quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Nei

Meu tio Nei (cujo verdadeiro nome é Francisco), entre outros talentos que possui, é capaz de emitir o som mais agudo, incômodo e desesperadamente horroroso que uma voz humana já pôde emitir: a sua imitação de galo. Em momentos em que quer chamar a atenção, ele solta um cacarejar que assusta, dói nos ouvidos de tão alto e deixa a gente fora de si de raiva. E ele atinge seu objetivo plenamente, pois, depois de tomar uma bronca daquelas, sai rindo, satisfeito.
Meu tio Nei também é conhecido por ser fã inveterado de café, chegando a fazer pequenos serviços em bares e restaurantes - geralmente a varredura do chão - para ganhar uma xicarazinha da bebida. Em casa, sempre bebeu café de forma frenética, chegando a secar garrafas inteiras, se permitíssemos ou ficássemos de bobeira. Talvez isso ajude a explicar um pouco de seu comportamento insone: durante alguns anos, ele se distraía na madrugada, na varanda da casa de meus tios, tocando gaita por horas a fio (na verdade, assoprando e puxando a mesma nota durante boa parte desse tempo).
O Nei também é conhecido por sua atração por mulheres bonitas. Quando alguma delas aparece para visitar minha família, ele não a deixa em paz, e quer constantemente cumprimentá-la com apertos de mão e beijos no rosto. É sabido por nós que, de vez em quando, mas não na nossa frente, nem com nossas amigas, ele oferece dinheiro a alguma mulher para, digamos, ter uma liberdade maior de aproximação. Falta-lhe, evidentemente, noção do risco, e às vezes ele se dá muito mal, outras muito bem. Às vezes, também, excede o comportamento cavaleiresco que geralmente tem, e é devidamente repreendido por seus familiares. Mas, no geral, consegue ser, a despeito de algumas inconveniências, muito mais agradável que a maioria dos homens que conhecemos.
Caminhando pelo bairro em busca de novidades, o Nei é uma das figurinhas carimbadas do Jardim Triana. Não há quem não o conheça, quem não brinque com ele, quem ele não cumprimente. Ele vai de padaria a padaria, de casa a casa, de praça a praça, gesticulando e articulando sons às vezes inteligíveis, às vezes só decodificados por quem já o conhece bem. Nesse sentido, cabe dizer que meu tio é, sem dúvida, o ser mais comunicativo da família inteira, a despeito de suas limitações.
Nós, da terceira geração a partir de seu Otávio, crescemos aprendenddo a respeitar o Nei e a gostar dele com todas as suas peculiaridades. Quando crianças, frequentemente perguntávamos aos adultos porque ele era daquele jeito, diferente. E precisamos nos tornar adultos também para compreender que o Nei teve, desde a infância, problemas físicos, como uma quase surdez dos dois ouvidos, e mentais, com atrasos evidentes, que se tornaram mais problemáticos depois de estadia de anos no Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha, no qual era tratado com grande desprezo, chegando a desaprender as regras mínimas de convivência civilizada. Foi minha mãe que resolveu trazê-lo de volta e bancou seu retorno ao convívio com a família, que não foi fácil e trouxe, sem dúvida, uma série de complicações e responsabilidades adicionais para todos nós.
Entretanto, de nada podemos reclamar. O tempo nos ensinou a amá-lo e a tolerar, respeitar e até admitir algumas das esquisitices que nos incomodavam.
Um dia, quando eu era criança, eu lia uma revista da Superinteressante, que fazia parte de uma coleção que vinha fazendo. Saí da sala por alguns instantes para comer algo na cozinha. Voltando, vi o Nei folheando a revista. Entrei num estado de grande agitação e agonia, pois sabia que o interesse dele nos materiais impressos passava muitas vezes por rasgar páginas para guardar figuras que lhe interessassem. Argumentei e tentei mostrar de várias formas que a revista era minha e que ele tinha de devolvê-la, mas foi em vão. Sem saber o que fazer, voltei para a cozinha, sentei, coloquei o rosto por entre as mãos e comecei a chorar, menos pela revista em si e mais pela sensação de fracasso em conseguir me comunicar com ele, o que se configurava para mim, naquele momento, um problema permanente. Dali a alguns minutos, ele tocou no meu ombro. Devolveu a revista, deu um beijo no meu cucuruto e sinalizou, com os braços, que aquilo tinha acabado e que eu não chorasse, porque ele não ia fazer nada com as folhas. Fiquei muito agradecido. E fiquei impressionado com a compaixão que ele tivera por meu choro, porque, muitas vezes, eu não tivera sentimento semelhante para com meus irmãos, primos e amiguinhos. Creio que fiquei positivamente impressionado com a compreensão que ele teve da linguagem das emoções. Foi uma lição de vida.
Tio Nei foi definido uma vez por um amigo do meu pai como "um excepcional feliz". Creio que sua convivência com a família trouxe-lhe a condição de se humanizar, tanto nas virtudes quanto nos defeitos. A verdade é que gostamos dele como um irmão mais velho de todos, que precisa de ajuda, conselho, carinho, apoio e, principalmente, compreensão. Penso que ele contou, de nossa parte, e na medida do possível, com um esforço sincero de oferecer essas condições mínimas para uma vida digna no decorrer dos anos. E ofereceu-nos a oportunidade de amar um bom ser humano e aprender a conhecer seu mundo diferente, tornando-nos mais inteligentes e acolhedores.

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