domingo, 15 de novembro de 2009

Pensando em um diálogo do filme "Olga"

Não li o livro Olga. Vi o filme, e não o considero nenhuma obra-prima. Mas constatei que ele poderia ser bem adequado para embasar aulas sobre o governo Vargas, o Nazismo, e regimes autoritários, e resolvi utilizá-lo em minhas aulas de História. O resultado tem sido de médio para bom.
Depois de tê-lo visto umas dez vezes foi que reparei em um diálogo que me pareceu o mais instigante do filme. Olga (interpretada por Camila Morgado) está supostamente indo da prisão para o hospital, dentro de uma ambulância, para dar à luz. Com ela vai uma companheira presidiária, conforme promessa do capanga de Filinto Müller, proferida publicamente diante da reação negativa dos detentos, que organizaram uma resistência à retirada da ativista. Olga pergunta à outra moça: "Você acha que o mundo quer ser mudado?". Não há resposta convincente, e Olga dá a entender que às vezes pensa abandonar a militância dentro das fileiras comunistas para ter seu filho e ser feliz com seu marido, Luis Carlos Prestes. Essa cena é muito forte, porque antecede um momento dramático e terrível, que é o envio de Olga à Alemanha nazista, de navio, numa traição da promessa anteriormente citada. Olga paga um preço alto - e cruel, e injusto - por sua luta, vindo a falecer posteriormente na câmara de gás de um campo de concentração.
Não consegui entender essa fala de Olga como um momento de fraqueza. Penso nela como detonadora de uma reflexão profunda. Qualquer um de nós, que estudamos humanidades, que temos sensibilidade de reconhecer os direitos de outros seres humanos, que acreditamos na possibilidade real de melhora das vidas das pessoas e num mundo com mais justiça social, nos perguntamos, em algum momento, se nossas convicções geram frutos, indicam caminhos, constroem soluções, enfim, se mudamos minimamente um pedacinho do mundo. Parece-me que faz todo o sentido perguntar se o mundo quer ser mesmo mudado. Sinto que tenha de admitir que a resposta é negativa: as pessoas têm enorme tendência de aceitar os sistemas em que vivem, adaptar-se a eles, julgarem-se beneficiadas e tornarem-se pouco sensíveis em relação aos excluídos em geral. A vontade de realizar mudanças e implementar sistemas mais justos não me parece natural ou inata nos indivíduos. As convenções, na maioria dos casos, vencem as revoluções, e o resultado é isso que vemos, um planeta em que há enorme concentração de recursos nas mãos de poucos e enorme controle desses que pouco têm por meio da conivência fabricada e dos instrumentos de alienação. Parece, então, que a vontade de mudar o mundo não vem espontaneamente, mas, na maioria dos casos, só depois do desenvolvimento de uma consciência crítica, e, paralelamente, de um caráter eticamente responsável.
Por outro lado, pessoas como Olga, ou Prestes, ou Chico Mendes, ou Gandhi, não conseguem ficar paradas olhando a marcha da História. Pessoas assim tendem a entrar de cabeça, a utilizar seu ímpeto de inconformismo para criar situações especiais, em que conceitos são revistos e conquistas se estabelecem. E é aí que a revolução enfrenta as convenções. E quando isso acontece - e isso só pode acontecer quando PESSOAS agem nesse sentido -, há ações necessariamente não convencionais, que incomodam, que chateiam, que soam estranhas. Acredito que, nesse momento, os revolucionários tornam-se inconvenientes. Exatamente isso: não são convenientes para a sociedade, para o poder, para os que não têm o poder mas o querem, para os que não têm o poder mas acreditam-se beneficiados por ele. E creio, sinceramente, que isso nunca vai mudar, que as pessoas que querem mudanças serão vistas como os chatos, os impertinentes, os perigosos, os estranhos.
Entretanto, tenho convicção de que nós, que acreditamos em mudanças, podemos legitimamente tentar mudar o mundo À REVELIA DA VONTADE DO MUNDO. Precisamos estar preparados para que nos estranhem, e muitas vezes nos julguem inconvenientes. Precisamos agir segundo nossas convicções ainda que elas não sejam as convicções que garantem aceitabilidade social. Seremos ridicularizados, perderemos oportunidades, teremos portas fechadas em certos círculos? Infelizmente sim. É parte do jogo. E é humano e compreensível que nos cansemos de jogar, nalgum momento, ou que recuemos, para defender aquilo que temos como sagrado e fundamental. Olga queria ser feliz, todos queremos. Olga queria sobreviver e criar seus filhos. Nada mais justo. Isso tudo, na verdade, torna sua trajetória ainda mais admirável.
Não sou Olga, não sou Prestes, sou um cidadão comum que carrega no peito sua dose de indignação. Mas é interessante ver que o dilema da manutenção das convicções pessoais reaparece em questões muito menos pungentes e desesperadoras que as vividas por essas grandes personalidades. Pequenas decisões que fazem enorme diferença, como não comer carne, ou não consumir bebidas alcoólicas, ou não carregar compras em saquinhos plásticos, ou não imprimir nada desnecessariamente, ou não usar drogas, ou não tentar obter benefícios ilícitos, transformam-se em letra morta rapidamente, porque queremos ser sociáveis, porque queremos praticidade, porque nos convêm ou até simplesmente porque ninguém está olhando no momento em que fazemos. Um vegetariano tem de se justificar o tempo todo quando vai a um churrasco. Um abstêmio pode se sentir peixe fora d'água nalguns grupos. Quem leva a própria sacola ao mercado demora mais para ajeitar as compras, e as pessoas na fila chiam. E assim vai, de forma que lidar com as próprias convicções implica lidar também com a incompreensão de muitas pessoas. Honestamente, já desisti de muitas coisas que julgava necessárias e boas porque me senti sozinho, discriminado, ou esquisito demais. Lamento ter procedido assim, mas isso não é a pior coisa do mundo. A grande derrota é quando alguém desiste de si mesmo. Essa é a pessoa, do ponto de vista da sociedade, mais conveniente de todas. Mas é a de que menos o mundo precisa.
Minha irmã disse uma vez: "Não confio em quem não fala palavrão". Achei engraçada a frase, e queria recuperar o espírito dela para o que escrevi nesta postagem: "Não confio em pessoas perfeitas". Porque elas não transformam nada. Só são transformadoras as pessoas inconvenientes, ou chatas, ou complicadas, ou que fazem alguma coisa estranha. Essas são fundamentais.
Há alguns dias, encontrei um amigo meu, César Augusto, que é dessas pessoas fundamentais. Esta postagem é minha homenagem à força de caráter que ele demonstra quando defende suas convicções. Quero aprender a ser assim.

4 comentários:

Dan Dan disse...

Eu, quando crescer, quero ser assim. Ter fé nas pessoas, acreditar que se a gente insistir mesmo discrimidado por ser diferente, enfrentar o mundo com nossas convicções em atos até banais... Mas ainda acredito que o ser humano não é bom em princípio: o capitalismo é só um retrato em larga escala do que somos em nossa maioria.

Dan Dan disse...

Eu, quando crescer, quero ser assim. Ter fé nas pessoas, acreditar que se a gente insistir mesmo discriminado por ser diferente, enfrentar o mundo com nossas convicções em atos até banais...
Mas ainda acredito que o ser humano não é bom em princípio: o capitalismo é só um retrato em larga escala do que somos em nossa maioria.

manu gomes disse...

Incrível seu texto! Parabens! Pena que demorei tanto pra ler.
Eu também sempre digo isso quando me dizem que "as pessoas não querem mudanças" ou são preguiçosas. Digo que quem faz a mudança é um só em nome de vários e tem que ter muita personalidade pra isso e coragem, pq vai sim ser chamado de chato, sofrer preconceito por ser "diferente" sendo que esse diferente é simplesmente se preocupar com a humanidade.

Colo aqui um trecho de um texto do che que está no meu perfil do orkut:

"o revolucionário verdadeiro está guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar num revolucionário autêntico sem esta qualidade. Quiçá seja um dos grandes dramas do dirigente(...) Nessas condições, há que se ter uma grande dose de humanidade, uma grande dose de sentido da justiça e de verdade para não caírmos em extremos dogmáticos, em escolasticismos frios, no isolamento das massas. Todos os dias temos que lutar para que esse amor à humanidade vivente se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplo, de MOBILIZAÇÃO."

Fico emocionada com manifestações de esperança em relação à humanidade como a sua. Nunca iremos transformar o mundo em um paraíso onde não há problemas. Mas podemos sim ajudar a tornar melhor a vida de muitas pessoas, mesmo que nem elas percebam que pode ser melhorada.

:)

Aline Correa disse...

Profundamente reflexivo o texto.
Agradeço a contribuição!