domingo, 23 de maio de 2010

Um pouco de política

Alimento a esperança de um dia ver, nos espaços apropriados, debates verdadeiramente políticos sobre política. Entendo política como a ciência da administração do bem público, da representatividade, dos jogos de poder e das disputas entre diferentes forças sociais. Mas o que vejo nos espaços destinados ao debate propriamente político é absolutamente decepcionante.
Não me refiro aqui à decepção-chavão com os "políticos" brasileiros, frequentemente considerados todos iguais, todos corruptos ou mal-intencionados. Para mim, essa é uma posição ingênua. Nem mesmo acredito muito nessa ideia de "políticos". Todos somos políticos enquanto cidadãos. Se precisamos reconhecer pessoas como "políticos", e elas delegamos poderes para decidirem por nós assuntos de nosso interesse, entendo que temos grande parcela de culpa nesse comportamento ilícito que apontamos e reprovamos nos nossos representantes. Política não é privilégio de "escolhidos" ou "cabeças" ou "eleitos". A política é baseada em poder político, que é sempre concessão ou conquista (ou ambos), e é sempre um jogo de forças coletivas, de interesses coletivos. De certa forma, quando nossos representantes nos traem e nós os reelegemos, ou não reagimos, estamos abrindo mão de espaço verdadeiramente político, estamos entregando de bandeja algo que é nosso, que é de nossa alçada.
Por isso, e por acreditar também que não é apenas nos palácios de governo e nas câmaras que a política se faz, estenderei minha crítica a cinco planos diferentes da atuação cidadã: o local físico em que vivo, a instituição em que trabalho, a categoria profissional a que pertenço, a administração da região da cidade em que moro, e, finalmente, o quadro partidário no qual devo optar por um conjunto de ideias para condução do meu país.

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Eu nunca havia assistido a uma reunião de condomínio. Assistir é a expressão correta, porque não tive direito a voto: precisaria de uma procuração de meu sogro. Fui mais para me atualizar dos acontecimentos do prédio. Saí um pouco frustrado.
Da reunião participaram vários moradores de muitos anos, inclusive alguns que já foram síndicos. Havia uma proposta da administradora de aumento do valor do condomínio. Os moradores mais antigos e os ex-síndicos manifestaram-se contra, e então surgiu a pergunta: quem paga a conta? O condomínio estava no vermelho, e seria preciso saldar as dívidas. Decidiu-se pela manutanção do valor mensal com um rateio da dívida acumulada. Medida paliativa, mas menos assustadora que o aumento.
O curioso dessa reunião foi a postura dos condôminos. Muitos cobravam de nosso síndico que "desse um jeito nas dívidas e diminuísse os gastos". Então, ele fez a pergunta que eu faria - quais são as sugestões? Não houve nenhuma. Houve um curioso "isso é com você, veja o que pode fazer", que deu bem a dimensão do que estava acontecendo.
As contas do condomínio passam por três assinaturas de uma comissão de fiscalização. Ou seja: no mínimo, ali dentro, três pessoas deveriam saber que gastos eram excessivos e passíveis de corte, além, é claro, dos outros reclamantes, pois as contas ficam abertas à verificação por qualquer morador. Mas ninguém ali sabia que despesas poderiam ou deveriam ser cortadas; as pessoas simplesmente queriam que isso fosse feito.
Delegar responsabilidades é fundamental para administrar, desde que seja feito com conhecimento de causa. Caso contrário, não é delegar, é eximir-se. Ficou muito claro para mim que as práticas políticas no prédio onde moro em relação à administração do patrimônio são absolutamente alienadas e displicentes. Não há projeto para os próximos anos, não há princípios comuns a serem discutidos, não há questionamento de regulamentos ou proposição de novas possibilidades, e, acima de tudo, não há noção de que os moradores devam participar de uma guinada nessa direção. Em suma: não há política de verdade.



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A instituição máxima decisória nas escolas da Prefeitura é o Conselho de Escola. Presidi o Conselho de minha escola por dois anos, há algum tempo atrás, e considerei essa experiência muito enriquecedora. Uma das coisas que aprendi é que os Conselhos padecem de falta de representação dos alunos e da comunidade, e que são, na maior parte das vezes, manipulados escandalosamente pelo diretor, que não os utlizam como ferramentas de diálogo com os vários setores da escola, mas sim como meros fóruns de acatamento de propostas que não podem ser aprovadas em outros colegiados. Atualmente, vejo o Conselho em minha escola como um espaço morto, inerte, porque esvaziado de reais polêmicas. Os pais não se organizam para aprovar propostas de mudança que beneficiem seus filhos. Os professores vão às reuniões sem levar propostas dos grupos. Os alunos não estão nem aí para o que aparece nas pautas. Por fim, o administrativo também não faz grande esforço para suscitar debate de fato, contentando-se com o burocratismo das assembleias e conseguindo, quase sempre, aprovar tudo o que deseja. Portanto, é um sistema quase de partido único: não há um corpo de propostas alternativas que apontem para rumos diferentes daqueles que a instiuição toma por decisão de sua direção. Quando algo semelhante a isso acontece, o clima fica tenso, porque desnudam-se os conflitos e não é mais possível administrar com tese única sem fazer concessões. Em síntese: o Conselho de Escola não funciona como espaço democrático, apenas como espaço extensivo da autoridade das direções.


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Faço parte de um dos maiores sindicatos de trabalhadores do Brasil, o SINPEEM, e nele atuo de forma ativa, na medida do possível. Sou representante sindical da minha escola, e estou sempre presente nos congressos anuais, mas nunca cheguei a apresentar propostas ou emendas. Esse é um defeito meu, assumo, ligado à minha timidez para grandes públicos. Entretanto, só fosse só meu, seria algo totalmente contornável. O problema é que raramente uma proposta ou emenda é apresentada por alguém que não seja membro de uma das correntes políticas do sindicato. Poderíamos ver esse fato como positivo, uma vez que demonstra a existência de divergências ideológicas e grupos políticos em debate no âmbito da organização da categoria. Mas há uma questão complicada por detrás disso tudo. O presidente do nosso sindicato está há incontáveis anos no poder, já tendo, inclusive, atuado concomitantemente como vereador pela cidade de São Paulo. Não há como negar que ele seja importante para a categoria e para a história de luta dos professores, mas o que acabou acontecendo, no decorrer dos anos, foi uma centralização excessiva das ações em sua figura. A oposição ao presidente, sempre fragmentada e faccionada em vários grupos contestadores e barulhentos, nunca conseguiu fazer frente à chapa dea situação nas eleições, talvez porque nunca tenha se unificado, talvez porque nunca tenha estabelecido debate genuíno de propostas, com a construção de um plano político alternativo. Com otempo, venceu a ansiedade pelos cargos, e, espertamente, a situação cedeu à oposição vários espaços dentro da estrutura sindical, obviamente sem renunciar aos de maior controle e centralidade.
Como resultado dessa política meio despolitizada - porque focada na disputa predatória pelo poder e não na construção de alternativas inteligentes de uso desse poder - temos que as assembleias, congressos e reuniões são constituídas de uma minoria de menos de um quinto de pessoas que realmente se pronunciam e se colocam, e de uma maioria absoluta de pessoas que está alheia a tudo o que se debate no sindicato, com grande parte, inclusive, preocupada apenas com as dispensas de ponto a que têm direito. Resultados evidentes: as discussões são facilmente desviadas do foco, as votações são facilmente conduzidas (a maioria das pessoas vota no que o presidente defender, mesmosem ter ouvido a discussão), as pessoas saem das reuniões bem antes de elas acabarem, a oposição fala mal do presidente o tempo todo, o presidente ironiza a oposição e nunca temos a impressão de ter acontecido um verdadeiro embate de ideias.
Os resultados não têm sido os piores nos últimos tempos: enfraquecemos muito em questões como condições de trabalho e proteção contra abusos de gestão, embora tenhamos avançado nas questões salariais. Mas o que acho curioso é que o sindicato tem, em seus quadros, uma pluralidade imensa de pessoas altamente gabaritadas, com pontos de vista diferenciados a respeito de várias matérias, e isso simplesmente não aparece nas instâncias de discussão. Embora haja vários grupos, ligados a várias correntes, parece-me que tudo funciona como se o regime fosse de partido único, que domina soberano e sempre consegue cooptar quem o ameaça, quando necessário.

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Acabei de mudar para a região central de São Paulo, e desconheço completamente a administração do bairro onde vivo. Por isso não sei se serei justo no que vou expor adiante, mas serei correto e honesto em relação a minhas impressões gerais.
Desde criança, sempre soube do funcionamento das regionais em São Paulo muito mais em função dos problemas que das ações efetivas. Se eu tivesse de listar as vezes em que a Administração Regional do bairro em que morava fora citada por alguém em contexto qualquer, em conversas formais ou informais, haveria repetição constante de frases como "tem que ir lá e molhar a mão de fulano", "tem que falar com fulano de tal", "lá eles liberam", etc. A verdade é que, no nível das conversas de bastidor, sempre ficou claro para mim que as regionais eram administrações de regiões da cidade loteadas para vereadores alinhados ao governo ou correligionários, em função de favores políticos e apoios. Casos como o de Vicente Viscome, na regional da Penha, só faziam crer que o funcionamento interno dessas unidades de gestão era tão questionável e duvidoso quanto os critérios de nomeação de seus "donos".
Para além do senso comum, reconheço que houve reformas administrativas em São Paulo, mudanças nas subprefeituras e um esforço de transparência nos últimos anos, tudo muito louvável. Mas a verdade é, segundo minha experiência de cidadão paulistano, que as regionais estão completamente distantes da consciência política da população. Ainda pouco se sabe sobre suas estruturas, ainda pouco se sabe sobre seus projetos e, sobretudo, ainda pouco se sabe sobre as formas de atuar com elas ou contra elas. As diretrizes políticas das regionais são as mesmas do prefeito, por certo. Seria interessante, no entanto, entender qual a proposta específica para a região em foco, e quais seriam as instâncias de debate e decisão em que a população pudesse expressar suas concordâncias ou discordâncias em relação à condução dessa proposta.
Morei no Campo Belo por um tempo, antes morava na Cidade Patriarca. Em ambos os lugares havia Sociedades Amigos de Bairro, mas nunca achei que fossem mais que meros clubinhos de discussão de interesses dos comerciantes e dos donos de imóveis. Vi grandes e belas iniciativas de mobilização, quase nunca relacionadas às agendas de subprefeitos ou representantes. Uma cidade do tamanho de São Paulo exigiria maior descentralização das estruturas de poder, e, por consequência, maior participação política em termos de debate de ideias e proposições nas instâncias regionais da prefeitura. Estamos, a meu ver, ainda muito longe disso. Na verdade, acho até que, nessa matéria, precisamos mesmo de um começo.

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Finalmente, chego aos cargos eleitos pelo voto direto. Para preenchê-los, temos de escolher entre diferentes pessoas, com diferentes propostas. Essas diferentes propostas são organizadas por partidos, segundo o alinhamento ideológico de cada indivíduo. O pluripartidarismo, em tese, é uma garantia democrática de que vários segmentos políticos da sociedade podem encontrar amparo, representação e legitimidade ao apoiarem ou se associarem com a legenda mais adequada a seus interesses.
Acredito, no entanto, que o país empobreceu muito em matéria de alternativas partidárias nos últimos anos, por duas razões. A primeira é uma polarização política entre PT e PSDB que é motivada muito mais por questões de conseguimento e manutenção do poder que por diferenças programáticas irreconciliáveis (embora elas existam de fato). Como consequência, temos campanhas políticas horrorosas, em que NUNCA sabemos qual a plataforma política do candidato ao executivo ou ao legislativo. Isso é péssimo, porque acabamos votando em um ou outro candidato ou partido por simpatizarmos com ele ou antipatizarmos com o adversário, e assim damos ao eleito carta branca para fazer o que quiser, uma vez que desconhecíamos suas propostas e seus vínculos ideológicos. Com isso, tornamo-nos menos aptos para a cobrança efetiva de resultados e de coerência com o discurso de campanha.
Um efeito secundário dessa polarização é a inópia do debate político nos chamados formadores de opinião. É claro como água, por exemplo, que revistas como a Veja são contra o PT, ou que páginas de internet como a Carta Maior são contra o PSDB. As perspectivas de poder fazem com que comentaristas, jornalistas, editores e intelectuais otem por um alinhamento imediato e às vezes quase que irrefletido em relação a ações de um lado como do outro. É difícil encontrar um analista político que ataque ou defenda Serra e Lula em proporções mais ou menos equilibradas. Ou o sujeito é pró-PSDB, ou é pró-PT, ou uma voz isolada. Basta dar uma fuçada na internet e ler a blogosfera alinhada a um lado ou a outro: parece um diálogo de surdos (dos piores, daqueles que não querem ouvir); a mesma notícia ou a mesma análise aparece em mais de trinta blogues diferentes, semrpe os mesmos, e sempre com a mesma "polaridade" positiva ou negativa. Chega a parecer briga de torcedores discutindo lances de um jogo de clubes rivais.
A segunda razão para o empobrecimento das alternativas partidárias seria o fisiologismo dos partidos que estão fora da polarização, sejam eles novos, tradicionais ou nanicos. A dança das legendas chega a ser ridícula. Indivíduos que saltam de um barco para outro para seguir viagem às vezes parecem ter saltado para outro rio. Muitas pessoas que conheço estão há anos esperando o surgimento de uma dissidência coerente e confiável em algum dos grandes partidos, em torno da qual orbitem forças transformadoras capazes de injetar sangue novo na política, em termos de visão de país. Isso não acontece porque os partidos novos rapidamente se esforçam para coligarem-se com os partidos maiores, para obter tempo de televisão e garantir representação no Legislativo (que, no sistema atual, concede as cadeiras segundo os votos nos partidos, e não nos candidatos). Os partidos tradicionais, por sua vez, alinham-se aos partidos de fato (PT e PSDB) conforme possam conseguir ministérios, verbas e acordos locais. E os partidos nanicos tendem a desaparecer ou ver seus caciques migrarem para outras legendas, porque precisam de verbas e cargos para subsistirem, e não os conseguirão no sistema eleitoral que vige atualmente, a não ser que sejam acoplados às grandes coligações.
Por tudo isso, creio que a democracia brasileira acaba carecendo de real confronto de opiniões e posicionamentos, acabando por se caracterizar como uma grande fábrica de ajustes entre partidos maiores e menores. Como resultado disso, torna-se praticamente impossível identificar as pautas de cada coligação. É possível verificar essa impossibilidade de maneira simples. Basta perguntar a qualquer pessoa quais são as ideias de seu candidato a presidência, governo do estado, câmra estadual ou federal sobre cinco ou seis temas centrais: rumos da economia, reforma da previdência, reforma política, relação entre os poderes, parlamentarismo e liberdade de imprensa, por exemplo. Verificaremos que quase ninguém será capaz de enunciá-las, ainda que tenha absoluta convicção de seu voto por outras razões.
O que isso acarreta? Uma campanha eleitoral preocupada com "quem disse o quê", "quem fez mais", "quem se contradisse a respeito de algo", quem gaguejou ou ficou nervoso", e outras inutilidades. Uma campanha eleitoral que é puro, puríssimo marketing. Uma campanha eleitoral que emnada contribui para a elucidação de dúvidas reais dos eleitores e da sociedade a respeito de temas que lhes dizem respeito. Em suma, uma campanha eleitoral - uma posterior prática de assessoria de imprensa e discurso público - com muito pouca política, no sentido forte.

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Encerro esta postagem agradecendo a quem teve paciência de ler tudo isso e acrescentando uma pequena reflexão, à guisa de comentário final.
Não penso que uma reforma política ou uma adoção do parlamentarismo seria suficente para mudar esse panorama de despolitização. Seria preciso transformar práticas sociais de debate político nas raízes, naquilo que está mais próximo das pessoas, que são as instituições e fóruns de suas comunidades. Não acredito em nenhuma transformação "macro" sem uma mudança de postura no "micro". Precisamos romper com a tendência ao individualismo da sociedade contemporânea e apostar na força do local, do regional, do próximo a nós. Precisamos recuperar a noção de comunidade e de bem público, tão minada pelas ideologias do privado, da acumulação a qualquer preço, do "ter e não ser". E isso leva tempo, muito tempo. Por isso, faço votos de que possa escrever, em breve, mostrando que não sou só um reclamão, e tomei atitudes, ainda que pequenas, para mudar minha perspectiva de atuação política nos âmbitos que citei neste texto. Espero ser cobrado por isso.

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