sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Este homem

Um passante livre de preocupações e compromissos poderia ter visto esse homem em sua glória, sentado numa mesa de um espaço de alimentação, tomando café e saboreando um pão na chapa com toda a autoridade de sua fome. Provavelmente, não concentraria o olhar. Se concentrasse, talvez pudesse se perguntar sobre as vestes despojadas, o chinelo de dedo, os olhos pensativos e os cabelos bagunçados que singularizam a figura observada. Talvez atribuísse mentalmente alguns estereótipos a esse homem: um trabalhador desempregado? Um homem com a cabeça na lua? Um intelectual arrogante? Um rapaz desleixado e sem ambições? 
Esse homem continuará saboreando a delícia de um pão na chapa. Mil tentativas talvez não fossem suficientes para acertar o que ele é. Ele não se preocupa com isso, por certo, senão se vestiria de outra forma, e teria uma postura mais vigiada e tensa. Mas se não fosse possível saber quem ele é, talvez o curioso passante pudesse tentar descobrir o que se passa na cabeça de alguém assim. O que está rolando lá dentro daquela cachola: canções? Poemas? Obrigações? Acertos? Erros? Planos?
O pobre passante teria, agora, ainda menos chance. Sim, muitas coisas fluem por aquele mundo de ideias, mas pouquíssimas podem se fixar nesse momento. São quarenta anos de tudo o que a vida poderia oferecer a alguém. E, nesse fluxo interminável, muitas imagens vêm e vão, e algumas conseguem se estabelecer por um pouquinho mais de tempo dentro dos olhos que pairam fixos, como que olhando para uma projeção vinda do profundo do peito.
Foram sins e nãos. Direitos e deveres. Acertos e erros. Falas e emudecimentos. Ímpetos e raciocínios. Risos e choros. Aproximações e distanciamentos. Medos e ousadias. Incertezas e convicções. Pessoas o aconselharam bem, pessoas o aconselharam mal. Pessoas o quiseram bem, pessoas ele quis bem. Houve música, muita. Poesia, muita. Houve livros, discos, materiais de estudos. Muitas pessoas o ouviram, e ele nem sabe o que elas pensam. Ele ouviu muitas pessoas, e às vezes também não sabe o que elas pensam. Foram coisas bem feitas e coisas mal feitas. Muita coisa sem terminar. Muita coisa por dizer, muita coisa por fazer, muita coisa por criar. Graças a Deus.
No meio disso tudo, de todo esse turbilhão de fatos e feitos, foram muitos anos se tornando professor e se mantendo aluno. Muitos outros aprendendo a não ter medo de cantar e escrever. Muitos ainda descobrindo o que o coração dizia sobre o amor, e tentando traduzir em ações efetivas. Os rótulos, afinal, podem colar: professor, cancionista, cabeludo, rockeiro, poeta, desencanado, descolado, hippie, esquerdista, nem aí, místico, coração mole etc. etc. etc. Nada definiria com precisão.
Talvez seja melhor ficar com a imagem, e só com a imagem, que o passante curioso pode captar na totalidade: esse homem sentado na mesa de um espaço de alimentação toma café e come um pão na chapa em estado de glória. Sim, glória.
Ele, depois de quarenta anos, sabe que seu caráter não deve nada à sua consciência.


ESTE homem de quarenta anos nada deve à própria consciência. O resto é resto.

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