quinta-feira, 9 de julho de 2015

O dom de cantar e o dom de saber usar esse dom



Lembro-me de ouvir, sobre meu ídolo esportivo de sempre, Roger Federer, que algumas vezes ele se perdia durante as partidas que disputava por uma razão até meio bisonha. O tenista suíço é, indiscutivelmente, o mais talentoso jogador de tênis de todos os tempos; em função disso, a cada jogada, duas ou três diferentes soluções poderiam passar por sua cabeça, todas passíveis de serem realizadas por seu braço. O que ouvi de algum comentarista cujo nome me falha na memória é que Roger, às vezes, não encontrava a melhor das soluções possíveis, e acabava perdendo para adversários que, por limitações técnicas, faziam exatamente a mesma coisa em todas as situações dadas, mas sem vacilar. 
Eu fiquei pensando sobre essa questão na tarde hoje, e refleti que o talento, ou o dom, ou a capacidade maior ou menor de fazer alguma coisa (não me importa se pensada como natural ou desenvolvida) é uma condição do indivíduo que pode ajudar ou atrapalhar. Sem dúvida, eu e muitas outras pessoas admiramos quem tem esses talentos. Gostaria muito de ter a habilidade com as palavras que vejo em muitos escritores, a potência e extensão de voz de muitos cantores, a musicalidade de muitos instrumentistas que conheço. Mas ter essas capacidades não quer dizer, de forma alguma, que eu poderia produzir com elas realizações como as que sempre sonhei para minha vida. A distância entre uma coisa e outra é muito grande.
Há algum tempo, eu e meu professor de canto, o Dudé, conversávamos sobre o fantástico Glenn Hughes, vocalista de capacidades impressionantes, virtualmente ilimitadas. O Dudé me dizia que o que havia de melhor em Hughes é que ele, mesmo podendo usar a extraterrestre voz de cinco oitavas e as dezenas de diferentes técnicas de canto, fazia escolhas que limitavam esse potencial para poder dar destaque às canções. É incrível vê-lo buscar notas absurdas em "Mistreated" ao vivo, mas também é incrível ver como respeita canções natalinas, por exemplo, quando as interpreta em um álbum como "A Soulful Christmas". Não importa, nesse trabalho, demonstrar quanto ele "pode" ou "alcança". Importa mostrar quanto ele entende que pode contribuir para o espírito de cada faixa, de cada canção. E o resultado é belíssimo.
Voltando à minha reflexão, meditei que Hughes, ao "economizar" voz e firulas na interpretação das músicas natalinas, entendeu à sua maneira aquilo a que vinha me referindo anteriormente: seus dons podem atrapalhar, nesse caso. Explorar todo o seu potencial de voz em canções singelas fere justamente o que elas têm de mais bonito, e o resultado artístico, embora pudesse ser uma verdadeira aula de canto, tornar-se-ia ao mesmo tempo uma lição de mau gosto estético. 
Dessa forma, acredito que seja missão do intérprete, vocalista ou cantor, em primeiro lugar, saber usar sua voz como recurso para um projeto estético maior. Se ocorrer o contrário, se o projeto estético for utilizado como recurso para promoção da voz, o efeito é egótico e redutor, e ainda que impressione a curto prazo, torna-se cansativo para o ouvinte. Por isso, creio que o grande talento ou dom a ser desenvolvido pelo cantor, que deve estar associado ao seu autoconhecimento e apuro técnico e à sua formação cultural e musical, é aquilo que vou chamar de talento de gerenciar os próprios talentos. Ou dom de saber usar o dom de cantar. 
O nome pode parecer meio maluco, mas acredito que ele represente uma capacidade à parte, tão importante quanto os recursos técnicos e físicos e, até diria, mais fundamental do que eles, considerando que artistas sem muitas qualidades vocais mas com grande inteligência musical para usar as que têm também podem alcançar excelentes resultados a partir da consciência das próprias limitações. Estendendo essa reflexão para além das questões da voz, penso que o artista, em geral, precisa encontrar, dentro de si, a medida da entrega que não comprometa o conjunto da obra. Talvez isso não seja tão óbvio nem tão fácil de fazer em um mundo que associa cada vez mais a arte, e principalmente a produção de consumo, a perfis individuais, isolados, artificiais e egocentrados, com os quais a sociedade individualista está apta a se identificar imediatamente. Mas se não for assim, o que se produz não se sustenta, e acaba caindo na vala comum da descartabilidade e irrelevância, como muito material que vemos por aí.

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