sábado, 29 de novembro de 2008

O episódio da Bienal

Na Bienal deste ano, vivi uma situação das mais impactantes da minha vida. Empolgado com os baixíssimos preços dos livros no estande da Imprensa Oficial do Estado, fiz compras grandes, de vários gêneros. Avisei minha namorada, que pediu alguns minutos para fazer suas escolhas. No estande, havia umas poltronas, junto às prateleiras, em que podíamos sentar. Escolhi uma delas e, esperando a compra da minha companheira, fiquei folheando livros que já havia comprado. Ela, então, colocou numa poltrona próxima livros pelos quais havia se interessado, mas ainda não decidira comprar.
Uma vendedora me abordou. Vira-me tirar um livro de minha sacola para ler. Perguntou se eu estava colocando aqueles outros livros da pilha feita por minha namorada na sacola. Eu fiquei ofendido, disse que não, que os livros que eu tirara da sacola eram os que eu tinha comprado, inclusive alguns ali mesmo. Ela saiu, desconfiada, mas alguns minutos depois retornou. Eu folheava um livro de prêmios da APCA. Ela me perguntou se eu tinha comprado aquele livro. Disse que sim. Ela me perguntou se eu tinha a nota fiscal da compra. Disse que sim, que já ia pegar. Mas a nota do livro estava no bolso da jaqueta, e eu, meio zonzo com a situação, puxei a carteira para procurá-la. Como passaram-se alguns segundos e eu não encontrava a bendita nota, a vendedora chamou outro vendedor, grandão e com jeito de segurança, e disse que precisava de auxílio para lidar comigo.
Aquilo me deixou muito nervoso, e aí é que eu não conseguia encontrar mais nada. Fiquei vermelho de vergonha (nunca tinha sido abordado dessa forma em público) e muito tenso, disse que eu não era ladrão e que ia provar. A sorte é que o rapaz grandão já tinha conversado comigo, e tinha me atendido antes de eu sentar nas poltronas. Ele disse qualquer coisa para a vendedora, e os dois saíram de perto de mim. Foi bom para que eu me acalmasse. Dois minutos depois, lembrei de pôr a mão no bolso da jaqueta e encontrei a nota. Fiz questão de me levantar, ir até onde estava a vendedora e mostrar para ela. Ela nem quis ver, disse que estava tudo bem. Mas para mim já estava tudo mal: voltei para o meu lugar muito, muito, muito triste. Não sei por que fiquei tão triste, foi uma sensação das piores que já tive. A vendedora ainda veio para perto de mim, puxou papo, perguntou se eu estava interessado em algum outro item. Eu disse secamente que não, menos para agredi-la, mais para não chorar na frente dela.
Esperei em silêncio minha namorada fazer suas compras. Saímos do estande, e ela me perguntou o porquê de minha mudança brusca de comportamento (a empolgação das compras vantajosas já tinha ido pro beleléu). Contei o que aconteceu, muito perto de ir às lágrimas. Ela quis voltar lá, eu não deixei. Resolvi deixar por isso mesmo.
A verdade é que o sentimento pelo qual fui tomado nesse incidente foi tão negativo que depois tive de refletir sobre por que ficara daquela forma. Entendi, revendo a situação, que fora vítima de um juízo precipitado. Talvez meu comportamento tivesse sido entendido como suspeito pela vendedora, e ela, zelosa de suas responsabilidades, tentara certificar-se de que eu não tinha causado prejuízo à sua empresa durante seu expediente. Entendo isso, que talvez tenha sido intuitivamente o que me fez não retornar ao estande para reclamar. Mas a verdade é que aquela abordagem não fora adequada, tanto que me senti acuado e constrangido; na verdade, até posso dizer humilhado. Naquele dia, descobri o quanto é duro ser acusado de roubo, e o quanto é constrangedor ser pressionado por alguém em função dessa acusação. Por outro lado, atesto que esse episódio me remeteu a uma segunda reflexão.
Pensei que aquilo que, talvez por causa de minha aparência despojada, meus cabelos compridos e minha postura tímida, eu vivenciara pela primeira vez na minha vida, muitas pessoas teriam vivenciado muitas vezes mais. Pensei nos indivíduos pobres, sobre quem sempre pairam suspeitas onde quer que estejam, perseguidos com os olhos e constantemente achacados de formas muito mais violentas. Pensei nas pessoas negras, que tantas vezes vi serem vergonhosamente maltratadas sem terem qualquer atitude que pudesse ser considerada suspeita. Pensei nos velhinhos, que têm dificuldade de lembrar de coisas e menos agilidade para apresentarem dinheiro e documentos, tantas vezes desrespeitados por pessoas impacientes e covardes. Pensei em tudo isso e, pela primeira vez, entendi DE VERDADE como essas pessoas se sentem, e quanto elas carecem de tratamento humano e digno. Se eu quase fora às lágrimas em função desse episódio, imagine os indivíduos que convivem com tanta freqüência com essas pequenas-grandes humilhações! E então, indaguei-me se não teria sido melhor reclamar da vendedora. Fiquei em dúvida, mas fato é que não fui. Na verdade, até hoje não sei o que deveria ter feito. O que realmente ficou disso tudo, e ainda me incomoda, é o que senti.
Muito tempo depois, lembrando desse episódio, julgo serem coisas completamente diferentes saber o que sofrem as pessoas e vivenciar esse sofrimento em situações como aquela. E creio que talvez falte um certo grau de compaixão de minha parte, perdido entre a alienação no dia-a-dia e a situação privilegiada em que me encontro em relação à maior parte do nosso povo.
Até o momento, foi o máximo que pude compreender.
Conheço uma pessoa que me disse recentemente: " - Agora que estou já há algum tempo sem emprego, não reclamo mais de garçons que trazem pratos que não pedi ou balconistas que erram nalgum momento do atendimento. Penso que essas pessoas não fazem por mal, e não gostaria que uma reclamação minha ocasionasse suas demissões e as colocasse na mesma situação em que me encontro". Considero elevado e belo esse pensamento, muito próximo do que eu chamei de compaixão no parágrafo anterior. É por pensamentos como esse que considero essa pessoa tão especial.

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