas pesquisas. A essa altura, o tucano pontuava 44%, adjetivados como "inacreditáveis" pelo membro que abrira o tópico.
Quando a eleição se definiu, no segundo turno, em novembro de 2010, Dilma cravara 56% nos votos válidos, contra 44% de Serra. Um petista sacana ou espirituoso deu um "up" no tópico de quase um ano antes, brincando com os números que apareciam nas pesquisas. Gozador, ele encarnava no internauta que saudara os percentuais de Serra, chamando-o de profeta e elogiando a capacidade de acertar índices com tanta antecedência.
O episódio citado serve para mostrar uma das características que fizeram desta uma eleição singular. A verdade é que Serra não acreditou em Dilma, o PSDB não levou a candidatura dela a sério e os gurus políticos do partido erraram monstruosamente ao pensar (e por vezes declarar sem nenhum pudor) que a boa avaliação do presidente Lula não transferiria votos. Faltou aquele bom senso básico de entender que uma eleição só "esquenta" quando os candidatos se definem e passam a ser conhecidos dos eleitores. E mais: faltou respeitar Dilma e o PT. Em certo momento, parecia que os marqueteiros tucanos tinham nos bolsos e nas mangas as fórmulas mágicas que pulverizariam, com denúncias e comparações, toda a possibilidade de Lula fazer seu sucessor. Não se pode tratar assim uma força política da dimensão do PT. Goste-se ou não, o adversário tem força, tem peso, tem armas. Minimizar o potencial eleitoral do outro é um passo para a própria destruição.
E não é que isso aconteceu também com a própria candidatura vencedora? A um mês da eleição, pesquisas indicavam uma diferença gigantesca de Dilma em relação a Serra, advinda de um crescimento assombrosamente rápido. Muitos acharam que o jogo tinha acabado. Eu conversava com petistas de carteirinha e outros menos exaltados, e a sensação geral era de que a rejeição de Serra e a percepção popular de Dilma como continuidade de Lula haviam estabelecido um quadro praticamente irreversível. E foi então que Serra reagiu. Mudou seu programa na TV, parou de tentar associar-se a Lula, partiu para ataques mais inflamados e, principalmente, arquitetou uma subcampanha de bastidores das mais baixas já presenciadas, mas das mais eficientes, sem dúvida. Os marqueteiros de Dilma não deram bola; li recentemente uma entrevista com João Santana, inteligência maior da campanha, em que ele revelava que acreditou na vitória em primeiro turno até o dia da apuração*. O PT tomou um susto com o resultado das urnas, e quase que não reage a tempo diante da chacoalhada. Serra tinha muitos problemas como figura pública de presidenciável, mas menosprezá-lo, duvidar de seu potencial e, sobretudo, não se preparar para um desespero-vale-tudo na reta final por parte dele foi ingênuo demais por parte da campanha de Dilma.
Menosprezar o adversário nunca é bom negócio, porque as forças políticas que se apresentam numa campanha têm história, têm ideias, têm simpatizantes, têm espaço conquistado na democracia. Como diria Luxemburgo: "não tem time bobo mais, não!".

* Justiça seja feita. Rodrigo Vianna e Renato Rovai, blogueiros pró-Dilma, tinham visões sensatas e sabiam dos perigos do otimismo desenfreado de antes do primeiro turno.