sábado, 13 de fevereiro de 2010

Identidade e passado

Há alguns anos, fui a um aniversário de um amigo na Trash 80's. A proposta de entretenimento da casa era bastante curiosa, com clipes e músicas e visual da década mais cafona da cultura pop. Tudo muito bem feito, bem pesquisado, bem articulado, o que não salvou a noite de ser tediosa para mim, porque boa parte do que fez sucesso naqueles meus tempos de criança eram músicas simplesmente inexpressivas e sem alma. A junção aleatória dessas canções pode ativar regiões afetivas da minha memória, mas, depois de algumas horas de audição, transforma-se numa pasta disforme, um mosaico culturalmente irrelevante. Lembro-me, no entanto, de ter observado que essa coleção de canções, irregular na qualidade e tendendo para o muito ruim, produzia reações intensas nas pessoas que ali estavam dançando, cantando e curtindo o ambiente. Não raro ouvia dessas pessoas comentários do tipo "puxa, quando tocava essa música eu me vestia assim, assim, assim", ou "não esqueço que eu frequentava uma balada em que rolava esse som, e nós depois fazíamos isso, aquilo, aquilo outro".
Também costumo frequentar algumas comunidades no orkut referentes a assuntos que me interessam. Em boa parte delas, os membros são bem mais jovens que eu. Verifico, no entanto, que esses jovens membros de comunidades costumam criar tópicos evocando coisas que aconteceram há cinco ou seis anos atrás, em que colocam suas memórias de eventos de que participaram ou que acompanharam por televisão ou internet. Por exemplo, na comunidade do Roger Federer, uma das mais bem organizadas de que participo, há tópicos permanentes em que os meninos colocam vídeos das conquistas do suíço desde 2003. Acho muito curiosa essa tendência, pois ela associa-se à construção de uma espécie de "cultura federista", que aponta para a valorização de um passado, de uma história desse atleta, condensada em espaços que serviriam como "museus virtuais" para seus triunfos.
Tanto no caso da Trash 80's como no da comunidade orkútica do Federer, percebo uma certa fome do passado, uma certa necessidade de recuperação de informações perdidas ou dispersas, ou simplesmente não organizadas, para construção ou recuperação de uma identidade. Seja em uma "cultura oitentista", ou "federista", ou "sangalista", ou "coldipleísta", as pessoas, quarentonas ou adolescentes, demonstram sentir necessidade de integrar-se a uma história, de apropriarem-se de um construto temporal e, com ele, estabelecerem uma relação de pertencimento ou afinidade. Há diferentes graus nessa tendência, e diferentes maneiras de se relacionar com ela. Ouvi de um rapaz, recentemente, que ele teria chorado ao ver um DVD que resgatava os melhores momentos da Toco, extinta e popularíssima danceteria da Zona Leste de São Paulo. Recebi várias vezes, de vários amigos diferentes, e-mail com fotos de brinquedos que eram populares em meus tempos de criança, com comentários saudosos, divertidos e até nostálgicos. E poderia citar, se tivesse tempo e paciência, muitas outras manifestações similares, que remetem ao despertar de uma vontade de recuperação do passado no contexto de uma sociedade preocupada cada vez mais com o imediato, o rápido, o novo, o impermanente. Curiosamente, observo também que o interesse das pessoas em geral pela História classicamente apresentada como disciplina, a História do país, do mundo, das Grandes Guerras, da comunidade em que se vive, da cidade, dos grandes homens, a História recuperada em livros e construída por meio da análise minuciosa dos documentos, enfim, o interesse por essa modalidade de recuperação do passado é bem menor e menos evidente que o que reconheço como associado a essas "culturas" específicas da indústria de entretenimento. Devo admitir que a afirmação precedente soa estranha e triste quando provém de um professor de História com dez anos de atuação no ensino fundamental, mas não posso deixar de enunciá-la, como verdade evidente que é. Está muito claro para mim que haverá sempre muito maior interesse em qualquer biografia apressada e pobre de qualquer celebridade midiática que em livros que abordam, com atenção, cuidado e capricho, temas basilares para compreensão do mundo em que vivemos. Como também aparece-me como inquestionável a tendência das pessoas de atribuírem valor sentimental a objetos e símbolos de questionável importância cultural, em detrimento daqueles que efetivamente sejam representativos de uma época, ou que tenham sobrevivido ao tempo em função de sua qualidade. Claro, há ícones que traem esse raciocínio generalizante, como os Beatles, que são a banda de maior sucesso mercadológico do século XXI(!), ou Che Guevara, que parece continuar encarnando amores e ódios revolucionários muitos anos depois de sua morte. Contudo, creio que sejam exceções que confirmam a regra.
Essa aparente contradição entre, de um lado, a necessidade de um passado e, de outro, o desinteresse pela ciência que justamente estuda e ajuda a reconstruir o passado com bases científicas e a apontar aquilo que tem relevância para o mundo hodierno, é um problema para mim. Arrisco esboçar duas hipóteses.
1) Pode ser que as pessoas, no mundo imediatista em que vivemos, tragam, intuitivamente, a percepção de que uma identidade só pode ser construída a partir de uma memória devidamente constituída e operacionalizada. Assim, na medida em que precisam construir essa identidade, recolhem e recorrem às informações que lhe dão subsistência. Entretanto, a construção dessa identidade não corresponde à construção de uma noção mais abrangente de pertencimento político ou cultural. Por exemplo: muitos se vêem corintianos antes mesmo de se reconhecerem brasileiros. Assim como muitos se preparam para saber tudo da vida da Xuxa antes mesmo de conhecerem a história de seus próprios avós. Segundo esse raciocínio, a cultura de massa teria se tornado capaz de produzir substitutivos eficientes para a necessidade humana de compreender o "estar no mundo" pela recuperação do passado. Isso levaria a um desinteresse pela História enquanto possibilidade de compreensão política e ampla do sentido da vida em sociedade, e à valorização daquilo que seria mero subproduto de fenômenos mais profundos e fundamentais.
2) Pode ser também que a cultura do individualismo tenha criado raízes tão profundas em nosso sistema social e cultural que, para a maioria das pessoas, a História só seja útil enquanto puder ser história das coisas que mais proximamente as circundam. Assim, a busca do passado estaria relacionada tão-somente à tentativa de validação de um universo de objetos, símbolos e valores estritamente particulares. Saber tudo sobre os Pokemons, por exemplo, seria uma necessidade muito mais vital para um estudante que conhecer o coleguinha de classe, porque esses bichinhos estariam muito mais presentes no universo desse estudante que o outro menino. Isso explicaria a enorme comoção das pessoas ao recordarem algo como "Ursinho Pimpão", do Balão Mágico, e o absurdo esquecimento de figuras da estatura de um Jackson do Pandeiro ou um Geraldo Pereira, elos fundamentais entre o presente e o passado da música popular brasileira. Isso explicaria a notável falta de curiosidade das pessoas em relação àquilo que não está evidente por si nos meios midiáticos ou que não tenha sido aproveitado pelo sistema ideológico de nossa sociedade. Isso explicaria por que, num dos muitos perfis sociais que construí em sítios de relacionamento, descrevi-me como fã de Pink Floyd e Radiohead antes de dizer que era professor, ou estudante de Letras, ou brasileiro, ou qualquer outra coisa que fosse definisse com mais exatidão o que sou.
Não sei se consegui formular minhas inquietações de forma inteligível. Creio ter intuído uma contradição que não sei como resolver. Várias pessoas, de várias idades e interesses diversos, sinalizam disposição para olhar para o passado em relação a algo que seja de seu universo de interesse. Por outro lado, poucas pessoas parecem dispostas a olhar para o passado pela via de uma sistematização científica e de um discurso que se propõe a compreender com profundidade as estruturas do mundo em que vivemos. Minha pergunta acabará sendo: como fazer essa fome se relacionar a um alimento verdadeiramente nutritivo? É um desafio.

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