quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Dylan é Nobel de Literatura, e eu aplaudo de pé

Estou em estado de grande alegria pela premiação de Bob Dylan com o Nobel de Literatura. Acredito que esse não seja um prêmio apenas de Dylan. Agraciando um compositor popular, a Academia Sueca mostrou que um trabalho profundo e comprometido com a canção pode ter impacto e relevância cultural nas mesmas dimensões de uma grande obra literária. De certa forma, entendo que esse prêmio é uma vitória da canção, esse produto pop que transcendeu a música, a poesia e a fala e transformou-se numa linguagem com possibilidades quase infinitas, inclusive de abrigar a beleza poética e a profundidade literária. Esse reconhecimento a Dylan é também um reconhecimento a Lennon, Chico Buarque, Atahualpa Yupanqui, Leonard Cohen, Violeta Parra e tantos outros que optaram por fazer o artesanato da palavra dentro da canção, no universo da música popular.
Se Dylan não se destaca por vendagem ou pela celebração de livros pela crítica, isso não o diminui enquanto artista. Muitos dirão que ele não é um escritor, é um músico, e que o prêmio deveria ser dado a alguém ligado à produção de livros reconhecidos por uma qualidade estritamente literária. Acontece que a palavra "músico" é traiçoeira quando usada para definir Dylan. Beethoven, Bach, Stravinsky são músicos imortais e espetaculares, mas ninguém em sã consciência daria um Nobel de Literatura a eles, por razões óbvias: suas sinfonias, óperas, sonetos, corais, são de excelência incontestável no plano musical, mas não os fazem mestres ou artesãos da palavra escrita, de forma alguma. Dylan é um cancionista, e a canção não é só música, como sabemos já há algum tempo. A figura de Dylan, para mim, está mais próxima dos trovadores e menestréis que dos romancistas e poetas. Escrever canções não é simplesmente colocar letras em músicas. Há todo um elemento de persuasão que passa pela possibilidade de os segmentos verbais convencerem emocionalmente, poderem ser assimilados como recortes de fala natural. Quando Dylan canta, você se convence de que ele está dizendo algo, e esse convencimento acontece por meio de recursos específicos acionados pelo fazer específico ligado à produção de canções.
O que quero dizer é que é perfeitamente possível ser um mestre ou gênio da palavra dentro da canção. E que isso tem de ser percebido por meio da fruição da canção. Não adianta pegar um monte de letras de Dylan, colocar num livro e querer que elas causem a impressão de poemas geniais (ainda que muitas possam, eventualmente, provocar essa reação). O talento do cancionista enquanto compositor popular não é revelado nessa leitura fria. Esse talento se revela na percepção de que as escolhas de palavras, de frases, de conteúdos, de ritmos, de entonações e de recursos de oralização, todas profundamente ligadas ao trabalho com a linguagem verbal, são pensadas dentro de um contexto musical, dentro de um limite de tempo de execução e de um limite associado às escolhas na melodia.
É um músico que ganhou o Nobel de Literatura? Sim. Mas um músico que não é só músico. É também um tremendo artista da palavra, num nível tal que sua produção alcança patamares geralmente associados à produção de poetas, romancistas e contistas. Mas, que fique claro, alcança esses patamares enquanto produção de canção, dentro da lógica e do artesanato das canções. Há, na premiação de Dylan, uma concessão importantíssima, que assume que o manejo inteligente da palavra dentro de roteiros de cinema, letras de canções ou discursos públicos possa ser pensado também como espaço de construção de belezas poéticas e literárias. O que não deveria ser nenhuma novidade, visto que estudamos como grandes escritores, muitas vezes, pessoas que nunca escreveram livros, e lemos como obras escritas muitos textos que eram cantados ou oralizados e só sobreviveram em virtude de registros realizados sem a participação de seus autores. Talvez um dia um roteirista de televisão ou um orador comunitário ou um outro mestre da palavra fora dos livros possa receber o reconhecimento mais que merecido de Dylan.
Entendam, por favor, que isso é muito diferente de dar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras para pessoas com grande importância política, mas que nunca produziram nada que se possa considerar minimamente literário ou de relevância intelectual. Entendam, também, que o prêmio não define os melhores, que também tem suas jogadas políticas, e que não tem como reconhecer artistas que estão tão à frente de seu tempo que só serão valorizados muito depois de sua morte, ou artistas que morreram cedo demais para receber todo o reconhecimento que mereciam. Há limites claros nessas premiações. O que não impede que eu considere justo, bacana e importante premiar o gênio extraordinário de Dylan, e elevar a canção pop ao patamar de valor literário que todos sabemos que ela historicamente tem.

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