terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Carros

Não tenho carro e não sei dirigir. Pretendo tirar minha carta em 2009, pois acho necessário poder guiar um veículo em uma eventualidade. Mas confesso que nunca tive muita ligação com automóveis, a ponto de ser incapaz de diferenciar visualmente um modelo de outro. Isso significa que se um dia precisar dizer a alguém qual carro estava na porta da minha casa, provavelmente só estarei apto a acertar a cor.
Não considero satisfatória minha posição indiferente em relação aos carros. Precisaria entender um pouquinho mais deles, e ter pelo menos a competência para utilizá-los. Creio, entretanto, que há um outro extremo dessa relação, que é aquele em que o indivíduo gosta tanto de seu automóvel que não consegue ter uma identidade sem ele. Não me refiro a motoristas, ou pilotos de corrida, ou aventureiros, ou pessoas que simplesmente gostam de passear com seus veículos. Refiro-me às pessoas que precisam do carro para ser quem são, para dizer o que dizem, para manifestar sentimentos de superioridade, para agredir.
O primeiro caso é o mais comum, e como exemplo posso citar dezenas de colegas que simplesmente consideravam (às vezes com razão) que suas namoradas os abandonariam e seus amigos desapareceriam se eles estivessem sem carro. Afinal, como entoa alegremente Ivete Sangalo, "andar a pé é lenha". A não-posse do veículo provocava nessas pessoas um sentimento de inferioridade tão descomunal, uma ansiedade de adquirir tão forte, que vi muitos deixarem de pagar pensões alimentícias ou ajudar suas famílias com o argumento de que estavam guardando dinheiro para comprar um carro ou pagando prestações do mesmo.
O segundo caso também é bastante freqüente. Tanto que aconteceu comigo hoje. Vinha eu da academia com uma camisa do Grêmio (para que fique claro, sou cruzeirense. Tenho, a despeito disso, camisas de vários clubes, porque acho bonitas) quando ouço uma buzina e uma voz provenientes de um carro que passava em alta velocidade. Disse o motorista algo como "aeeeeeeeeeeeeeeeeeeee viiiiiiiiiiiceeeeeeeeeeeeeeeeeeeee!" (não conseguirei reproduzir a elaboradíssima entonação do sujeito) e continuou seu caminho, provavelmente satisfeito pela provocação e pela impossibilidade de revide. Eu não revidaria; sei que é brincadeira. Mas duvido, apostando todos os meus dentes e meus globos oculares, que esse cara me provocaria se estivesse a pé. O carro dá a certas pessoas a ilusão de que são inatingíveis, de que podem simplesmente acelerar e ir embora depois de brincarem ou provocarem alguém. Isso traz coragem. Lembro, quando adolescente, quantas vezes mexíamos com prostitutas ao voltar de alguma balada, apenas porque sabíamos que estávamos motorizados e que poderíamos fugir das respostas. Admito essa babaquice no meu currículo; até porque isso me ajudou a perceber o quão imbecil eu poderia me tornar numa situação como a do motorista são-paulino. Graças a Deus percebi mais cedo que outros minha sanha de covardia, e me regenerei a tempo.
O terceiro caso é o mais engraçado de todos. Há pessoas que se sentem bem dando cavalo de pau, ligando o som do carro num volume insano, passando quatrocentas vezes no mesmo lugar para ser reconhecido dentro do veículo, exibindo de todas as formas possíveis aquilo que é, basicamente, um meio de transporte. Eu lembro, quando morava com meus pais e minha família estendida, que, de vez em quando, minha prima aparecia por lá. Muito bonita e gostosona, ela chamava a atenção dos rapazes da praça onde morávamos. Um deles, conhecido garanhão do pedaço, adotava a estranha tática de sedução de encostar seu carro na calçada oposta ao portão da nossa casa e ficar buzinando por horas a fio, chamando a moça. Além de ser deselegante e cafajeste, era absurdamente ridículo, dado que, se ele simplesmente batesse palmas no portão, ela iria sem nenhum problema. Mas julgo que, ao fazer isso, ele se igualaria aos outros pretendentes, e sua segurança iria para o brejo.
O quarto caso é o mais perigoso. Diz respeito a pessoas que usam seus veículos para intimidar ou machucar outros indivíduos, sem nenhuma compreensão da responsabildiade que têm enquanto motoristas. É aquele pessoal que joga seu carro em cima de outro, em função de alguma discussão de trânsito ou manobra que não tenha gostado. Ou, pior ainda, que avança com seu carro sobre pedestres, às vezes buzinando, às vezes nem isso, para tirá-los do caminho ou acertá-los. Lembro de ter, uma vez, passado em frente a um estacionamento no exato momento da saída de um apressadinho. Ele brecou para que eu passasse, mas se irritou com ter de fazer isso, e deu um pequeno tranco, sem me acertar, mas como que dizendo "tá vendo, se eu quisesse?". Juro que fiquei olhando para o rapaz, mais estarrecido que ofendido. Minha cara era de "você passaria mesmo por cima de mim por causa de 3 ou 4 segundos?". O pior de tudo é que hoje sei que alguns passariam sem dó. E não por estourarem: apenas por poderem.
Pondero, por fim, que nossa sociedade precisa aprender que todo aumento de poder implica maior carga de responsabilidade, e que isso tem tudo a ver com o consumo, e mais a ver ainda com automóveis. É legal sentir-se bem e confortável dentro de um seu veículo; mas há algo de errado em sentir-se bem apenas quando dentro de seu veículo. E isso pode ser muito perigoso.

2 comentários:

manu gomes disse...

como assim vc é cruzeirense?

a pergunta que eu fiz no post anterior, creio que tenha sido respondida nesse :)

ao contrário de vc, acho que sou bem "machinho" com essas coisas de carro, adoro...conheço todos os modelos. Se não fosse meu comportamento na prática, poderiam me chamar de "maria gasolina" rsrs mas acho que por ser designer tenho muita habilidade com formas e marcas, além de minha memória fotográfica ser ótima também, modéstia a parte. Mas só conheço, identifico, jamais teria um carrão importado pra me fazer importante, um fusquinha ja me faria muito realizada...rs

paradoxalmente, por motivos maiores eu também não dirijo, mas pretendo reverter isso em breve :)

Adorei esse post, gosto muito das suas análises cotidianas de aspectos da sociedade e sem se excluir delas... e como vc "linka" uma coisa na outra. Achei muito engraçado relebrar e me identificar com algumas histórias.

muito bom...parabéns...e agora te adimiro mais pq és cruzeirense...rsrsrs

;)

manu gomes disse...

obrigaaadaaa,pela homenagem!!! não só leitora, mas atuante né...é fato, tenho dificuldades em ser somente "espectadora" rs

mas me conta, é mineiro?família mineira?ou foi conquistado por tostão e cia?

...

hummmm, sem querer estereotipar, mas não é que você fez referência a um samba paulista? rs... brincadeira, é lindo! Eu na minha ignorancia não conhecia Geraldo Filme, mas também quase chorei só de ler, quando ouvir então...

;)